Um novo jeito de se relacionar com o trabalho: Matheus de Souza fala sobre o nomadismo digital

Equipe - Publicado na categoria Entrevistas em 05/05/2023


Com 26 anos, Matheus de Souza tomou uma decisão que transformaria integralmente a sua vida: diante do reconhecimento de que seu trabalho poderia ser exercido em qualquer lugar, se tornou um nômade digital. Reunindo as ferramentas certas, o catarinense construiu uma rotina em que o trabalho não é um impedimento ao desejo de conhecer o mundo.


Com isso, se tornou uma das maiores referências sobre o tema no Brasil. Em 2016, o LinkedIn elegeu o autor como o terceiro brasileiro mais influente da rede em sua lista de Top Voices e hoje seus cursos on-line contam com mais de dois mil alunos espalhados pela comunidade lusófona.


Parte dessa experiência foi compartilhada no livro Nômade digital: um guia para você viver e trabalhar como e onde quiser, publicado pela Autêntica Business em 2019. Finalista do Prêmio Jabuti na categoria Economia Criativa em 2020, a obra reúne as principais dicas para aqueles que desejam adotar um estilo de vida mais flexível e independente, desmistificando o estereótipo de “mochileiro itinerante” e preparando o leitor para lidar com todas as experiências e dificuldades dessa jornada.


Em entrevista ao Blog do Grupo Autêntica, o autor fala sobre o que aprendeu com a sua vivência e o que mudou desde a publicação do seu livro.


O que significa ser um nômade digital e como se deu, na sua experiência, a adoção desse estilo de vida?


Nômade é alguém sem residência fixa, que está sempre em movimento. Nômade digital é alguém sem residência fixa que carrega o seu escritório na mochila, ou seja, que faz do mundo a sua casa enquanto trabalha de forma remota; daí o “digital”.

2015 foi o ano em que tive o estalo de que meu trabalho poderia ser feito literalmente de qualquer lugar do mundo com acesso à internet – faltou apenas combinar isso com os meus chefes.

Na época, eu trabalhava como assistente de marketing em uma faculdade no interior de Santa Catarina. Batia o ponto às 12h30 e saía do trabalho apenas às 22 horas. Cheguei a pedir para fazer home office, mas ouvi algo do tipo “se liberarmos para você, teremos que liberar para todo mundo” – o que é compreensível, uma vez que o trabalho remoto ainda não era tão difundido.

Na virada de 2015 para 2016, consegui alguns freelas como redator – graças aos meus conteúdos produzidos no LinkedIn – e, no final do mesmo ano, eu já estava ganhando mais com os freelas do que como CLT. Após guardar seis meses do meu salário, finalmente me demiti, em 2017, e parti para o México, meu primeiro destino como nômade digital. Estou na estrada desde então – foram trinta países desde então, alguns mais de uma vez.

Essa adoção ao nomadismo digital como estilo de vida deu-se, principalmente, por conta de uma vontade de viver o desconhecido, de ser livre, de não ter que esperar uma suposta aposentadoria para curtir a vida; quero curtir agora, enquanto tenho saúde.


O seu livro, Nômade digital, além de apresentar os primeiros passos para aqueles que desejam trabalhar em qualquer lugar, apresenta também as dificuldades em lidar com as jornadas de trabalho remoto, orçamentos apertados e possíveis contratempos. Esse guia é baseado na sua própria vivência enquanto nômade? Por que você considera importante compartilhar essa bagagem?


Antes de ser um nômade digital, sou um escritor, de modo que compartilhar a minha vivência na estrada foi um movimento natural. Em 2017, comecei a compartilhar essas experiências no LinkedIn como uma espécie de diário de bordo – foi assim, inclusive, que em 2018 o Marcelo Amaral, meu editor, me “descobriu” e fez o convite para que eu escrevesse o livro, que seria publicado só em 2019.

No livro, além de relatar a minha própria vivência, entrevistei outros nômades com perfis diferentes (casais com e sem filhos, viajantes solitários – homens e mulheres – e até uma nômade que viaja com os seus cachorros) para que a obra ficasse com mais de um ponto de vista e não soasse como uma espécie de autobiografia, mas sim como um guia.

Essa vontade de compartilhar a minha história, tanto no LinkedIn quanto no livro, surgiu de forma natural a partir de uma vontade de mostrar que, sim, esse estilo de vida é possível; que, sim, você não precisa ser herdeiro para viajar o mundo; que, sim, existem tipos de viagens para todos os bolsos; que, sim, o trabalho remoto pode ser a peça fundamental para um melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional.


Mesmo diante de todas as vantagens que o esse estilo de vida oferece, o dia a dia de um nômade digital não é similar ao de um turista, por exemplo. O seu livro também contribui para a desmistificação do nomadismo digital?


Sim. Eu tentei fazer isso, principalmente, através de crônicas de viagem entre um e outro capítulo. Em termos literários, essas crônicas foram uma espécie de respiro em meio a tantas dicas, mas serviram também para mostrar esse lado B do nomadismo (que, na verdade, nada mais é do que a realidade).

A grande diferença entre um turista tradicional e um nômade digital é que o primeiro, geralmente, viaja para um destino com um roteiro pré-determinado (cinco dias em Paris, no primeiro farei isso, no segundo farei aquilo etc.), já o segundo, em tese, tem a oportunidade de ficar mais tempo nos lugares e viver como um local, ou seja, com uma rotina que envolve trabalho e lazer; basicamente a mesma coisa que um profissional comum faz em sua cidade, com a diferença de estar em outra.


No seu livro, você defende que existem muitos tipos de nômades digitais e muitas formas de viver esse estilo de vida. Conhecer essa perspectiva pode ser proveitoso também para aqueles que não necessariamente desejam adotar o nomadismo, mas se interessam em descobrir novas formas de lidar com o trabalho e transformar suas rotinas?


Acredito que, nomadismo à parte, o trabalho remoto me tornou um profissional muito mais organizado, principalmente porque trabalho por conta própria. Estou na Tailândia no momento, vivendo em uma ilha paradisíaca chamada Ko Pha Ngan, e é muito tentador passar o dia na praia tomando cerveja enquanto devoro uma porção de frutos do mar, mas meu trabalho não ficará pronto se eu não o fizer. Acredito que no trabalho remoto, independentemente do lugar em que você esteja geograficamente, as distrações estão por aí. Quem consegue ser organizado trabalhando de forma remota pode fazer isso, literalmente, de qualquer lugar do mundo.


Nômade digital foi publicado em 2019, antes do período de pandemia que transformou a forma com que muitos trabalhadores se relacionam com o trabalho remoto. Na sua visão, quais mudanças os anos de isolamento trouxeram para a esfera do nomadismo digital?


Acredito que o período de isolamento social, em que milhões de profissionais ao redor do mundo viram-se obrigados a trabalhar de casa, gerou o mesmo estalo que tive em 2015: “ué, quer dizer que eu posso trabalhar de casa e não preciso perder tempo no trânsito para ir ao escritório fazer um trabalho que eu poderia fazer de qualquer lugar com internet?”.

Com as fronteiras novamente abertas, muita gente que teve a oportunidade de continuar trabalhando de forma remota acabou experimentando o tal do anywhere office. Esse aumento de nômades, inclusive, tem gerado algumas discussões que não existiam em 2019 sobre gentrificação e pagamentos de impostos. Recentemente, em Lisboa, houve protestos de locais contra os nômades digitais que, segundo os manifestantes, fizeram com que o preço dos aluguéis disparasse (a discussão é bem mais complexa do que isso e não concordo com os manifestantes, mas esse movimento vem acontecendo em algumas cidades pelo mundo).

O fato aqui é que a pandemia acelerou uma transformação digital que cedo ou tarde aconteceria e talvez o mundo ainda não estivesse preparado para isso, mas acredito que ainda é cedo para medir esses impactos.

Outro ponto interessante de se observar é que muitas empresas trouxeram os seus colaboradores de volta para o escritório, o que tem gerado pedidos de demissão de profissionais insatisfeitos com o trabalho presencial ou mesmo híbrido. Vejo uma insatisfação dos dois lados (do empregador, que quer o funcionário no escritório para controlá-lo; e do funcionário, que quer ter um melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional). Imagino que em cinco ou dez anos teremos estudos que explorem o impacto dessas mudanças.


Ao contrário do que alguns acreditam, em seu livro você defende que qualquer modelo de trabalho pode ser adaptado ao nomadismo digital: freelancer, autônomo e até mesmo CLT. Você acredita que essas possibilidades têm se tornado mais expressivas, mesmo para empregos e funções “tradicionais”?


Se essa pergunta tivesse sido feita no primeiro semestre de 2022, quando o mundo do trabalho parecia estar indo em direção a modelos de trabalho mais flexíveis, eu responderia entusiasmado que sim, porém, o que temos visto da metade final de 2022 para cá é o oposto: empresas abolindo o trabalho 100% remoto e impondo o presencial ou um híbrido que é mais presencial do que remoto.

Segundo dados recentes do LinkedIn’s Economic Graph, a proporção de posições publicadas na plataforma que mencionavam a possibilidade de fazer trabalho remoto caiu de quase 40% em fevereiro de 2022 para menos de 25% em fevereiro deste ano. Ou seja, embora, em tese, sim, qualquer tipo de trabalho possa ser adaptado ao nomadismo digital, o futuro do trabalho está cada vez mais parecido com o passado: manda quem pode, obedece quem tem juízo (de preferência dentro de um escritório).


Após o período de pandemia, muitos de nós passamos a viver o chamado “esgotamento digital”, consequente principalmente da sensação de impossibilidade de desconexão. Na sua experiência, de que forma o nomadismo digital dialoga com esse quadro?


Essa pergunta é ótima para ajudar a desmistificar o nomadismo digital. Acredito que parte desse esgotamento se deve aos processos de trabalho que precisam ser melhorados.

Para que o trabalho remoto funcione e não enlouqueça ninguém é preciso, acima de tudo, confiança entre as partes envolvidas. Apenas assim e através de uma comunicação assíncrona, acredito eu, conseguiremos, enquanto trabalhadores remotos, acabar com essa noção de que é preciso estar disponível o tempo todo.

Entre 2020 e 2021 trabalhei como redator freelancer para uma empresa alemã que praticava a semana de quatro dias úteis, tendência que tem surgido entre instituições com cultura de trabalho 100% remoto. Como tenho o controle da minha agenda e trabalho por projetos, aproveitei o incentivo para fazer o mesmo – cortei as sextas-feiras do meu expediente.

Confesso que tive uma grande dificuldade de desconectar na minha primeira sexta-feira livre. “Mas, e se eu receber algum e-mail importante? E se eu estiver perdendo algo?” Entre uma ou outra espiadinha no celular, finalmente consegui desencanar; nada é tão urgente que não possa esperar até segunda.

Em relação ao nomadismo em si, se você não tem processos de trabalho bem desenhados e alinhados com os seus pares, o expediente não funcionará, independentemente se você esteja em Imbituba, Santa Catarina, minha cidade natal, ou em uma ilha paradisíaca na Tailândia. Trabalho é trabalho; turismo é turismo. Um nômade digital só consegue aproveitar os destinos se conseguir desconectar do trabalho, ou seja, esse tipo de problema é comum também entre os nômades.


Países como Indonésia, Austrália, Dubai, Costa Rica, Alemanha e México já oferecem vistos específicos para nômades digitais. O que essa mudança pode representar?


Opinião sincera? Não faz o menor sentido. Explico.

A ideia é boa, mas a impressão é que os governos dos países aproveitaram o hype em torno do tema para garantir uma injeção a mais de dinheiro em suas economias locais através dos nômades digitais sem antes consultá-los sobre as suas reais necessidades.

O primeiro país a lançar um visto específico para nômades digitais foi a Estônia – antecipei isso no livro, mas não quero parecer vaidoso aqui; só um pouco. Antes do visto, a Estônia lançou o e-Residency, uma espécie de cidadania digital que permite que cidadãos estrangeiros, entre outros benefícios, abram empresas dentro da União Europeia.

Fiz o meu e-Residency durante a pesquisa de Nômade digital e, para o meu caso (tenho CNPJ no Brasil), não é algo que valha a pena.

Sobre os vistos em si, como brasileiro, eu vejo dois grandes problemas (ou contradições): 1) A maioria deles oferece, no mínimo, um ano de residência (em que você paga os seus impostos no país que lhe ofereceu o visto) – e sabemos que nômade é alguém que não tem habitação fixa, que vive mudando de lugar; 2) A comprovação de renda para quem ganha em real, como eu, é absurda – geralmente entre R$ 20 mil e R$ 30 mil por mês, dependendo do país.

A contradição, creio eu, está no termo: esse tipo de visto é ótimo para o trabalhador remoto que deseja residir por um ano ou mais em outro país e não para o nômade digital, que, como bem sabemos, é alguém sem residência permanente.

O Brasil possui um dos melhores passaportes do mundo e temos acesso livre a 170 destinos ao redor do globo. Em linhas gerais, isso significa que não precisamos tirar um visto prévio em uma embaixada (como acontece com brasileiros que querem ir para os Estados Unidos ou Japão, por exemplo) para viajar para esses países países, muito menos aplicar para um visto específico de nômades digitais.

Ou seja, como nômades digitais geralmente não têm vínculos empregatícios em outros países (pago os meus impostos no Brasil), podemos entrar como turistas e ser nômades respeitando, obviamente, o limite do visto de turista de cada país – a grande maioria dos países oferece até três meses de visto para brasileiros.

Acabou o tempo do visto?

Bora pra outro país.

Afinal, um nômade não possui residência fixa, está sempre em movimento.


Você já reúne mais de seis anos de experiência como nômade digital. Quais itens você não abre mão nas suas viagens por diferentes países e culturas?


Cabo HDMI e saca-rolhas. Você nunca sabe quando irá precisar de um deles, às vezes ao mesmo tempo.
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