Entre o pertencimento e a opressão: Hanaide Kalaigian fala sobre as dicotomias que atravessam ‘Um amor de filha’

Equipe - Publicado na categoria Entrevistas em 26/06/2023


Meliné dedicou toda a sua vida à sua família. Descendente de armênios, ela seguiu fielmente as determinações transmitidas ao longo de gerações para mulheres como ela: se casou, teve uma filha, cuidou da casa, participou da vida em comunidade. No entanto, um telefonema inesperado revela uma verdade que desafia sua percepção sobre a segurança dos costumes, que não garantiram que sua vida seguisse o roteiro esperado. Diante de muitos questionamentos, ela mergulha em uma jornada solitária e, ao se observar, enxerga milhares de mulheres que também tiveram suas vidas guiadas por tradições seculares.
Essa é a premissa de Um amor de filha, romance de estreia de Hanaide Kalaigian publicado pela Autêntica Contemporânea. Ao explorar as nuances dos conflitos geracionais e o peso dos costumes na vida das mulheres, a autora oferece uma perspectiva profunda sobre uma comunidade até então pouco retratada na literatura brasileira.
Em entrevista ao Blog do Grupo Autêntica, Hanaide Kalaigian compartilha um deslumbre do processo de criação de seu livro.

Como suas próprias experiências e observações como descendente de armênios influenciaram a criação dos personagens e da história do livro?

Nasci e cresci dentro da comunidade armênia de São Paulo. Frequentei a escola, o clube, as festividades, comemorações, participei de muitas atividades ligadas à coletividade, minha vivência foi ampla e por um período longo de tempo. Atualmente participo pouco dos eventos, vou a um ou outro de vez em quando. Talvez esse distanciamento tenha permitido que eu pudesse enxergar alguns comportamentos semelhantes nos membros da comunidade, tanto em homens quanto em mulheres. E essa observação abriu a possibilidade de refletir sobre o funcionamento do grupo como um todo.

A partir de então, pude identificar certas atitudes nos hábitos, na maneira de pensar e nos papéis que cada um desempenha, ou desempenhava, no círculo social. Todas essas percepções acabaram influenciando o processo de construção das personagens do livro.

Alguns elementos da cultura armênia, como a culinária e o vocabulário, desempenham um papel crucial na construção de uma ambientação imersiva no livro. Como se deu o processo de incorporação desses elementos na história?

Alguns elementos são constitutivos da identidade de um povo, dizem respeito aos próprios traços culturais. No caso dos armênios, que foram obrigados a fugir e se dispersaram por vários países em consequência da perseguição pelo Império Otomano, a língua, a música, a culinária, os ritos religiosos, foram, e ainda são, a maneira de assegurar a singularidade cultural dos armênios. No livro, busquei enfatizar a presença da culinária, ainda hoje bastante forte, que além do traço identitário, também cria e perpetua vínculos afetivos, especialmente entre as mulheres.

A culinária também evoca a história dos antepassados que perderam a vida por inanição nas longas caminhadas forçadas pelo deserto, ou nos locais provisórios em que tiveram que viver enquanto aguardavam a resolução de questões territoriais tratadas por organizações internacionais.

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Além das vivências e observações, quais outras fontes de pesquisa ou influências você utilizou ao retratar a comunidade armênia em seu livro? Houve algum desafio específico ao representar essa comunidade?

Além das minhas vivências e observações realizei uma extensa pesquisa utilizando diversas fontes, como livros, teses, dissertações, artigos acadêmicos e filmes. Gostaria de citar algumas das referências utilizadas: os livros “Presença Armênia em São Paulo”, “História da Armênia”, “Armenian folk arts, culture, and identity”, “Negócios e famílias: armênios em São Paulo”, entre outros títulos; as dissertações de Heitor Loureiro e Pedro Boghosian Porto; artigos acadêmicos encontrados na internet; o documentário “Grandma’s Tattoos”, da diretora Suzanne Khardalian; os filmes “A promessa”, “Uma história de loucura”, citando aqui apenas dois exemplos; a exposição “Aurora/Testimony”, realizada por Atom Egoyan e Kutlug Ataman; e “Recovering Armenia”, da historiadora armênia turca Lerna Ekmekçoglu, livro de importância crucial e que destaco fortemente.

O maior desafio foi encontrar referências bibliográficas sobre as mulheres, especialmente escritas por mulheres, que trouxessem um outro viés do sofrimento e das consequências que o trauma do genocídio gerou nelas.

Você mencionou que os personagens foram criados como uma “grande colcha de retalhos”. Quais foram as principais fontes de inspiração para a construção desses personagens, principalmente da protagonista Meliné?

A Meliné não existe, ela é uma personagem inventada que reúne características de várias pessoas que conheci, convivi, ouvi falar ou que passaram por mim. Talvez no início do livro Meliné se assemelhe a uma pessoa específica, mas ao longo da história ela pode ser reconhecida com outra e, no final, com alguém completamente diferente. Também empresto a ela algumas das minhas próprias características, daí o uso da expressão clichê “grande colcha de retalhos” para descrever essa reunião, ou melhor dizendo, essa colagem que fiz ao combinar particularidades de diversas pessoas para construir a Meliné e outras personagens do livro.

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Em ‘Um Amor de Filha’, você explora a dualidade entre a modernidade e as heranças seculares de uma tradição. A escolha de trabalhar essa complexa dicotomia foi o ponto de partida dessa narrativa?

Na verdade, o ponto de partida foi o conceito de psicanálise definido como transmissão psíquica transgeracional. Quando decidi fazer a formação de escritores no Instituto Vera Cruz, a ideia inicial era aprimorar a minha escrita em textos que vinculassem a clínica às investigações teóricas em andamento na área, ou seja, o que estava sendo publicado sobre a transmissão de forças psíquicas inconscientes que ocorrem ao longo de gerações, o que não é dito, o que ficou oculto, escondido e não elaborado.

Surgiram, então, uma série de questionamentos: quais as consequências dessa transmissão? Quais os conflitos desencadeados por esse complexo campo de forças para aqueles que tentam romper com o ciclo invisível de repetição? Estava claro para mim a associação entre o trauma do genocídio e a violência contra as mulheres armênias como uma herança silenciada, onde certos fatos, como a aculturação forçada como forma de sobrevivência, a recusa do acolhimento às mulheres raptadas e o apagamento dessas histórias, foram deixados de lado.

A partir daí, optei pela ficção e busquei retratar no livro as dualidades da modernidade e do conservadorismo, o sentimento de pertencimento e opressão de papéis, bem como a preservação dos costumes e as transformações da contemporaneidade.

De que maneira a história de Meliné pode suscitar identificação e ressoar com mulheres de diferentes culturas que vivenciam conflitos geracionais semelhantes?

Acredito que a história de Meliné possa despertar identificação na questão das heranças transmitidas silenciosamente, nos lutos não elaborados que acabam se manifestando na forma de repetição, ou como violência latente. Muitas histórias encobertas, traumas e segredos de família são passados de forma inconsciente, nos tornamos portadores de males que não foram vividos por nós mesmos, agressões, crueldades, opressões de sociedades patriarcais, e que pertencem a outras gerações. É uma história que carregamos sem sequer saber do que se trata. E isso ressoa de maneira extremamente forte.

E não estamos falando apenas das mulheres, podemos também pensar em regimes totalitários e tiranias que existem ou que já existiram, e que retornam com força intensificada como uma assombração persistente, pois não passaram por um processo de reflexão e ressignificação. Eles atuam como fantasmas que assombram nossas vidas, independente de gênero, raça e classe.

Com a publicação do seu primeiro romance, você já tem algum novo projeto em mente ou algum gênero literário que gostaria de explorar em próximas obras?

A relação mãe e filha, as heranças transmitidas, a memória e o esquecimento, os conflitos e o desenvolvimento da autonomia feminina, especialmente a questão de tornar-se mulher, e não apenas mãe e esposa, são temas que me interessam muito. Comecei minha pesquisa com uma pilha de leituras sobre os mais variados temas, mas ainda não sei ao certo para onde o que tenho lido irá me levar. Depois que o tema, ou temas, tomarem forma, surge o momento de definir a voz narrativa, traçar o perfil psicológico e as complexidades das personagens. Para mim, é somente na escrita que todos esses elementos se tornam mais evidentes e se mostram se são compatíveis ou não.

E por enquanto, sigo na ficção. Admiro autores que ultrapassam as fronteiras da ficção, não ficção e ensaio, transitando livremente, ou que pelo menos pareçam assim ao leitor, entre os diversos gêneros literários.

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Se você pudesse apresentar mais sobre a cultura armênia para os leitores de ‘Um amor de filha’, quais autores e artistas armênios que te inspiram enquanto escritora você indicaria?

Eu reforçaria as referências que utilizei na pesquisa e que mencionei em uma resposta anterior. Em especial, recomendo o documentário “Grandma’s Tattoos” sobre o destino de muitas mulheres armênias que foram escravizadas durante o período de perseguição pelo Império Otomano.

Indico também um curta muito interessante que assisti recentemente no último festival “É Tudo Verdade”, intitulado “O despertar de Aurora”, dirigido pela cineasta armênia Inna Sahakyan. É um relato impactante e, ao mesmo tempo, sensível sobre a violência contra as mulheres. O tema é abordado sob uma nova perspectiva, exatamente com mencionei na resposta anterior, filtrado e narrado por um viés feminino.

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