“Foi muito mais corajoso sobreviver”

Equipe - Publicado na categoria Entrevistas em 06/04/2023


Com apenas 17 anos, Sohaila Abdulali foi vítima de um estupro coletivo em Bombaim, na Índia. Usando sua voz para garantir sua sobrevivência, ela escreveu para uma revista um artigo sobre a sua experiência e a violência que o silenciamento das vítimas esconde. Trinta anos depois, diante da exposição de um estupro coletivo que resultou na morte de uma jovem indiana, seu texto voltou a circular nas mídias, instigando a autora a compartilhar em um livro a sua perspectiva sobre o processo de cura após um abuso sexual.

Em Do que estamos falando quando falamos sobre estupro, lançado no Brasil pela Editora Vestígio, Sohaila Abduali rompe o véu de vergonha e medo que atravessa a conversa sobre abuso. Partindo da sua própria experiência, bem como de seu trabalho atendendo centenas de vítimas nos Estados Unidos e três décadas de pesquisa feminista, a autora se desdobra sobre perguntas-chaves que devem ser feitas: Um estupro é sempre um evento que define uma vida inteira? Um estupro é pior do que o outro? Um mundo sem estupros é possível?

Em entrevista para o Grupo Autêntica, Sohaila Abdulali fala sobre o processo de construção do livro e sobre as mudanças percebidas na forma com que a sociedade enfrenta a questão do estupro:

O título do seu livro, Do que estamos falando quando falamos de estupro (no original, What we talk about when we talk about rape), é bastante inquietante. Por isso, eu gostaria de começar a conversa desse ponto: afinal, do que estamos falando quando falamos de estupro?
Na verdade, eu poderia ter dado o título de “O que nós não falamos quando falamos de estupro”. Porque, muitas vezes, acho que falamos tudo errado. Se você parar para pensar, tradicionalmente, o discurso sobre estupro é todo em torno do que as mulheres podem fazer para evitá-lo, ou de tudo o que a gente faz de errado para causar aquela situação, ou por que os homens não conseguem evitar. Então, até falamos sobre o assunto, mas temos uma tendência a falar as coisas erradas. E sempre falamos que, se acontecer com você, é como se você tivesse morrido – e eu sou a prova viva de que não é assim. Portanto, o que eu queria com esse livro era basicamente falar sobre como nós abordamos o assunto. Como podemos falar sobre ele de maneira racional – e sem deixar de lado o quanto essa coisa é terrível, porque eu nunca vou fazer pouco de algo assim.

Estou familiarizada com a sociedade indiana e com a americana, e sinto que, mesmo sendo tão diferentes em muitos aspectos, há muitas coisas em comum entre elas. Por exemplo, as pessoas ficam tão horrorizadas com o estupro que não querem lidar com ele, e aí é que a gente abre a boca e diz a coisa errada. E eu queria relacionar isso com outras coisas, por exemplo, com quando alguém morre. Especialmente na cultura americana, as pessoas não sabem o que dizer, então às vezes elas simplesmente não dizem nada. E, para mim, o pior é não dizer nada, porque essa é uma maneira bem eficaz de permitir que os estupradores continuem estuprando e que as vítimas se sintam sozinhas. Portanto, na verdade, preciso revelar que esse título… Minha editora e eu não conseguíamos pensar em um título. E todos os dias eu enviava para ela um título novo só de piada, e foi como piada que esse título nasceu. Aí, ela disse: “Sabe de uma coisa? Esse é perfeito!”. Então, a gente usou.

Você foi estuprada quando tinha 17 anos, escreveu a respeito do assunto para uma revista indiana – país no qual, naquela época, poucas mulheres ousariam falar a respeito – e viu esse acontecimento ressurgir à sua revelia anos depois. Como você se sentiu com toda esta exposição?
Sim. Sabe, acho que foi corajoso, mas, na verdade, acho que foi muito mais corajoso sobreviver. E, por sorte, posso dizer que, sabe, quando se fala sobre estupro… muito do que precisamos falar é sobre como as outras pessoas reagem. E, no meu caso, minha família foi incrível. Nunca ocorreu a eles me culpar. Nunca passou pela cabeça deles que eu tivesse feito algo errado. E, com isso, também nunca passou pela minha. Portanto, pode ter sido, sim, corajoso, mas também foi só em parte, porque eu não tive de lutar contra todas as mensagens das pessoas. Quer dizer, teve muita gente que me culpou, praticamente todo mundo que não eles. Mas as pessoas que realmente importavam não me culparam, sabe? Então, eu não estava nem aí para o que a polícia dizia, desde que meu pai acreditasse em mim. Então, é isso que eu quero dizer, que nunca é só uma pessoa. É sempre todo mundo que está em volta.

LEIA UM TRECHO: Do que estamos falando quando falamos de estupro, de Sohaila Abdulali, lançado no Brasil pela Editora Vestígio

Você constrói reflexões muito impactantes em seu livro. Uma delas é quando questiona se um estupro é um evento que define uma vida inteira. Para muitas mulheres, é isso o que acontece. Em sua opinião, como é possível fazer com que isso não aconteça? E como as pessoas ao redor da vítima podem ajudar nesse processo?
Eu escrevi uma seção no livro chamada, “As diretrizes para salvar a vida de uma sobrevivente de estupro”. E, basicamente, não é nenhuma ciência avançada. É bem mais simples, como “O que você faz quando alguém passa por um trauma?”. A principal coisa que você faz é estar lá para ela. E você não julga. Você não é nenhum tribunal, não tem de decidir se o cara fez ou não fez. Se alguém que você ama vem até você e diz “Essa coisa terrível aconteceu”, você só tem de ficar do lado dela! E tem de mostrar que você não pensa diferente dela, que você tem empatia, que quer que ela tenha controle da vida dela. Não é ficar prescrevendo “Vai na polícia”, “Vai no médico”. Mostre para ela as opções, explique que você está lá para ela, faça ela se sentir segura. Não é tão difícil assim! Eu sei que pode parecer difícil, porque a gente se sente muito estranho e não quer fazer a coisa errada. Mas eu acho que a única coisa errada é não fazer nada.

Recentemente, tivemos duas personalidades brasileiras, os jogadores de futebol Daniel Alves e Robinho, condenados por estupro. O que você acha da maneira como o assunto foi tratado na imprensa e nas redes sociais?
Eu realmente acho que depende de para qual mídia você olha. E, infelizmente, cada vez mais – não sei sobre o Brasil, mas aqui nos EUA, a coisa ficou de tal forma que ou você lê o New York Times ou o Washington Post. Ou assiste à Fox News ou à CNN. E assim, se você não fizer as duas coisas, é muito difícil dizer se está certo. Acho que as pessoas estão ficando cada vez mais polarizadas, e definitivamente há um preconceito sexista. Mas, quando eu olho para trás e vejo como o estupro vinha sendo abordado mesmo uns dez anos atrás comparando com hoje, definitivamente está bem melhor.

Primeiro de tudo, tem o fato de que as pessoas estão escrevendo mais sobre isso – podem até escrever bobagens, mas estão falando do assunto, sabe? Era um assunto completamente tabu antes. Portanto, acho que há, sim, uma melhoria, com certeza, e o mesmo para as redes sociais. Eu aqui posso reclamar o quanto quiser delas, mas o fato é que elas existem.

Sabe, eu penso em mim mesma quando tinha 17 anos. Honestamente, não tinha a menor ideia de que aquela coisa esquisita já tinha acontecido com qualquer outra pessoa. Nunca tinha ouvido falar de estupro… Eu nem sabia o que era, entende? Me senti completamente sozinha no mundo. Ainda me lembro da primeira vez que conheci alguém que também disse que tinha sido estuprada. Foi como se fosse uma grande revelação. Enquanto isso, para qualquer pessoa de 17 anos de hoje – a não ser, sabe, para quem não tem internet, as pessoas nas aldeias, há muita gente ali –, mas para a maioria das pessoas que nós vemos… Essa ignorância nem mesmo é possível! Tipo, mesmo que aconteça com você, e mesmo que você se sinta sozinha, você sabe que tem mais gente por aí. É só entrar on-line e ler a respeito. E isso é… Sabe, não é exagero. Não consigo imaginar como teria sido para mim se eu tivesse isso. Eu só, sabe… Não tinha referência nenhuma.

Nós falamos sobre como as coisas melhoraram. Você acha que tem alguma coisa que não melhorou? O que não ficou melhor nos últimos trinta anos?
O que eu acho que não melhorou em nada é a própria quantidade de estupros! Acho que não temos evidência nenhuma de que haja um único estupro a menos no mundo, seja por causa do meu livro, ou dos filmes, ou de se falar mais a respeito… Todo mundo fala muito disso hoje. E é fácil dizer que existe mais comunicação. Mas não tem um lugar no mundo onde a gente possa olhar as estatísticas e dizer que há menos estupro.

Ou seja, é muito desanimador, sabe… Para que serve todo o nosso conhecimento atual e os pensamentos positivos e tudo mais? Então, talvez tenha alguma mulher que foi estuprada – ou um homem – que se sinta menos sozinha por ler o meu livro. Mas eu preferiria tanto que a própria coisa não acontecesse! Então, eu não sei… Quero dizer, eu conheço os homens, sei que há aqueles que sentem que, depois de ouvir falar tanto, eles vão entender que tem algumas maneiras de se comportar que não são boas, e eles não sabiam disso, de modo que eu acho que há algo de bom. Mas sobre outras coisas, aí eu não sei. Gostaria que alguém me dissesse que tem menos estupro no mundo.

Em seu livro, entendemos que você acredita em um mundo sem estupros. Como é possível alcançar isso?
Acho que tudo é possível! Realmente acho isso, porque pensa em todas as coisas que a gente fazia e… sabe, eu… Tipo, eu tenho quase 60 anos agora. E, quando eu era jovem, a gente costumava caçoar da minha avó. Minha avó morreu aos 98 anos. Então, quando ela era jovem, não existiam passaportes e vistos, sabe? Eles iam de um país para outro livremente, e nem conseguimos imaginar isso hoje. Sabe? Não existiam aviões. Eles simplesmente iam, sabe… Quando eles iam da Índia para o Japão, levava três semanas de barco. Agora é só um voo de quatro horas. E quando a gente era criança, nós costumávamos… Sabe, não tinha internet nem celulares. Na Índia, a maioria das pessoas não tinha nem telefone fixo. Então, a gente brincava de faz de conta e imaginava que a gente se via em uma tela. E hoje isso é tão real! Então, eu digo que simplesmente não temos como saber. Acredito firmemente que o estupro não está programado na pessoa. Ela escolhe assim. Então, se de alguma forma nos movermos em direção a uma sociedade onde não haja tanto… Tipo, atualmente, o estupro é… Você é recompensado por ser um estuprador. Você fica, sabe, com a fama de machão, de saber se afirmar. E isso, sabe, não vai contra o que pensa a sociedade. A sociedade é construída ao redor disso. Mas, se a gente realmente mudar a estrutura das coisas, de forma que não seja positivo que… Sabe, que um gênero domine o outro, então por que não? Eu… acredito nisso absolutamente, e sei que é… Um amigo meu acabou de escrever um livro chamado Um mundo sem guerra. E ele estava tentando imaginar… Ele disse: “A guerra é uma escolha”. E é verdade! É assim mesmo, sabe, a violência é uma escolha.

Quando escreveu o livro, você trabalhava atendendo vítimas de violência nos Estados Unidos. Conte um pouco sobre sua vida agora: você continua trabalhando com estas pessoas? Atualmente está desenvolvendo outros projetos?
Uma nova edição do meu livro está saindo em polonês, e eu amo cada vez que sai em uma língua nova. Hã… Mas na verdade eu não estou mais trabalhando no assunto do estupro, e acho que, sabe, muitas pessoas acham que eu só tenho trabalhado com isso nos últimos quarenta anos. Mas não! Eu administrei um centro de apoio contra o estupro há muito, muito tempo, e fiz algumas pesquisas, e isso muitas vezes transparece nos meus escritos. Mas não é o principal dentro do que eu faço. Eu escrevo para viver. Escrevo e edito para outras pessoas. E eu escrevo… No passado, escrevi em uma coluna de jornal, e agora estou começando a pensar em um novo livro. Já escrevi romances antes. Então, tem um romance que eu quero escrever, mas, no momento, devo escrever um outro livro, uma coleção de ensaios sobre as mulheres e a noção de lar. Sabe como? Como é que as mulheres fazem… Como é que as mulheres encontram seu lugar e encontram seu poder no mundo. Então, quero falar com mulheres de todos os lugares… Tudo ainda está sendo planejado, já que ainda estou escrevendo minha proposta, mas é isso que está fazendo meu coração saltitar no momento.

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