A realidade entre a distopia e a metáfora

Equipe - Publicado na categoria Entrevistas em 15/07/2022




Maria José Silveira é um nome forte da literatura contemporânea brasileira. Sua produção de contos e de livros infantis e juvenis já foi reconhecida por diversos prêmios. Em 2002, recebeu o prêmio APCA Revelação por seu primeiro romance, A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas e, em 2021, foi finalista dos prêmios Oceanos e Jabuti com Maria Altamira.

Seu novo romance, publicado pela Autêntica Contemporânea, pode ser descrito como uma narrativa distópica e metafórica, que mescla humor, sensualidade e crítica social. Em Aqui. Neste lugar., a autora faz referência à geografia brasileira, à fauna e à flora amazônicas, além de homenagear Mário de Andrade e nossa literatura modernista.

Em entrevista ao Blog do Grupo Autêntica, Maria José Silveira revelou os segredos e inspirações por trás de sua literatura, que transita por diversos espaços, mas com um único propósito: causar impacto na vida das pessoas. Confira:

Em que momento nasceu a fagulha para escrever este romance? Ele se transformou muito ao longo do processo de escrita?
Este livro é completamente diferente de todos os que já escrevi. Só posso tentar explicar essa mudança se contar que a fagulha (como você diz) para escrevê-lo nasceu em um momento doloroso para mim, quando meu irmão mais velho estava em um hospital, sem perspectiva de sair. Eu não queria pensar na realidade que se aproximava e, como uma escritora não vive sem escrever, me apareceu a ideia de criar um mundo diferente, onde o mito indígena da Terra Sem Males fosse defendido pelos seres míticos do nosso folclore e lendas. O que foi muito bom, pois me tirou um pouco da angústia e da ansiedade que eu estava enfrentando. É curioso pensar que a literatura tem esse poder de atenuar sofrimentos, tanto para quem escreve como para quem lê. Mas é o que vemos acontecer quase todos os dias.

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“Aqui. Neste lugar.”, de Maria José Silveira, é uma homenagem à literatura modernista e a Mário de Andrade. O livro também celebra a força da natureza, os mitos amazônicos e os povos originários brasileiros.


Aqui. Neste lugar. é uma homenagem à literatura modernista e a Mário de Andrade. Uma das provas disso é a existência dos personagens Macu e Naíma, mas existem outros. Qual é o papel e a importância do movimento modernista e do autor paulistano em sua vida como leitora e, principalmente, como escritora?

Mário de Andrade, assim como Oswald de Andrade, são paixões antigas. Li-os quando bem jovem e cada um à sua maneira teve grande influência em minha vontade de escrever. Mas acabou sendo o Mário o que está mais presente comigo quando escrevo um romance. Tenho outro livro, Pauliceia de mil dentes, cujo título é uma homenagem a ele. E é também a ele e a seu formidável Macunaíma que dedico o Aqui. Neste Lugar., um romance cuja narradora é Ci, Mãe do Mato, personagem de Macunaíma, já transformada por Mário na estrela Beta do Centauro. É também de onde tomo emprestado alguns personagens dele, como Véi, a Sol, os gêmeos Macu e Naíma, além de ditos e expressões populares, usados pelo livro todo. Levá-los para o meu romance foi uma alegria só.

Aqui. Neste lugar. é seu oitavo romance e explora um universo distópico, diferentemente de obras anteriores, como A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas e Maria Altamira, mais calcadas na realidade. Todos esses livros fazem fortes críticas sociais, mas em Aqui. Neste lugar. isso é feito de forma metafórica. Como foi percorrer um caminho literário diferente neste novo trabalho?
Tampouco sei explicar bem, mas acho que este livro estava dentro de mim há algum tempo, ainda que eu não tivesse consciência disso. Ele foi surgindo, à medida que eu o escrevia, de uma maneira que parecia natural. Pode ser até contraditório com o que eu disse na primeira pergunta, mas quando eu me concentrava para escrevê-lo, eu conseguia mergulhar nesse outro universo e, de certa forma, me esquecer dos problemas. Pensando bem, talvez não fosse contraditório, e sim uma maneira possível de me fortalecer para enfrentar a morte do meu irmão.

Quanto à questão da crítica social, que está em todos os meus romances, aparecer neste como metáfora, creio que também foi algo natural. Eu sou essa escritora que, para o mal ou para o bem, está sempre voltada para as grandes contradições que afligem nosso país. A questão indígena, a herança da escravidão, a questão da terra, as desigualdades, a violência, a opressão, toda essa mistura odiosa que nos trouxe até aqui sem que a tenhamos resolvido.

Nesse novo romance, o mito da Terra Sem Males representa tudo o que poderíamos ser e ainda não somos, e a ameaça que essa Terra sempre sofreu e ainda sofre está, mais do que nunca, engatilhada contra nós. E aí entra a união de nossos verdadeiros mitos e lendas com toda a natureza que nos envolve e nos salva. Já que nós não estamos sendo capazes de nos salvarmos sozinhos, a mata, a terra, as águas, a cultura vêm nos ajudar. Quero acreditar que, com a força desses grandes aliados, tudo será possível.

Um personagem comum a todos estes livros é a natureza. Aqui. Neste lugar. soa como uma celebração de sua força e exuberância, da terra como lugar sagrado. Já A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas e Maria Altamira traçam um retrato mais duro da exploração ambiental. Você acredita que, um dia, possamos voltar a um tempo em que esses territórios deixem de ser profanados? A literatura pode ajudar nesse processo?
Sou, por natureza, otimista. Ou talvez fosse mais exato dizer que, por puro pavor, não consigo ser pessimista. Nos dias de hoje, com tudo que anda nos acontecendo, às vezes as minhas defesas cambaleiam e me deixam chegar aos limites desse pavor, mas resisto. Se minha literatura tem alguma força, talvez venha exatamente disso, de um olhar que, por mais cambaleado que esteja, ainda consegue ter uma perspectiva de um futuro bem melhor, mais alegre e justo. Quando recebo o feedback das pessoas que me leem e me falam que se identificaram com o que escrevo, gosto de pensar que as ajudei nesse processo do qual você fala. E penso isso porque, justamente, os livros que li e amei me marcaram profundamente. Não seria quem eu sou se não tivesse lido os livros que li. Os romances, as poesias, os contos foram essenciais para minha formação, não tenho nenhuma dúvida quanto a isso. Portanto minha resposta é sim. A literatura é nossa grande aliada, tanto com os escritores que nos antecederam como com os nossos contemporâneos.

Seus livros trazem também personagens femininas muito fortes. Em Aqui. Neste lugar. ganham vida, principalmente, pelas Icamiabas, as guerreiras que jogam para a morte os recém-nascidos machos. Como é, finalmente, poder escrever e, principalmente, encontrar um público leitor para histórias protagonizadas por mulheres que se distanciam das representações que durante tanto tempo foram impostas a elas?
Pensando em tantas escritoras que sofreram o ostracismo por serem mulheres, acredito que hoje estamos estraçalhando – com ganas – os véus da invisibilidade feminina. Há um público grande – de mulheres e homens – muito interessado no que estamos escrevendo. Desde que lancei meu primeiro romance, A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, esse público me acolhe com atenção e afeto, o que me faz pensar que, de fato, é algo que temos que fortalecer e mostrar que as mulheres sempre foram protagonistas da história de nosso país e, se isso era impedido de aparecer, que apareça agora, como está aparecendo. As mulheres têm muito o que dizer e o estão dizendo com brilhantismo.

Como sua biografia se entrelaça com as histórias que você cria?
Essa é uma excelente pergunta, mas difícil de responder em pouco tempo e espaço. Já escrevi um livro sobre isso, De onde vêm as histórias, publicado por uma linda editora que não existe mais. Embora nenhum dos meus livros seja autobiográfico, posso responder que todos estão, com certeza, entrelaçados com minha biografia. Isso porque acredito que tudo que escrevemos vem do lugar onde passamos nossa infância, adolescência, juventude e amadurecimento, das experiências e traumas que vivemos, das nossas dores e alegrias, do que observamos, estudamos e lemos, tudo isso que forma nossos interesses, nossos sentimentos e emoções, nossos desejos e paixões. Somos uma complexa e misteriosa mistura de tudo que vivemos e é daí que vêm as nossas histórias. É a partir de nossa vida – portanto nossa biografia – que nossa literatura existe. Já disse outras vezes e é nisto que acredito: ninguém foge de sua vida, muito menos o romancista. No caso do Aqui. Neste lugar. já falei nas respostas anteriores que ele veio de um tempo particularmente doloroso, do meu amor por Mário de Andrade, das minhas inquietações políticas, mas ainda não falei que veio também de minha formação como antropóloga, das histórias que ouvia quando criança, das minhas leituras sobre os mitos amazônicos e lendas do nosso folclore, do meu apaixonado interesse por todas essas coisas com as quais criei esse romance.

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