Os homens que salvavam livros: leia a introdução do livro

David E. Fishman - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 27/09/2018


Foto de Pilar G.

Vilna, Polônia sob ocupação nazista.

Julho de 1943

O poeta Shmerke Kaczerginski (pronuncia-se “Catcherguínsqui”) sai do trabalho e volta ao gueto. Trabalhador forçado, sua brigada seleciona livros, manuscritos e obras de arte. Alguns itens são despachados para a Alemanha. O resto acaba incinerado ou vai para fábricas de papel. Ele trabalha num equivalente de Auschwitz para a cultura judaica, responsável por selecionar os livros que serão deportados – e os que serão destruídos.

Em comparação com as tarefas que outros trabalhadores forçados fazem pela Europa ocupada pelos nazistas, ele não está cavando fortificações para deter o Exército Vermelho, nem detonando minas terrestres com o próprio corpo, nem arrastando cadáveres das câmaras de gás para os fornos crematórios. Mesmo assim, foi um dia difícil, labutando no saguão cinza da Biblioteca da Universidade de Vilna, cheio até o teto de livros. Naquela manhã, o bruto chefe alemão da brigada, Albert Sporket, do Einsatzstab Reichsleiter Rosenberg, flagrara Shmerke e alguns outros trabalhadores lendo um poema de um dos livros. Sporket, comerciante de gado por profissão, explodiu em gritos furiosos. As veias de seu pescoço saltavam. Brandiu o punho para os trabalhadores e atirou o livro do outro lado da sala.

“Seus ladrões trapaceiros, é isso que vocês chamam de trabalhar? Isso aqui não é uma sala de estar!” Advertiu todos que se aquilo acontecesse de novo haveria sérias consequências. A porta bateu atrás dele quando saiu. Os trabalhadores labutaram nervosos a tarde inteira. O comerciante de gado tratava todos eles e os livros como animais de carga – iria explorá-los até a hora de levá-los ao matadouro. Se Sporket reportasse o caso à Gestapo, estariam todos mortos.

A colega de trabalho e amante de Shmerke, Rachela Krinsky, uma professora de ensino médio alta com profundos olhos castanhos, foi até ele. “Ainda vai carregar coisas hoje?” Shmerke respondeu com seu típico entusiasmo contagiante. “Claro. Esse louco de repente pode decidir levar tudo embora. Ou mandar para o lixo como papel velho. Esses tesouros são o futuro. Talvez não para nós, mas para quem sobreviver.”

Shmerke colocou uma velha capa de Torá bordada em volta do torso. Assim que ela estava no lugar, enfiou quatro livrinhos dentro da nova cinta – velhas raridades publicadas em Veneza, Tessalônica, Amsterdã e Cracóvia. Enfaixou-se com outra pequena capa de Torá como se fosse uma fralda. Ele afivelou o cinto e vestiu a camisa e o paletó. Estava pronto para sair do trabalho e encarar a inspeção no portão do gueto.

Shmerke havia feito isso muitas vezes, sempre com uma mistura de determinação, empolgação e medo. Sabia quais eram os riscos. Se fosse pego, provavelmente enfrentaria uma execução sumária – como ocorrera com seu amigo, o cantor Liuba Levitsky, pego carregando uma mochila de feijão. No mínimo, um SS lhe aplicaria 25 golpes de cassetete ou chicotadas. Enquanto enfiava a camisa para dentro da calça, Shmerke não deixou de perceber a ironia. Afinal, ele, um membro do Partido Comunista e ateu convicto havia muito tempo, que não ia à sinagoga desde criança, estava prestes a arriscar a vida por causa daqueles artefatos, a maioria deles religiosos. Podia sentir o toque de gerações passadas na própria pele.

A fila de trabalhadores que voltavam para o gueto estava muito maior que de costume, dando voltas por dois quarteirões da cidade até chegar ao portão. Veio lá da frente da fila a informação de que o SS Oberscharfuhrer Bruno Kittel estava inspecionando todo mundo pessoalmente no portão. Kittel – jovem, alto, de tez escura e bonito – era um músico competente e um assassino frio, nato. Às vezes entrava no gueto para matar internos por pura diversão. Parava alguém na rua, oferecia um cigarro à pessoa e então perguntava: “Quer fogo?”. Quando a pessoa assentia, tirava a pistola e lhe dava um tiro na cabeça.

Quando Kittel estava presente, os guardas lituanos e a política judaica do gueto eram mais rigorosos. A um quarteirão de distância, dava para ouvir os gritos de internos sendo espancados por estarem levando comida escondida. Os trabalhadores em volta de Shmerke vasculharam dentro da roupa. Batatas, pão, legumes e pedaços de madeira para lenha rolaram pela calçada. Sussurraram advertências a Shmerke; afinal, seu corpo estufado chamava a atenção. Naquela paisagem povoada por corpos famintos e escravizados, seu torso inexplicavelmente robusto se destacava enquanto se aproximava do ponto de inspeção.

“Joga isso fora, joga logo!”
Mas Shmerke não faria isso. Sabia que seria inútil. Se deixasse os livros hebraicos e as capas da Torá largados na calçada, os alemães iriam associá-los à sua equipe. Ao contrário das batatas, os livros tinham ex libris, rótulos que indicavam sua origem e propriedade. Kittel poderia decidir executar a brigada de trabalho inteira – incluindo Rachela e o melhor amigo de Shmerke, o também poeta Abraham Sutzkever. Então Shmerke resolveu arriscar e se preparou para o que pudesse vir.

Todos os demais na fila reviraram de novo os bolsos para ver se não havia moedas ou papéis que pudessem despertar a ira de Kittel. Shmerke começou a tremer. À medida que crescia, a fila passou a bloquear o trânsito na Rua Zawalna, uma das principais vias de comércio de Vilna. Os bondes buzinavam. Pedestres não judeus se juntavam pela rua para assistir ao espetáculo, e alguns aproveitavam para recolher da calçada os itens descartados.
De repente, circularam vozes pela multidão.

“Ele entrou no gueto!”

“Vamos. Rápido!”

Kittel, provavelmente cansado de supervisionar as repetitivas revistas dos corpos, decidira dar uma volta por seu feudo. A fila então avançou rápido. Os guardas, surpresos e aliviados pela saída de Kittel, se viraram para checar aonde ele havia ido e não se incomodaram mais em fazer esforços para deter a multidão apressada. Ao passar pelo portão, com os livros firmemente atados ao corpo, Shmerke ouviu vozes enciumadas dirigidas a ele.

“Alguns têm sorte mesmo!”

“E as minhas batatas ficaram lá na calçada!”

Não sabiam que não era comida o que ele carregava. Com suas botas retinindo contra os paralelepípedos da Rua Rudnicka, a principal do gueto, Shmerke começou a cantar uma canção que compusera para o clube jovem:

Quem quiser sentir-se jovem venha cá,
Pois anos têm aqui pouca importância.
Os velhos também podem ser criança,
Livre e nova é a primavera que virá.

Num bunker secreto bem no fundo do gueto – uma caverna com piso de pedra, escavada no solo úmido –, caixas de lata estavam abarrotadas de livros, manuscritos, documentos, lembranças relacionadas a peças de teatro e artefatos religiosos. Mais tarde naquela noite, Shmerke acrescentou seus tesouros àquele repositório perigoso. Antes de vedar de novo a passagem secreta para aquela sala dos tesouros, deu adeus às capas de Torá e às velhas raridades com uma carícia afetuosa, como se fossem seus filhos.

E Shmerke, sempre um poeta, pensou consigo: “Nosso presente é escuro como esse bunker, mas os tesouros culturais brilham com a promessa de um futuro luminoso”.

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Trecho retirado do livro Os homens que salvavam livros , lançamento de setembro da Editora Vestígio.

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