A ignorância na história: uma conversa com Peter Burke

João Pombo Barile - Publicado na categoria Entrevistas em 18/10/2023


A ignorância não é simplesmente a ausência de conhecimento, mas uma força ativa que molda a nossa compreensão do mundo. Foi a partir dessa perspectiva que o historiador britânico Peter Burke escreveu Ignorância: uma história global, para demonstrar como pessoas e sociedades lidaram com a ignorância ao longo dos séculos e como ela tem sido usada para justificar estruturas de poder, perpetuar preconceitos e promover falsidades.

Expondo uma série de exemplos, o autor atesta como a ignorância tem influenciado todas as áreas, desde a medicina e a ciência até a política e a religião. Ele também examina como a busca pelo conhecimento resultou em consequências não intencionais e como o próprio conhecimento pode ser usado para criar e perpetuar a ignorância.

Peter Burke é um dos principais conhecedores da história cultural e social da Europa. Nascido em 1937 e formado na Universidade de Oxford, ocupou, ao longo de sua carreira, cargos em diversas instituições acadêmicas de prestígio, como a Universidade de Sussex e a Universidade de Cambridge. É autor de uma série de livros sobre a história cultural, da sociedade e da comunicação, com particular atenção à Renascença italiana e à modernidade europeia.

Ignorância: Uma história global, foi publicado no Brasil pela Editora Vestígio. Em entrevista ao Blog do Grupo Autêntica, conduzida pelo jornalista João Pombo Barile, o autor destaca algumas das principais ideias do livro, sobre a importância da história para a compreensão das escolhas políticas, a presença da mulher na academia, o ódio à ciência e outros assuntos.


Convidamos você a mergulhar neste diálogo.


João Pombo Barile: Na página 281 da edição brasileira, o senhor escreve: “É frequente que amigos, parentes e estudantes dos historiadores perguntem a eles: Qual é a utilidade da história? A pergunta se torna mais fácil de responder se for invertida, na forma de ‘quais são os perigos da ignorância da história?’. Por exemplo, investidores com conhecimento da história têm mais chances de evitar perdas no mercado de ações. Na economia, booms e crashes se repetem, muitas vezes pelas mesmas razões (…) Os investidores no mercado de ações ‘ponto-com’ nos anos 1990 deveriam ter sido bem aconselhados a ler sobre bolhas anteriores, incluindo duas que foram analisadas no capítulo dez, a bolha do Mar do Sul, na Inglaterra, em 1720, e a que precedeu a Grande Crise de 1929 da bolsa de Nova York”. Pensando em dois eventos: um no Brasil e outro na Inglaterra. Durante todos os anos Bolsonaro, o Mercado (este com letra maiúscula) apoiou abertamente um presidente que, sem fazer juízo de valor do ponto de vista político, literalmente destruiu a economia e isolou o país do resto do mundo. O senhor arriscaria uma explicação de por que a elite brasileira agiu assim e jogou fora a lógica econômica dando um tiro no pé? E no caso inglês gostaria de tentar entender o Brexit. Confesso que ainda hoje não entendi o que aconteceu aí.

Peter Burke: Em ambos os casos, eu enfatizaria a importância do não racional no comportamento humano, incluindo o irracional, mas não confinado a ele. No caso do Brexit, que conheço melhor que o brasileiro, as pesquisas mostram que os partidários do “Leave” [sair – da União Europeia] eram em geral mais velhos, menos escolarizados e rurais do que os partidários do “Remain” [permanecer]. Menos instruídos, portanto menos críticos da propaganda de Boris Johnson etc. Mais rurais, já que os aldeões conhecem menos os imigrantes e os temem mais. Mais velhos, olhando com nostalgia para uma Inglaterra com apenas alguns estrangeiros morando nela. Os argumentos econômicos estavam do lado dos Remainers, e alguns Leavers agora admitem que a Grã-Bretanha está pior como resultado do Brexit. Então, eu diria que os apoiadores de Bolsonaro também são influenciados por sentimentos e não por argumentos, que o veem como machão, que são nacionalistas emocionais, que acreditam em conspirações comunistas etc. Compare ao Trumpismo nos EUA, com o slogan Make America Great Again.


JPB: Em trecho do capítulo “A ignorância da geografia”, o senhor analisa a ignorância ocidental acerca da China e a ignorância da China sobre a Europa. E escreve: “A ignorância da literatura e das ideias ocidentais começou a ser substituída pelo conhecimento graças aos esforços de certos indivíduos. Um deles foi Lin Shu, um homem das letras que não conhecia idiomas estrangeiros, mas que, com a ajuda de intérpretes, traduziu Dickens e Dumas. Outro foi Yan Fu, que estudou no Royal Naval College, em Londres, nos anos 1870 e traduziu Adam Smith, John Stuart Mill e T. H. Huxley. Conhecendo tão bem vários países como o senhor conhece, e até o Oriente, que conheceu ainda muito jovem, gostaria de saber: nos últimos 25 anos, com a globalização tendo se tornado uma realidade concreta, esta ignorância diminuiu mesmo? Ou ainda é regida pelo exótico?

PB: Muito difícil dizer, seja com base na experiência pessoal ou na leitura. Percebo que mais pessoas na Europa Central e na América Latina sabem inglês do que os mais velhos, e uma língua estrangeira ajuda a reduzir a ignorância do resto do mundo. Mais pessoas viajam, mas viajar realmente abre a mente ou a estreita, reforçando preconceitos horríveis contra estrangeiros? Um fator-chave, talvez, seja a idade em que se visita um país estrangeiro, seja jovem e impressionável ou mais velho, com ideias que se solidificaram (“ideias fixas”, como dizem os ingleses). Olhando para trás, acho que tive a sorte de ter visitado Singapura aos 18 anos, graças ao exército britânico, ficando 19 meses e alternando a experiência de um regimento maioritariamente composto por malaios e uma cidade maioritariamente chinesa.


JPB: Na página 64 da edição brasileira, o senhor escreve: “As mulheres acadêmicas foram capazes de preencher lacunas no conhecimento histórico que seus colegas homens haviam deixado passar. Mary Ritter Beard argumentou que os homens “não dispõem da força das mulheres” e de sua contribuição para “fazer história” como sacerdotisas, rainhas, santas, hereges, estudiosas e senhoras dos lares. Lucy Salmon, que lecionava no Vassar College, nos Estados Unidos, publicou um estudo sobre afazeres domésticos e recomendou uma ampla gama de fontes anteriormente negligenciadas para a história social, incluindo longas listas de itens e utensílios de cozinha”. A vida doméstica (privada) de países como Inglaterra ou Brasil sempre foi regida por uma “lógica” muito diferente. Explico-me: os brasileiros de classe média sempre tiveram serviçais (para usar um eufemismo de “escravo”) dentro de casa. Bem diferente dos países europeus onde o trabalho doméstico era, e é, quase sempre feito pela própria família. Como analisa a diferença da vida privada dos dois países? Nesta pergunta, se possível, gostaria, da opinião da professora Maria Lúcia Burke, grande especialista de Gilberto Freyre e que conhece bem as duas realidades.

PB: Quando visitei o Brasil pela primeira vez, em 1986, notei a alta proporção de professoras na USP e o paradoxo de uma tendência progressista estar ligada a uma sociedade tradicional em que mulheres de classe média empregavam empregadas domésticas para cozinhar e limpar. De maneira mais geral, eu traçaria um contraste entre a Grã-Bretanha e outros países do norte, com um padrão de vida pública mais alto do que o Sul global e um padrão de vida privada mais baixo (menos calor emocional, menos senso de família). Outro paradoxo: o sentimento da família está ligado à corrupção na vida pública.

Maria Lúcia Burke: Ouso discordar de que “sempre” houve uma “lógica diferente” na Europa, e que ter serviçais é algo brasileiro. Sem dúvida, o legado da escravidão tem muito a dizer sobre a situação dos brasileiros de classe média até hoje, mas na Inglaterra, por exemplo, a classe média tinha serviçais domésticos até a Primeira Guerra Mundial. E na Espanha, até hoje. Pelo que conheço através de amigos espanhóis, empregados domésticos existiam e continuam a existir em muitas casas da classe média – se no passado eram espanhóis, hoje em dia são da Europa do Leste ou das Filipinas. Aqui na Inglaterra, a situação é muito diferente, assim como, pelo que suponho, na Europa do norte. Empregam-se ”faxineiras” por hora – aqui custa por volta de £15 libras a hora. Consequentemente, devido ao alto preço, as famílias de classe média têm, em geral, uma cleaner durante não mais do que 3 horas por semana. Eu, confesso, habituada a outro sistema, tenho uma cleaner durante 8 horas por semana – mas tenho vergonha de contar para minhas amigas! Tenho certeza de que acharão um exagero.


JPB: Na página 64 da edição brasileira o senhor escreve. “Hoje, o número de historiadores profissionais que estudam o trabalho das mulheres, o corpo das mulheres, a religião e a escrita feminina representa um contraste expressivo com a situação de meio século atrás. (…) Natalie Davis sugeriu que o aumento da história da mulher ‘deveria causar algumas mudanças na prática do campo em geral’. Uma dessas mudanças é o aumento no interesse pela vida privada, como visto em História da vida privada, obra originalmente publicada em francês em cinco volumes, de 1985 a 1987. Como o texto de uma historiadora pode ser diferente de um texto escrito por um historiador? O gênero pode mesmo ser determinante?

PB: Não diria que pela leitura de um texto anônimo seja sempre ou mesmo usualmente possível adivinhar o gênero do autor. Mas eu acho que, em geral, a escolha de tópicos por historiadoras e a atenção que elas dão às mulheres no passado as diferenciam de seus colegas homens. Pense, por exemplo, em Natalie Davis na história de Martin Guerre. A história de um homem que chegou a uma aldeia francesa e fingiu ser um camarada dele, apenas para ser desmascarado anos depois, quando o verdadeiro Martin chegou. Essa história foi contada muitas vezes. O que havia de novo na versão de Natalie era sua atenção à situação de sua esposa, Bertrande, sua decisão de aceitar o falso Martin quando ele chegasse e os possíveis motivos de sua escolha. Há também outro paradoxo na situação. As mulheres liberadas seguem carreiras, inclusive de historiadora acadêmica, mas um número substancial delas escolhe temas de pesquisa como a família, os filhos, a casa e até a culinária, ou seja, os interesses de mulheres sem carreira profissional que antes eram conhecidas em inglês como “donas de casa”.


JPB: Numa entrevista dada por Philip Roth já nos anos 1990, o escritor norte-americano revelou que lia pouca ficção. Lia, sobretudo, ensaios e textos de história. O senhor inicia seu livro citando Flaubert e seu livro sobre o nada. Lê hoje mais história ou ficção? Já criou categorias para pensar a história a partir de alguma novela ou conto?

PB: Ainda posso ler mais história do que ficção (incluindo digitalizar livros em busca de informações como “leitura”), mas sou um “leitor em cadeia”’ de romances, começando um novo imediatamente depois de terminar o anterior. Meu autor brasileiro vivo favorito é Milton Hatoum, e entre os autores do passado não consigo me decidir entre Machado de Assis e Guimarães Rosa. O romance influenciou minha forma de pensar o passado, não tanto pelas novas “categorias” que você menciona, mas pela possibilidade de escrever uma “história polifônica”, ou seja, ouvir as diferentes vozes das pessoas do passado e incorporá-las na história, como Tolstoi fez em Guerra e paz e Carpentier em El siglo de las luces. Eu era adolescente quando li O som e a fúria, de William Faulkner, e suas quatro vozes me impressionaram profundamente, embora eu nunca tenha tentado escrever história dessa forma (ao contrário do antropólogo Richard Price em Alabi’s World). Ler Bakhtin sobre polifonia no romance reforçou o que aprendi com Faulkner.


JPB: Para terminar: na apresentação da edição brasileira, o professor Renato Janine Ribeiro se lembra de uma história do professor Antonio Candido e escreve: “Lembro certa vez em que Antonio Candido, então vice-presidente da Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp), redigiu um manifesto de nossa associação, em que protestava contra a ‘ignorância irrequieta’ que então mandava na Universidade. Um amigo sociólogo estranhou: a ignorância se esconde, disse ele; irrequietos são a curiosidade, o conhecimento. Eu pensei: não. E os anos deram razão a Candido: nos últimos tempos, fomos assolados por uma ignorância irrequieta, exuberante, agressiva. O presente ódio à ciência – e à imprensa – tem tudo a ver com esse repúdio à verdade, que fez multidões consagrarem nas urnas, aqui e nos vários continentes habitados (talvez com a exceção da Oceania), a mentira despudorada. Pergunto: num mundo onde as big techs parecem mesmo ter mais poder que os Estados Nacionais e as democracias europeias parecem não conseguir reagir (nem vou falar dos EUA e a bizarra situação de eles reelegerem Trump no ano que vem), o senhor acredita mesmo que a ciência vai conseguir vencer a ignorância?

PB: Vamos fazer uma distinção – como faço repetidamente no livro – entre pura ou simples ignorância, que ainda acredito que pode ser derrotada pela educação, e o que é conhecido como “ignorância deliberada”, o desejo de não saber alguma coisa, de ignorá-la. A ignorância deliberada é muito mais difícil de derrotar porque envolve mecanismos de defesa como resistência a verdades desagradáveis sobre o aquecimento global, a ligação entre tabagismo e câncer de pulmão e assim por diante, bem como o contrário, uma fácil aceitação de “notícias falsas” porque corresponde ao que algumas pessoas querem que seja verdade ou talvez, como no caso de conspirações imaginárias, temam ser verdade. Voltamos ao problema que você levantou em sua primeira pergunta, o problema da irracionalidade, seja individual ou coletiva.

__

João Pombo Barile é jornalista e graduado em Filosofia pela USP. Em São Paulo, trabalhou nas editoras Nova Cultural, Abril e Larousse e foi colaborador da revista Bravo e do jornal O Estado de S.Paulo. Em Belo Horizonte, trabalhou nos jornais O Tempo, Hoje em Dia e na revista Veja BH. É diretor do Suplemento Literário de Minas Gerais e dirige, desde 2011, o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura.

Tags:  Ignorância,  Peter Burke,  editora vestígio


Comentários