Psicopatologia da vida cotidiana no século XXI

Equipe - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 02/05/2023


Publicada na forma de livro pela primeira vez em 1904, a obra Psicopatologia da vida cotidiana é o mais novo volume da coleção Obras incompletas de Sigmund Freud, lançado pela Autêntica Editora, com coordenação de Gilson Iannini e Pedro Heliodoro Tavares. Trata-se de uma obra que, ao lado de A interpretação dos sonhos e Os chistes e sua relação com o inconsciente, compõe o essencial da doutrina freudiana e nos apresenta as relações entre mecanismos psíquicos e linguísticos.


A nova edição da Vida cotidiana, como Freud gostava de se referir à sua obra, conta um esforço de tradução direto do alemão, atento ao uso dos conceitos pela comunidade psicanalítica brasileira – afinal, trata-se de uma prática clínica. As notas de tradução e de revisão inseridas no rodapé, diferencial deste volume, constituem ferramenta indispensável para nos aproximarmos dos mais de 300 exemplos ofertados no livro. Os textos de apresentação e posfácio oferecem um caminho para situar em que pé estamos, no século XXI, com a chegada deste sucesso editorial, o mais reeditado de Freud.


“A ordinária desordem do sujeito comum”, apresentação de Gilson Iannini e Pedro Heliodoro Tavares, faz uso de um “ato falho do século”, amplamente noticiado por jornais do mundo todo como um “freudian slip”, para nos lembrar como o gênio e a coragem de Freud levaram ao sucesso da psicanálise na cultura. Desde então nossos deslizes e falhas, antes tomados como simples defeitos da “máquina”, passaram a suscitar curiosidade por sua ambiguidade: neles dizemos algo que preferiríamos manter oculto (inclusive de nós mesmos).


O posfácio escrito por Vera Iaconelli nos ajuda a alcançar a importância que a Psicopatologia da vida cotidiana adquire em nosso tempo, no qual a subjetividade se mostra “achatada na espessura de uma imagem”: com cada vez mais frequência esquecemos de escutar as formações do inconsciente na vida ordinária. A psicanalista nos lembra como os sofrimentos de nosso dia a dia têm sido mal assistidos, “transformando a dor do viver em sintoma e reduzindo seu tratamento à medicalização”. Presenciamos o recalque – um não querer saber que se sabe – da descoberta freudiana trazida à luz há mais de 120 anos.


Por isso, parece ser uma boa hora para a nova edição de Psicopatologia da vida cotidiana, que nos leva a retomar o contato com experiências muito comuns em nossa vida ordinária.


Caráter popular da Vida cotidiana



Este escrito foi mantido com o caráter inteiramente popular, visando apenas, através de uma acumulação de exemplos, aplanar o caminho para o necessário pressuposto de processos anímicos inconscientes e, ainda assim, eficazes e evitar todas as considerações teóricas sobre a natureza desse inconsciente (Psicopatologia da vida cotidiana, p. 366).



Em diversos momentos nossa leitura se depara com afirmações sobre o valor da “sabedoria popular” para a psicanálise e a sua inclusão junto às “aquisições da ciência”. Freud procede por um movimento que busca tornar menos nítidas as linhas de fronteira entre a concepção psicanalítica e a popular dos atos falhos, e nos apresenta uma coleção de exemplos próprios e de colegas, dos quais podemos extrair temas como: o envelhecer, a morte, a sexualidade, o tão conhecido sumiço das chaves ou até mesmo aquela “topada” com o desconhecido pela rua, com quem dançamos, mas não conseguimos desviar.


Trabalho de escrita e reescrita ao longo de um quarto de século, a Psicopatologia da vida cotidiana pode ser apresentada de maneira esquemática como organizada em três grandes blocos e um capítulo de fechamento. Ao longo deste percurso, Freud enfrenta o paradoxo de aplicar a psicopatologia a fenômenos triviais, não patológicos, ao passo que nos lança uma aposta no caráter tênue e artificial das fronteiras entre o normal e o patológico.


O primeiro bloco, constituído pelos capítulos I a IV, é dedicado à memória e ao esquecimento. Nos capítulos V e VI encontramos o segundo bloco, voltado para os lapsos de linguagem. Freud nos oferece, a partir de um estudo aprofundado do esquecimento no capítulo VII, uma ponte que serve de passagem para o movimento que se encaminha para o último bloco. No terceiro bloco, entramos nos atos falhos no domínio da ação com os capítulos VIII a XI.


O último capítulo (XII) configura uma espécie de salto que vai dos exemplos da vida ordinária para uma abordagem propriamente metapsicológica sobre temas como o determinismo inconsciente, o acaso e a superstição. Freud nos apresenta a seguinte visão a partir do resultado geral das discussões anteriores: certas insuficiências de nossas operações psíquicas e algumas execuções de aparência não intencional revelam, a partir do procedimento psicanalítico, estarem determinadas por motivos desconhecidos à consciência, oriundos do recalque – um “anseio universal” de esquecer o desprazer.


Em outras palavras, motivos desprazerosos anseiam manifestar-se na vida psíquica enquanto forças em sentido contrário os impedem de se estabelecerem regularmente. A partir de mecanismos inconscientes correspondentes àqueles empregados no trabalho do sonho, os motivos desprazerosos encontram passagem pela via da desfiguração. Volta e meia nossa leitura é levada a aproximar atos falhos, sonhos e chistes.


Freud elenca algumas condições de inclusão na classe dos fenômenos dos atos falhos, tais como: termos o caráter de perturbação momentânea e passageira de uma operação que acreditamos sermos capazes de executar; reconhecermos de imediato quando somos corrigidos; quando chegarmos a perceber o ato falho, não devemos sentir nenhum vestígio de sua motivação, sendo levados à tentação de explicá-los como “desatenção” ou casualidade.


Assim, os atos falhos são cometidos apesar de se saber realizar a ação: é o caso do esquecimento Vergessen, dos erros Irrtümer, dos lapsos verbais Versprechen, de leitura Verlesen e de escrita Verschreiben, além dos equívocos na ação Vergreifen e as ações casuais Zufallshandlungen, explorados através dos exemplos ao longo do livro. Freud reconhece que a composição com o prefixo “ver-” indica, na maioria desses fenômenos, uma identidade linguística interna – algo que falha, desliza, se transforma em outra coisa, como podemos ler na fortuna crítica que acompanha a tradução do volume.


Atos falhos e suas “trilhas calculáveis”



Subestimamos Verkennen o alcance do determinismo na vida psíquica ao expormos uma parte de nossas operações como inexplicáveis. Longe de incorrer neste erro, Freud procura explicar as motivações e os mecanismos implicados no fenômeno dos atos falhos.


Para isso, sua escrita nos conduz por um movimento que vai de exemplo a exemplo. Freud parte da apresentação do caso paradigmático Signorelli, um episódio típico de esquecimento com falha na lembrança que está para a Vida cotidiana como o sonho da injeção de Irma está para a A interpretação dos sonhos. Com esse exemplo, Freud destaca os motivos e mecanismos do ato falho.


Freud postula que ao lado do simples esquecimento existe um certo tipo que é motivado pela influência do que foi recalcado, algo que se quer esquecer, geralmente ligado a pensamentos capazes de suscitar afetos intensos e penosos, como aqueles associados ao tema da Morte e da Sexualidade. Os mecanismos explorados no caso Signorelli envolvem, por exemplo, processos de deslocamento na produção de nomes substitutos (lembrados erroneamente), relações de homofonia e semelhança acústica, tradução de sílabas, bem como uma associação externa entre o que escapa da lembrança e o recalcado.


A premissa de Freud, que nos acompanhará ao longo de todo o livro, é de que o mecanismo de deslocamento presente no ato falho “segue trilhas calculáveis e previsíveis”. A passagem por cada caso assinalado faz emergir da leitura do texto freudiano uma espécie de gramática para entender a sintaxe e a semântica do inconsciente – essa língua estrangeira que fala em nós pelos sonhos.


No exemplo paradigmático Signorelli, nos é apresentado um ato falho que irrompe no curso de uma conversa com o esquecimento de um nome que fora perturbado por influência de um tema falado no momento imediatamente anterior. Trata-se de uma relação de contiguidade temporal: o novo tema sofreu uma perturbação pelo efeito continuado do tema precedente, que estava ligado a um pensamento recalcado sobre o suicídio de um paciente – notícia que queria esquecer.


Freud opera um movimento de diferenciação do caso paradigmático Signorelli a partir de um novo exemplo sobre o esquecimento de palavras estrangeiras. Trata-se de uma perturbação que acontece a partir do interior do tema abordado por fazer emergir inconscientemente uma contradição contra a ideia de desejo nele figurado. Aqui, um jovem proclama a vontade de ter descendentes e é tomado por um pensamento contrário – “Isso não é verdade” – que o leva a esquecer um pronome indefinido. Nesse paradigma, temos um esquecimento por uma contradição interna ao próprio pensamento que provém do recalque (o que não se quer saber).


É curioso o procedimento freudiano: parte de um exemplo típico o diferencia a partir de um novo exemplo, constituindo dois paradigmas nos dois primeiros capítulos (contiguidade temporal e contradição interna). Nos capítulos que seguem, não nos deparamos mais com casos isolados, mas com uma abundância de exemplos. Um movimento que vai do caso típico à multiplicidade. Aos poucos Freud vai construindo as tênues fronteiras descritivas artificiais que distinguem esquecimentos, lembranças encobridoras, lapsos verbais, de leitura e de escrita, ações equivocadas e ações sintomáticas, além do “mais frouxo de todos os atos falhos”: o erro.


Em contato com as ciências da linguagem de sua época, Freud levanta questões sobre a influência dos mecanismos “pré-formados” representados pelas leis a partir das quais os sons produzem seus efeitos nos fenômenos dos atos falhos e situa ao lado destes as perturbações motivadas por um conteúdo inconsciente recalcado. Reúne os próprios achados anteriores acerca da função do lembrar para interrogar o enigma da amnésia infantil e a natureza duvidosa de nossas impressões. Questiona a crença no acaso ao explorar seus exemplos e demonstra a presença de uma determinação inconsciente em nossas escolhas mais corriqueiras. Problemas como estes poderiam parecer inacessíveis ao público leigo, se não se tratasse de um escrito “mantido com caráter inteiramente popular” através de uma coleção de deslizes tão comuns.


A lembrança encobridora do homem – inibido em sua vida amorosa – que não se lembrava de ver a mãe grávida de seu irmão mais novo; a ação equivocada do rapaz enamorado diante da jovem admirada; o tema das chaves perdidas; a brincadeira de retirar e colocar o anel de casamento do dedo; a leitura de Psicopatologia da vida cotidiana nos faz lembrar do efeito continuado do inconsciente em nossas vidas, com sua insistência em se revelar quando menos esperamos.


Humildade: falhas e deslizes



Em contraste com quem aponta nas falhas a aberração, o irracional, Freud nos oferece um olhar atento, generoso, que considera a influência do que queremos esquecer e que retorna como perturbação de nossas funções mais básicas, como os movimentos corporais e a fala. Faz lembrar da cena de Chaplin em Tempos modernos, quando um operário se “equivoca” desastradamente e deixa cair sua imensa caixa de ferramentas no meio das engrenagens da fábrica, provocando a interrupção da produção.


A aposta lançada por Freud, renovada com a publicação de Psicopatologia da vida cotidiana, nos chama a não tomar o acaso como mero acaso, muito menos projetar para fora uma motivação para aquilo que nos escapa, mas investigar dentro, reconduzir o acaso ao próprio pensamento. Propõe o esforço de trazer à consciência os motivos desprazerosos para os quais insistimos em nos tornar surdos, o que pode servir de trilha para o alívio de algumas de nossas perturbações. Os exemplos assinalados na obra expõem de modo insistente que quanto mais nos esforçamos para esquecer os conflitos que decorrem de tais motivos, mais abundantes se tornam os “mal-entendidos” com os quais nos deparamos.


Nada mais oportuno para um século XXI “em busca de respostas sobre si na Inteligência Artificial” do que o “oásis de encantamento e humildade” da obra freudiana, como nos diz Vera Iaconelli em seu texto que fecha o volume.


Fillipe Mesquita
Psicanalista e mestrando vinculado à área de concentração em Estudos Psicanalíticos do PPG-PSI UFMG

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