“Lugar de mulher é online e onde mais ela quiser" é um livro essencial para todas nós

Patrícia Campos Mello - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 21/10/2022


A apresentação da edição brasileira de Lugar de mulher é online e onde mais ela quiser, de Nina Jankowicz, foi escrita por Patrícia Campos Mello, jornalista vítima de agressões virtuais ao publicar reportagens denunciando crimes eleitorais e políticos. Mello afirma que o livro de Jankowicz é um ótimo guia para as mulheres contra-atacarem. “Lugar de mulher é online e onde mais ela quiser é um livro essencial para todas nós. A obra ajuda a nos prepararmos para enfrentar essa selva digital e não nos deixarmos intimidar”, escreveu na apresentação. Leia o texto na íntegra:

“Durante muitos anos, tive um pesadelo recorrente. Eu me dava conta de que estava nua no meio de uma multidão de pessoas vestidas. Elas me olhavam horrorizadas. Eu sentia uma vergonha tão grande que me queimava o rosto. Queria sair correndo, procurava minha roupa, tentava me cobrir com as mãos. Acordava assustada.

Um dia, esse pesadelo virou realidade – nas redes sociais.

Eram centenas de memes. Um deles tinha a imagem de uma mulher pelada, de pernas abertas, em cima de uma pilha de notas de dólares, sendo chamada de piranha – o rosto da mulher era o meu. Tinham feito uma montagem. Em outro, puseram uma foto minha, com a legenda: “Folha da Puta – tudo por um furo, você quer o meu? Patrícia, Prostituta da Folha de S.Paulo – troco sexo por informações sobre Bolsonaro”. Em um terceiro, outra foto minha, com a legenda: “Ofereço o cuzinho em troca de informação sobre o governo Bozo”. Havia até um vídeo, uma montagem muito tosca, em que “eu” aparecia tentando seduzir uma fonte. Essas imagens estavam no Twitter, no Facebook, nos grupos de WhatsApp, no Instagram.

Passei a receber uma avalanche de mensagens e comentários horrorosos, com teor pornográfico: “Você tava querendo dar a buceta para ver o notebook do cara kkkkkkk então você chupa piroca por fontes?”, dizia um usuário do Facebook.

O gatilho para essa onda de ofensas foram declarações misóginas de políticos, compartilhadas por eles em vídeos, tuítes, lives, posts. Um deles era o presidente da república, Jair Bolsonaro, que insinuou, ao vivo para milhões de pessoas, que eu oferecia sexo para conseguir informações exclusivas.

Esse vídeo viralizou.

Alguns dias antes, um dos filhos do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, havia feito vídeos dizendo que eu tinha me insinuado sexualmente para uma fonte para tentar prejudicar o Bolsonaro. Compartilhou em todas as redes, inclusive no Twitter, onde ele tem 2,2 milhões de seguidores.

Isso tudo começou com um comentário machista de uma fonte de uma reportagem. Em um depoimento no Congresso, a fonte contou diversas mentiras, entre elas a de que eu teria tentado obter informação “a troco de sexo”.

As declarações dele foram desmentidas de forma cabal, com provas concretas. As entrevistas com ele haviam sido gravadas, com a sua permissão; as fotos e a planilha que ele mandou tinham sido salvas, assim como todas as trocas
de mensagens.

Mas nada disso importou. Nas redes sociais, uma mentira viaja muito mais rápido do que uma correção. E a internet
se tornou um centro de assassinato de reputação de mulheres.

Não fui a primeira jornalista a sofrer esse tipo de ataque misógino online. Minhas colegas jornalistas Miriam Leitão, Vera Magalhães, Daniela Lima, Maju Coutinho são constantemente difamadas.

Só que essas agressões não se restringem a jornalistas, nem a pessoas públicas. Qualquer mulher que “ouse” expor suas opiniões nas redes sociais, publicar fotos ou vídeos, elogiar ou criticar, transforma-se em alvo.

Os ataques online contra as mulheres têm sempre um caráter misógino: dizem que são feias, gordas, velhas ou que usam sexo para subir na carreira; expõem seus filhos, maridos ou pais. Dificilmente há críticas sobre o trabalho da mulher ou discordância saudável sobre pontos de vista. Tem sempre a ver com a aparência, com estereótipos, com raça, com gênero. Tudo é ainda mais agressivo quando os ataques são voltados contra mulheres negras ou trans.

As redes sociais se tornaram um ambiente tóxico para todas as mulheres. E por isso este livro de Nina Jankowicz é tão importante. Como todas nós, Nina sofreu assédio sexual online. Não importa que ela seja uma pesquisadora respeitada, que tenha assessorado o governo ucraniano e trabalhado com programas de combate à desinformação no Departamento de Segurança Interna do governo dos Estados Unidos. Que seja autora de um elogiado livro sobre as estratégias de guerra de informação da Rússia.

Nas redes sociais, os homens se sentem autorizados a ofendê-la, comentar sobre sua aparência, especular sobre sua orientação sexual. Já criticaram seus seios, seu nariz, disseram que ela havia engordado. “Sua puta, largue esse emprego antes que a gente destrua sua vida”, ameaçava uma das mensagens, depois do anúncio de que ela assumiria um novo cargo no governo.

O objetivo desses ataques é calar as vozes femininas, excluir as mulheres do debate público ao desqualificá-las. E esse tipo de ataque coordenado online atrapalha, de fato, nossa capacidade de fazer nosso trabalho. Um tempo atrás, o então embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, compartilhou no Twitter uma entrevista que eu tinha feito com ele. Em alguns minutos, havia dezenas de comentários no tuíte, coisas como: “Mais um furo anal da jornalista de credibilidade parcialmente carnal… com seus orifícios”.

Foi a mesma coisa com o então embaixador americano, Todd Chapman. Ele tuitou uma entrevista que fizera com ele sobre a entrada da tecnologia 5G no Brasil, um tema geopolítico sensível que eu vinha acompanhando como jornalista. O embaixador me marcou na publicação. Em poucos minutos, o tuíte já tinha dezenas de comentários muitos de contas recém-abertas, sem fotos. Diziam coisas como: “Embaixador, use duas camisinhas, uma por cima da outra, para falar com a jornalista”.

Esse tipo de campanha de difamação visa a minar a credibilidade das mulheres e sua capacidade de desempenhar seu trabalho. Outras agressões têm o objetivo de amedrontar: “Começou, já já vão tomar o que merecem, uma bala no meio da testa. Esconde o furo aí, vadia”, foi o comentário em uma reportagem que compartilhei no Twitter.

Lugar de mulher é online e onde mais ela quiser é um livro essencial para todas nós. A obra ajuda a nos prepararmos para enfrentar essa selva digital e não nos deixarmos intimidar. O livro apresenta desde dicas práticas sobre cibersegurança – senhas, autenticação de dois fatores, proteção contra doxing – até um guia de procedimentos para lidar com agressores. Ensina como reagir a trolls, stalkers, identificar robôs, bloquear ou silenciar perfis, como responder (ou não) às ofensas e denunciar os ataques para as plataformas.

Não bata palma para maluco dançar – a versão brasileira de “não alimente os trolls”, como ensina Nina. Eles são covardes, muitos deles usam identidades falsas e criam contas só para fazer xingamentos e memes. Não dê corda – mas, se necessário, denuncie o comportamento para que as plataformas de internet, nem sempre muito ágeis, tomem providências.

Os agressores digitais querem mandar uma mensagem – vejam o que acontece com as mulheres que investigam, que ousam expor suas opiniões, que têm uma visão de mundo própria, que ganham espaço na vida pública. Elas estão condenadas a reviver seu pesadelo, a serem expostas e vilipendiadas online. A ideia deles é fechar a praça pública digital, a internet, para a voz das mulheres, dos negros, das pessoas LGBTQIA+, das minorias religiosas. É tornar as redes sociais um local tão tóxico que chegue a expulsar essas minorias.

Isso não é liberdade de expressão. Isso é uma espécie de censura, censura por assassinato de reputação.

E este livro de Nina é um ótimo guia para planejarmos o nosso contra-ataque.”

Patrícia Campos Mello é jornalista. Foi correspondente em Washington do jornal O Estado de S. Paulo e atualmente é repórter especial e colunista da Folha de S.Paulo.

Adquira seu exemplar de Lugar de mulher é online e onde mais ela quiser: Como identificar e enfrentar assédios e ataques virtuais e dar o troco nos haters, escrito por Nina Jankowicz

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