"O despertar": um suplemento necessário para a psicanálise no século XXI

Fillipe Mesquita - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 01/06/2023


É curioso observar como um título ou uma breve frase podem cair mais na boca do povo do que a leitura da própria obra que os contém. A relevância tomada pelo título, pela frase, indica que há aí algo que nos interroga a ponto de se repetir sem cessar. É o caso da célebre frase de Francisco de Goya à margem da gravura n.º 43, da série Os Caprichos, que suscitou discussões filosóficas, debates políticos e também serviu de material para a leitura psicanalítica a partir do ensino de Jacques Lacan: O sono da razão produz monstros.

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Imagem: Francisco de Goya – Gravura nº 43 da série Os Caprichos – O sono da razão produz monstros



Em O despertar: Dormir, sonhar, acordar talvez, livro da psicanalista Carolina Koretzky recém-lançado pela Autêntica Editora, a frase de Goya ganha sentidos surpreendentes. Ao interrogar o laço entre o sonho, a realidade e o instante de despertar, a autora nos apresenta um estudo que extrai algumas consequências radicais da doutrina do sonho em Freud e Lacan. O sonho é uma forma de pensamento, por exemplo. Sonhar e pensar, dormir e raciocinar estão em continuidade. Assim, com Lacan: “o sono da razão – é tudo”.


É certo que antes de Freud “o sono da razão” poderia ser lido como uma declaração de irracionalismo. Entretanto, com a psicanálise, os reinos do sono e do sonho se anexam à razão: adormecemos porque habitamos a linguagem, que nos captura em suas leis significantes. O que não quer dizer que, para a psicanálise, a vida seja um sonho. Ao contrário, ao nos mostrar que “o inconsciente ‘transferencial’ não desperta jamais” por ser um “sonho da verdade, uma atribuição de sentido a um encontro aleatório”, Koretzky adverte que devemos permanecer despertos diante de uma tarefa impossível: “nunca se deixar adormecer pelo poder hipnótico dos discursos”. Trata-se de uma orientação clínica que vale para a leitura dos fenômenos sociais.


Nosso século revela de maneira viva o caráter impossível dessa tarefa, o que torna ainda mais necessário o trabalho de Carolina Koretzky e da coleção Psicanálise no Século XXI. A autora assinala o furo na confiança total no discurso científico, até então suposto ser o substituto das tradições religiosas. Acontecimentos como a pandemia de covid-19 constituem uma irrupção que desvela o sentimento infamiliar¹ de desmoronamento que experimentamos nos dias que seguem: não há versão estabelecida, somente burburinhos e rumores.


Se o discurso científico insiste em não deixar falar os reinos do sono e do sonho, reduzindo-os a uma simples modificação da consciência, descarga cerebral do “lixo” da vigília, Koretzky nos oferece uma leitura que devolve ao sono e ao sonho o lugar primordial da tentativa de tratar o impossível, esse real que irrompe quando menos esperamos.


Para isso, o desejo de dormir é interrogado pelas mesmas razões que o desejo de despertar. Partindo dos limites incertos entre sonho e vigília, passando por casos paradigmáticos freudianos para tratar de pesadelos, sonhos de angústia e sonhos traumáticos, Koretzky aborda, ainda, sonhos de campos de concentração e pós-concentracionários, além de vinhetas clínicas que discutem o ultrapassamento do ponto de angústia em momentos avançados do tratamento analítico.


A autora enfrenta perguntas como: qual é a função do sono, do sonho e do despertar diante de um horror? Como o sonho permite fazer frente à irrupção de um real? A análise é uma terapêutica ou um despertar? Quem dorme e quem sonha? Para que serve sonhar? Para que serve dormir? Que vínculo une sonhar e dormir? Qual é a função do sonho? O que se satisfaz no sonho? Quais são os motores e os perturbadores do sonho e do sono? O que é que desperta?


Duas teses são interrogadas ao longo do livro: 1) despertamos para continuar a dormir na realidade; 2) não se desperta nunca. A partir de cada uma delas desdobram-se perspectivas distintas em torno do inconsciente e do tratamento em psicanálise. Nas seções “A psicanálise que começa” e “A psicanálise que dura”, encontramos o valor clínico dessa distinção.


Como Serge Cottet assinala no prefácio que acompanha o volume, ao tomar o sonho por aquilo que o interrompe, O despertar faz um giro na função do sonho e dá uma nova orientação aos fenômenos da clínica. Na clínica não é a realidade que nos desperta, já que a realidade está enquadrada pela tela da fantasia. O que nos desperta é a palavra.


Carolina Koretzky nos mostra que se, por um lado, “não se deve despertar os cães adormecidos”, afastando a psicanálise do “desejo de profilaxia ou de prevenção”, por outro, a prática do corte, a sessão curta, a interpretação pelo equívoco e a travessia da fantasia testemunham “o esforço de Lacan em buscar uma porta de saída para o adormecimento generalizado”.


¹ A palavra-conceito das Unheimlich, cunhada por Freud e mencionada por Carolina Koretzky em seu prefácio à edição brasileira, é aqui traduzida por “infamiliar”, conforme o texto homônimo de 1919 publicado em edição bilíngue pela Autêntica Editora, na coleção Obras incompletas de Sigmund Freud. Trata-se do “núcleo” da angústia, sentimento vertiginoso de indeterminação no seio da identidade.



Fillipe Mesquita
Psicanalista e mestrando vinculado à área de concentração em Estudos Psicanalíticos do PPG-PSI UFMG

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