“Vivemos muitas mortes durante a vida”: Silvana Tavano fala sobre seu romance de estreia

Equipe - Publicado na categoria Entrevistas em 24/03/2023


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A dor de uma vida que termina e a iminência de uma vida que toma forma: esse é o paradoxo que acompanha Beatriz em O último sábado de julho amanhece quieto, romance publicado pela Autêntica Contemporânea. Em meio a uma sonhada gestação e a perda repentina do seu companheiro, a protagonista do romance de Silvana Tavano enfrenta um processo transformador para contornar a experiência do luto e reconstruir novas possibilidades de maternidade.

Tradutora, Beatriz encontra na linguagem um ponto de partida para a elaboração dos sentimentos que atravessam a vivência do luto. Entre a angústia, o vazio, o remorso e as novas perspectivas, a personagem reconfigura seu cotidiano e suas relações, buscando encontrar um novo chão entre um fim e um recomeço.

Com narrativa primorosamente poética, O último sábado de julho amanhece quieto é o primeiro romance de Silvana Tavano, já conhecida por seus livros voltados para o público infantil. Em entrevista para o Blog do Grupo Autêntica, a autora compartilha mais sobre as raízes do livro e seu processo criativo:


O enredo de O último sábado de julho amanhece quieto parte de uma dualidade: a personagem enfrenta, no mesmo período, a partida do marido e a iminência da chegada do filho. De onde partiu a inspiração de explorar, em seu romance de estreia, as esferas da ausência e da presença?
Vida como presença, morte como ausência, essa dualidade nos acompanha o tempo todo. A morte só existe porque há vida, e a vida é um percurso rumo à morte; mas não só, porque as duas esferas se tocam e em muitos momentos os limites são borrados. Quis incorporar essa ideia em personagens: Cristiano se faz presente pela ausência, e o bebê que cresce vai rompendo o silêncio com sua presença.


Um dos elementos que contribuem com a potência da protagonista Beatriz é a complexidade dos processos pelos quais ela passa, permeados pela culpa, expectativas, medos, frustrações e desejos. Como essa personagem nasceu?
Nasceu do desejo de falar sobre finais e recomeços. Vivemos muitas mortes durante a vida – o fim de um casamento, a carreira interrompida por uma demissão, a ruptura de uma longa amizade, como a que a personagem vive quando impõe distância e limites ao relacionamento abusivo com a amiga de infância. Cada um desses lutos traz a sua dose de culpa, medos, raiva, dor. Mas sempre há um recomeço, um novo ponto de partida, e uma mulher que vive a perda do companheiro ao mesmo tempo em que carrega uma nova vida me pareceu a personagem perfeita para colocar essa ideia em cena.


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A narrativa do livro, construída a partir de capítulos breves e trechos não lineares, aproximam o leitor da sensação de suspensão da vida externa proporcionada pelo luto. Como se deu o processo de construção dessa temporalidade?
As semanas de gestação guiaram a narrativa como um marcador da passagem do tempo, mas não só – busquei no tempo da própria gestação uma forma dar corpo ao processo de transformação de todas as coisas: a dor de uma perda brutal se ameniza abrindo espaço para alegrias inesperadas. Também foi intencional “pular” semanas para retratar intervalos de silêncio, dias suspensos, como que nublados, sem uma sequência lógica, períodos em que a vida acontece, silenciosa, dentro de uma mulher grávida mas não se realiza nem encontra eco fora dela.


Para além da gravidez, a protagonista do livro enfrenta também questões provenientes de uma relação conturbada com a própria mãe. Quais os desafios que surgem ao narrar uma história que questiona a idealização da maternidade?
Essa visão romântica da maternidade vem sendo desconstruída há muito tempo. Nem toda mulher deseja ser mãe ou deixa de se sentir realizada por não ter filhos. O movimento feminista felizmente deu voz a outros desejos e mudou esse discurso que, antes, parecia nortear a vida de todas as mulheres – já não é um destino, mas uma escolha. Apesar dos conflitos com a mãe, Beatriz deseja um filho, mas por conta do luto se vê desconectada do amor maternal que, talvez imaginasse, nasceria magicamente com a gravidez. Ela leva um tempo para se ligar ao bebê, é uma construção, e se dá aos poucos, assim como a relação com a mãe, antes distante. É quase como se duas mães nascessem juntas, Beth sendo mãe de Beatriz, e Beatriz se preparando para ser mãe de um bebê.


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Além de uma citação da poeta argentina Alejandra Pizarnik na epígrafe do livro, a poesia também se faz presente ao longo da história, como no encontro da personagem com o livro de Mario Benedetti. Como autora, de que forma essas produções poéticas atravessaram o seu processo criativo na escrita de O último sábado de julho amanhece quieto?
Como a personagem, sou leitora de poesia e não só esses como muitos poetas que admiro certamente contaminam o meu processo criativo. Quando escreve nos seus cadernos, Beatriz tenta dar corpo à dor, busca palavras que traduzam e condensem essa dor, e isso tem muito a ver com a força e a concisão da poesia. Ela é tradutora, e não por acaso se debruça sobre os escritos de Pizarnik, marcados por sombras e pelo vazio em que ela se vê ao longo do seu luto.


Com a publicação do seu primeiro romance, você tem planos de se dedicar à produção de uma nova obra?
O segundo já está quase pronto. É um projeto bem diferente do Sábado, em que lanço mão de reflexões sobre o tempo e a memória para mergulhar na vida de uma personagem, em seus passados e futuros possíveis e impossíveis.

Tags:  Autêntica Contemporânea


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