“Dor e a solidão são temas cruciais na minha literatura”

Equipe - Publicado na categoria Entrevistas em 24/08/2022


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João Maria Matilde narra o profundo mergulho de Matilde, a protagonista, em seu passado e sua essência
(foto: Leonardo Lott)

É com um telefonema que a escritora mineira Marcela Dantés, finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2021, dá início a João Maria Matilde, romance publicado em maio pela Autêntica Contemporânea.

Na chamada, alguém procura por Matilde, a filha de João Maria. E é assim, sem rodeios, que a protagonista toma conhecimento sobre parte de seu passado: seu pai, a respeito de quem ela nunca soube nada, sequer o nome, existe. Ou existiu, já que ele agora está morto e deixou um testamento, que só poderá ser lido quando ela estiver na pequena cidade portuguesa onde ele viveu. Matilde parte, então, em uma viagem tão solitária quanto desconhecida, que a coloca frente a frente com seus medos para enfim encontrar uma versão surpreendente, emocionante e transformadora de si mesma.

João Maria Matilde é fruto da residência literária que a autora fez no Festival Literário Internacional de Óbidos (Folio), em 2016 – ano em que a curadoria foi feita pelo escritor angolano José Eduardo Agualusa. De volta ao Brasil, Marcela trabalhou por dois anos no livro, até engavetá-lo esperando um momento melhor para escrever sobre as questões abordadas na obra – muitas delas de ordem psicológica –, retomando e finalizando-a no ano passado, quando se sentiu pronta para enfrentar temas tão profundos.

Foi também em 2021 que a carreira de Marcela Dantés deu um salto: a autora foi finalista de duas das mais prestigiadas premiações literárias brasileiras, Prêmio Jabuti e Prêmio São Paulo. Nesta entrevista para o Blog do Grupo Autêntica, a autora conta mais sobre reconhecimento e sobre seu processo de criação literária.


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Como foi participar do Folio? Você já tinha alguma ideia sobre o tema do livro quando chegou a Portugal?
Quando eu cheguei lá, ainda não sabia o que ia escrever, mas a ideia apareceu muito cedo. Tive um modelo de trabalho que, acho, é o sonho de todo escritor: ao contrário da rotina que tenho na minha casa, que envolve levar o filho na escola, passear com o cachorro, arrumar a casa, enfim, uma rotina em que escrevo quando dá tempo, em Óbidos eu pude pensar única e exclusivamente nesse romance, tive uma imersão completa, o que foi uma experiência muito rica. O livro tem um aspecto que eu gosto muito: são as descrições dos lugares, das comidas, das coisas que são muito características de Portugal e acabam por ser, de alguma forma, uma homenagem ao que vivi lá.


Nem sinal de asas foi escrito depois de João Maria Matilde, mas foi publicado primeiro. O livro caiu no gosto do público e lhe rendeu indicações aos principais prêmios literários brasileiros. Isso trouxe um sentimento maior de “responsabilidade” em relação ao que era, na verdade, sua primeira obra e a forma como ela seria recebida?
Publicar um livro sempre vem acompanhado de uma insegurança, de uma preocupação com o olhar do outro. Acho que isso tem muito a ver com a grande mudança de perspectiva, aquele texto que ficou tanto tempo sendo tão íntimo, tão pessoal, em um processo que é, por vezes, muito solitário, e, de repente, é colocado no mundo, para quem quiser ler, autorizando cada leitor a interpretar aquela narrativa como desejar, entrelaçando o texto com suas próprias referências e história pessoal. Então, para mim, é sempre uma questão, um momento delicado, um processo.

E, claro, acho que fica mais intenso quando a isso tudo se junta uma expectativa externa, o olhar atento do mercado, dos leitores que gostaram do livro anterior e já constroem as suas próprias perspectivas e mesmo as minhas próprias cobranças e responsabilidades autoimpostas. Mas tento não pensar muito nisso: João Maria Matilde começou a ser idealizado ainda em 2016 e, nesses tantos anos, amadurecemos bastante os dois, e gosto de acreditar que ele chega aos leitores no preciso momento em que deveria chegar, tendo uma história independente do que veio antes e do que vai vir depois.


Matilde e Anja são personagens distintas em muitos aspectos. Mas têm, em comum, algumas características: ambas perderam pais e mães (talvez seja possível dizer isso de Matilde, já que a mãe sofre de um Alzheimer avançado) e são pessoas solitárias. A meu ver, são também um pouco infelizes. A tristeza, a dor e a solidão são temas cruciais na sua literatura?
Acho que esses são temas cruciais da nossa existência e que, consequentemente, acabam aparecendo na minha literatura. Penso que desde o meu primeiro livro, a coletânea de contos Sobre pessoas normais, eu venho tentando trabalhar com aspectos humanos que me atraem e aí entram, sem dúvidas, a questão da solidão, da dor e, ainda, do sofrimento mental.

Minha literatura nasce de uma observação do outro, sempre fui muito curiosa, atenta, muito fascinada pelas pessoas e suas humanidades, seus conflitos, contradições, seus traços mais marcantes, que ficam ali no limiar entre força e fraqueza. Acho que, de uma forma ou de outra, é isso que sempre busco trazer para os meus livros e, curiosamente, tem passado constantemente pela questão da solidão.

Aprofundando um pouco esse pensamento, penso que podemos dizer que os conflitos das pessoas começam a transbordar quando perdemos o referencial do outro – somos seres sociais, precisamos do contato, da troca, da coexistência e quando isso fica prejudicado, ou quando isso nos é arrancado, é quando somos mais profundamente transformados – e quanta literatura pode nascer daí?


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Como é seu processo de escrita? Como os personagens nascem para você?
Observei recentemente que não posso falar em método, já que cada um dos meus livros seguiu um processo muito distinto, em função de circunstâncias externas ou do meu momento enquanto autora. Mas o que eles têm em comum é exatamente a importância e o peso da criação das personagens, que é sempre a etapa mais trabalhosa, detalhada e importante para mim.

Eu acredito muito no que o Fitzgerald dizia, Character is plot, plot is character, em tradução livre, o personagem é a trama, a trama é o personagem. Para mim, em um universo como o da criação artística em que é absolutamente impossível generalizar qualquer coisa, essa é a sentença que mais se aproxima de uma verdade universal.

Eu sou fascinada pelas potencialidades das personagens, pelos lugares intensos e inesquecíveis para os quais elas podem levar uma narrativa e por isso é exatamente aí que eu coloco a minha energia: no desenvolvimento de tipos humanos encantadores, complexos, confusos, intensos. Sou do tipo de autora que demora muito para abrir o arquivo e começar, de fato, a escrever. Antes de chegar nesse momento, já passei por longos processos de pesquisa, por inúmeros esquemas, linhas do tempo, construções de perfis psicológicos, enfim, muitas etapas que me deixam mais segura com as minhas personagens e fazem com que o momento mesmo de escrita seja mais fluido e orgânico.

Não escapo, também, de intermináveis revisões e daquela sensação terrível de que o livro nunca está pronto – mesmo que a sua editora diga que sim. Nesse momento, é hora de exercitar o desapego e a coragem.


Você está trabalhando em algum projeto de escrita?
Sim, já há algum tempo ando às voltas com um novo projeto de romance. Depois de um longo estágio de pesquisa e imersão nos temas centrais da narrativa, tenho tentado, há poucos meses, trabalhar efetivamente na escrita do romance, na busca pelas vozes narrativas, pela forma ideal do texto.

É um processo longo, muitas vezes duro, que passa muito pela tentativa e erro, e por uma prática incansável. Gosto de acreditar que, uma vez definidas as personagens, traçada a estrutura e o plano geral da narrativa, iniciamos o processo árduo, a escrita diária, a página em branco que deve ser preenchida à exaustão, leituras, releituras e o quase interminável lapidar de cada frase, parágrafo, capítulo.

É nesse momento que me encontro agora: já tenho cerca de trinta ou quarenta por cento do texto escrito, sinto que me aproximo do tom que busco para cada um dos narradores e o trabalho começa a fluir mais naturalmente. Outra vez, trabalho com heranças, relações humanas e com a loucura, e isso é tudo o que consigo dizer no momento.


Quais autores e autoras marcaram a sua trajetória? O que você está lendo no momento?
Eu sempre vou dizer Guimarães Rosa, porque descobrir a literatura dele foi um dos grandes assombros que eu já vivi, e Grande Sertão: veredas vai ser sempre uma obsessão, um livro que não para de me ensinar e de me surpreender. De mãos dadas com ele está a Lygia Fagundes Telles e seus contos poderosos. Me lembro muito vividamente da primeira vez que li Antes do baile verde, com espanto e admiração. Mais recentemente um grande livro também me trouxe esses sentimentos, que foi Uma vida pequena, de Hanya Yanagihara. Para mim é um livro duríssimo, mas que carrega uma beleza que me comove demais.

Tenho lido muita literatura brasileira contemporânea, sobretudo mulheres, e me impressionado com a qualidade da nossa produção. Destaco, com a certeza de estar deixando nomes importantes de fora, Nara Vidal, Morgana Kretzmann, Micheliny Verunschk, Carla Guerson, entre tantas outras.


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