Tradução: o quadrado sobre o oblongo

Tomaz Tadeu - Publicado na categoria Entrevistas em 04/10/2023


Um livro é uma ponte poderosa para conectar culturas, ideias e histórias. No entanto, essa ponte só pode ser atravessada graças ao trabalho dedicado dos tradutores. Eles não apenas transpõem palavras de uma língua para outra, mas capturam a essência de cada história, permitindo que todos os leitores embarquem em jornadas literárias inesquecíveis.

Tomaz Tadeu é um importante nome por trás de muitos livros já publicados pela Autêntica Editora. Além de traduzir escritores consagrados, como James Joyce, Herman Melville e Virginia Woolf, ele também é coordenador da coleção Mimo, composta de obras clássicas e de belos textos. Considerado um dos principais especialistas da obra woolfiana no Brasil, foi finalista do Prêmio Jabuti em 2013 pela tradução de Mrs Dalloway.


Confira abaixo um relato pessoal do tradutor sobre os principais pontos de sua carreira:


“Antes de virar tradutor, eu simplesmente escrevia. As minhas próprias coisas. Em geral, artigos e ensaios sobre os temas de minha carreira acadêmica no campo da educação. Isso foi ali por 1985, quando, tendo terminado meu doutorado em Stanford, comecei a trabalhar como professor na Faculdade de Educação da UFRGS. Do campo da educação, da teoria educacional, fui derivando para um domínio mais amplo, que abrangia os grandes pensadores da época: Deleuze, Derrida, Foucault. Além de publicar ensaios nas revistas então dedicadas à teoria educacional, como Educação & Sociedade, Cadernos de Pesquisa, Educação & Realidade, entre outras, entrei na aventura de lançar a minha própria revista, à qual dei o nome de Teoria & Educação, feita inteiramente em casa, excetuando-se, é claro, a impressão. Ali traduzi muitos ensaios de pessoas que estavam, em outros países, revolucionando a teoria educacional. Eram dois números por ano. Durou apenas três. (Está disponível on-line no site Internet Archive).


Mas minha história como tradutor começou pra valer quando conheci Rejane Dias, criadora da Autêntica Editora, no final do século passado, e comecei a publicar umas coisinhas de minha própria autoria e, logo em seguida, também uma ou outra tradução. Mas a grande mudança, que me jogou de cheio no campo da tradução literária, se deu em 2011, um ano antes de a obra de Virginia Woolf entrar em domínio público. Foi ideia da Rejane. Hesitei. Nunca havia traduzido ficção. E tampouco era um grande leitor de ficção, embora na minha pré-adolescência, antes de ser expulso do seminário onde estudava para ser padre, devorasse os volumes da obra de Karl May, publicados na época pela antiga Editora do Globo, de Porto Alegre. (Quem foram suas tradutoras e seus tradutores? Quase anônimos!) Minha paixão sempre foi a poesia.


Mas a coisa pareceu ter dado certo. Porque não parei mais de traduzir Virginia, com uma ou outra pausa para traduzir algum outro livro, como, por exemplo, Um retrato do artista quando jovem, de Joyce. Nesse meio tempo, veio a pandemia, quando estava na metade da tradução de As ondas. O mais difícil de todos. Como aconteceu com outros livros de Virginia, tinha a vantagem de ter acesso à edição de seu rascunho, que me ajudou a resolver muitos problemas. E, com a pandemia e ziquiziras várias, fiquei impedido de fazer as minhas tradicionais notas. E até anunciei que era o último. Não foi. Depois dele, ainda traduzi Entre os atos e organizei a coletânea Uma prosa apaixonada. E o que vem por aí não posso revelar.


Imagino que cada tradutor ou tradutora tenha o seu próprio método de trabalho. O meu é muito simples. Antes de começar a traduzir, reúno todo o material que posso coletar. No caso dos livros de Virginia, a literatura é imensa. Coleciono e leio o que posso. Como já disse, se existe o rascunho, vou atrás. Não faço uma leitura prévia do livro todo. Leitura e tradução vão juntas. Se já existe outra tradução em português ou em língua que eu leia (espanhol, italiano, francês), tento obtê-la e confiro. Se for muito boa, só confiro depois de fazer a minha própria tradução. Se for ruim, descarto logo no começo. No caso de As ondas, por exemplo, logo deixei de lado as outras traduções que eu tinha, exceto uma italiana bastante antiga e que era surpreendentemente boa.


Além dos ensaios existentes sobre o livro, consulto o tempo todo os meus dicionários de preferência. Antes de mais nada, o Oxford, claro. Depois, os dicionários bilíngues Michaelis e Porto Editora. E fico o tempo todo em conexão com a Internet. No caso da obra da Virginia, quase toda ela foi e continua sendo analisada sob os mais diferentes pontos de vista, embora, obviamente, o texto crítico pesquisado não vá dar diretamente a solução para uma passagem difícil, mas ele pode dar uma pista, ainda que indireta e parcial.


E por falar em passagem difícil e para ficar numa tradução mais recente, a minha preferida é de As ondas:


There is a square; there is an oblong. The players take the square and place it upon the oblong. They place it very accurately; they make a perfect dwelling-place. Very little is left outside. The structure is now visible; what is inchoate is here stated; we are not so various or so mean; we have made oblongs and stood them upon squares. This is our triumph; this is our consolation.

Há um quadrado; há um oblongo. Os músicos pegam o quadrado e o põem sobre o oblongo. Eles o põem muito acuradamente; eles fazem uma perfeita morada. Muito pouco é deixado de fora. A estrutura é agora visível; o que é incipiente é aqui afirmado; não somos tão diversos ou tão mesquinhos; fizemos oblongos e os pusemos sobre quadrados. Este é o nosso triunfo; este é o nosso consolo.


O que isso significa? Não sei. Ninguém parece saber. Li, na crítica literária sobre As ondas, pelo menos vinte interpretações divergentes. O poeta W. H. Auden, que reproduz o trecho na epígrafe de um capítulo de um de seus livros, escreveu: “é a melhor descrição que conheço sobre o processo criativo”.


Essa é, talvez, a característica principal da obra literária, a essência da literatura: a incerteza, a polissemia, a dubiedade… E, por tabela, a da tradução literária. Este é o nosso triunfo; este é nosso consolo.”


Tomaz Tadeu

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