A voz que gritou por verdade: conheça a história de Clarice Herzog

Equipe - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 31/03/2023


O golpe militar de 1964 completa hoje 59 anos. E, se ainda resta muito a esclarecer sobre as violências cometidas pelo Estado brasileiro durante a ditadura, muito mais falta revelar sobre as mulheres que estavam ao lado daqueles que tombaram.


São mães, irmãs e esposas de pessoas que se posicionaram contra o autoritarismo de diferentes maneiras e que por isso foram perseguidas, torturadas e assassinadas. Mulheres que não se calaram, nem durante a ditadura nem em tempos ditos democráticos. Clarice Herzog foi uma delas.


Viúva aos 34 anos, foi a primeira a romper o silêncio e dizer “Mataram o Vlado”. Clarice conduziu os dias seguintes à morte com intervenções que davam cada vez mais visibilidade ao que tinha acontecido. Dali para a frente, travou muitas lutas. Sua história foi contada no livro Heroínas desta História, publicado pela Autêntica Editora em parceria com o Instituto Vladimir Herzog. A obra, organizada por Carla Borges e Tatiana Merlino, reúne 15 perfis de mulheres que perderam familiares na ditadura e tiveram suas trajetórias marcadas pela luta por justiça.


Confira abaixo um trecho da história de Clarice Herzog narrada pela jornalista Miriam Leitão:


A dor e a coragem


Depois da morte de Vlado, Clarice ficaria conhecida no país inteiro. O jornalista Zuenir Ventura acha que ela é uma dessas pessoas que se revelam em situações-limite. Ele a define como “uma bem-sucedida publicitária, serena e mansa”. Zuenir admite que nunca imaginou que ela fosse capaz de tanta coragem. “Foi ela quem disse primeiro: ‘Mataram o Vlado!’ – uma frase que, por não poder ser escrita pelos jornalistas, passou a correr de boca em boca, como uma senha contra a farsa que havia sido montada pelo DOI-CODI.


Nádia não se surpreendeu com a força da amiga, porque a vira sempre forte. Ela se lembra do grito de Clarice quando a família chegou: “Mataram o Vlado!”. “Desde sempre, Clarice era essa guerreira que ela se mostrou depois daquela morte. Era inovadora, assumira completamente o papel de mãe, profi¬ssional, intelectual, mulher pensante”, diz Nádia. Fátima também nunca esqueceu o grito de “Mataram o Vlado!” dado por Clarice. E se lembra de mais: “Foi na morte, a meu ver, que ela mostrou toda a sua força. Clarice conduziu aquele enterro. Foi ela quem decidiu que seria uma cerimônia judaica. Tudo o que aconteceu naqueles dias e depois esteve sob o comando dela. O regime queria silêncio, mas em cada passo, Clarice fez uma intervenção para dar mais visibilidade ao que acontecia. Não foi apenas a viúva; foi mais forte do que a história tem contado. Ela manteve um fio vivo”.


Daquele dia em diante, Clarice sempre repetiria a mesma denúncia: a de que o marido fora assassinado pela ditadura. Ao ser tão determinada, ela ajudou o Brasil, um país que se acostumou ao esquecimento e à impunidade. A longa resistência de Clarice é uma luz que ilumina os erros que o país tem cometido diante da sua própria história.


O Estado blindou com um bloco de mistério o que aconteceu naquelas horas em que Herzog ficou dentro do DOI-CODI e, assim, protegeu seus assassinos e todos os cúmplices com um silêncio que atravessou os tempos, a mudança de regime e chegou aos dias de hoje. Contudo, a voz de Clarice jamais se calou. Era o governo do general Geisel, depois veio o do general Figueiredo. Vieram os presidentes civis José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer, Jair Bolsonaro. Oficialmente nada foi dito até hoje sobre os mandantes da prisão de Vlado Herzog, os torturadores, os assassinos. O grito de Clarice permaneceu.


A primeira vez que gritou “Mataram o Vlado” foi quando viu chegarem a sua casa os diretores da TV Cultura, chefiados pelo diretor geral. Eles apareceram no fim do dia 25 de outubro de 1975, e nada precisaram dizer; ela os viu e concluiu. Depois daquele dia haveria muitas lutas. A primeira foi contra a mentira, porque ao Exército não bastou matar: quis também forjar uma cena de suicídio, com a divulgação da foto em que ele tem uma corda amarrada ao pescoço e as pernas dobradas no chão. Sequer tiveram o cuidado de montar uma farsa crível. Para um judeu, a versão do suicídio era uma violência a mais. Ele teria que ser enterrado junto aos muros do cemitério.


“Quem lavou o corpo dele contou que ele estava arrebentado internamente”, lembra Clarice, chorando de novo a dor eterna.


left Crédito imagem: Acervo Instituto Vladimir Herzog, 2009


Como na tradição judaica o caixão fica fechado durante o velório, ela viu o corpo de seu marido apenas de relance. No cemitério começou a longa resistência. Clarice mandou que esperassem por Zora. O rabino Henry Sobel decidiu que enterraria Vlado na parte central do cemitério, negando, na prática, a versão do suicídio. Os jornalistas iniciaram uma mobilização. Na missa ecumênica, uma semana depois, a Catedral da Sé reuniu, pela primeira vez, três sacerdotes de religiões distintas – dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor presbiteriano James Wright. A ampla igreja ficou pequena para as oito mil pessoas que foram chorar a morte de Vlado. O pequeno Ivo guardou lembranças vagas desse dia: da imprensa, com seus equipamentos enormes que impediam que ele visse o altar, e dos abraços aconchegantes que a mãe recebeu de dom Paulo e de dom Helder Câmara ao fim da cerimônia. Quando ela levantou a voz em desespero, dom Paulo tentou acalmá-la, mas dom Helder falou: “Deixa ela berrar, deixa ela pôr essa raiva pra fora”.


Clarice havia tentado proteger os meninos e dizer que a morte fora por atropelamento, mas a versão durou pouco. A casa cheia de gente, as conversas, a polícia, a imprensa. Ela confirmou a dúvida das crianças, dizendo – “Mataram o papai” –, e tentou explicar a eles o que era uma ditadura. Depois decidiu levar os filhos a todos os momentos da luta que se iniciava ali.


Clarice tinha 34 anos quando ficou viúva. Trabalhava na multinacional de publicidade Standard Ogilvy & Mather. Até então, as rendas somadas davam a eles um bom nível de vida. A partir dali, seria tudo por conta dela. A dedicação à profissão passou a ser mais intensa: teria que sustentar os filhos e tentar suprir a falta do pai. Vlado trabalhava muito, mas quando estava no sítio, ele se dedicava a dois hobbies: pescar e olhar as estrelas. Tinha um telescópio e à noite investigava o céu. Levava o filho mais novo, André, para as pescarias. Ivo era chamado para as observações astronômicas. “Um dia ele me acordou para ver os anéis de Saturno”, lembra Ivo.


Depois da morte do pai, Ivo olhava o céu e sonhava. Quando eles voltavam à noite do sítio, a mãe ao volante e aquele vazio imenso no peito, Ivo pensava que tudo aquilo poderia ser uma mentira. Num tempo sem regulamentação sobre o uso de cintos de segurança, Clarice os colocava deitados no bagageiro da Caravan em um colchão. Ivo vinha imaginando que o pai estava apenas escondido e apareceria, de repente, para encerrar aquele pesadelo.


O colégio em que eles estudavam, a Escola Vera Cruz, tentou amenizar a dor e acolhê-los, mas um dia um colega perguntou se o pai deles havia se matado. Ivo se enfureceu. Em casa, perguntou à mãe se o país onde o pai nascera iria fazer guerra contra o Brasil e se foi por isso que ele morrera. Ivo tentava processar as informações de que o pai era judeu, nascera em outro país e havia sido assassinado pelo Exército brasileiro. Difícil a carga das crianças. “Eu queria proteger meus filhos o máximo que eu pudesse e queria provar que Vlado fora assassinado”, lembra Clarice.


Cada um dos meninos reagia à sua maneira. Toda vez que alguém vinha visitá-los, Ivo sentava-se entre a mãe e a pessoa e ouvia toda a conversa. André se afastava e mergulhava em seus brinquedos. Ela tomou o cuidado de não deixar que as crianças vissem a foto da farsa montada pelo Exército. Aquilo era duro demais, inclusive para ela. Ivo até hoje se esquiva da imagem, que se tornou frequente em qualquer reportagem sobre Herzog.


Numa entrevista concedida ao cineasta e amigo João Batista de Andrade, após muitos anos, para o documentário Vlado: 30 anos depois (2005) ela falou de sua dor naquele momento. Ele perguntou o que era o Vlado para ela, ao que ela respondeu: “Vlado é uma dor de estômago danada, um apertão no estômago. É um negócio que eu não consegui engolir. Tenho uma sensação de culpa, de ter deixado ele morrer. Eu queria que meus filhos tivessem um pai que… morreu. Está virando meio mitificado para eles e eu não consigo deixar ele mais humano. Eu queria que a gente ficasse um pouco mais junto, para fechar o ciclo”.


Nesse turbilhão de sentimentos – dor profunda, culpa, sensação de história interrompida e a preocupação de dar aos filhos o pai humano que ele fora, e não o símbolo em que se transformava –, ela viveu o longo cotidiano do depois. Nos primeiros dias após a morte de seu marido, havia ainda aquele carro parado na porta com policiais dentro e homens que a seguiam na rua. O telefone de sua casa tocava, e anônimos faziam ameaças. Clarice não se intimidava: “Eu não tinha medo. Não sou pessoa de ter medo. Pensava, na verdade, que éramos as pessoas mais protegidas no Brasil naquele momento, porque eles tinham matado o Vlado, não iriam sair por aí matando a família dele”.


A coragem é natural em Clarice. Na verdade, havia, sim, o risco. Aqueles tempos eram irracionais. Zuzu Angel seria assassinada em abril de 1976, justamente porque denunciava a tortura e a morte do filho Stuart Angel. Clarice também decidiu denunciar. E foi o que fez ao longo dos anos e das décadas seguintes.


Houve momentos de perplexidade. Às vezes, dirigindo o seu carro para o trabalho, olhava a sua volta a vida normal, que seguia adiante e se revoltava: “Eu pensava: ‘Como é possível? As pessoas continuam vivendo, andando, rindo, não sabem o que está acontecendo?’”.


Ela procurava adivinhar o que não sabia. O que acontecera naquelas horas em que ele ficara a sós com seus carrascos? Com fiapos de fatos, Clarice tentava reconstituir mentalmente a cena do crime. “O que passava na minha cabeça: tinha um papel rasgado com a letra dele, mas não era a linguagem dele, com os nomes de quem trabalhava com ele. Colegas que já estavam presos o ouviram gritar. Ele deve ter aceitado escrever aquele depoimento, mas depois, quando pararam de machucá-lo ele rasgou o papel e o jogou neles. Então, eles entraram e arrebentaram com ele”, diz ela, em depoimento para este livro. Décadas depois ela ainda tenta adivinhar o que houve. O Brasil não lhe entregou nem mesmo os fatos.


Nos dias após a morte, alguns amigos vinham visitá-la. Outros sumiram. Uma amiga, com especial senso de humor, quando ia ver Clarice levava livros e entregava aos policiais que ficavam dentro do carro em frente à porta da casa e dizia: “Leiam para passar o tempo”.

-
Garanta o seu exemplar de Heroínas desta História acessando o nosso site.

center


Conheça também: Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil

Tags:  Autêntica Editora; Heroínas desta História; Instituto Vladimir Herzog; Ditadura militar;


Comentários