Resenha de Intrusos, de Adrian Tomine – uma reveladora coletânea de contos gráficos

The Guardian - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 07/02/2019


Esta resenha foi publicada originalmente no The Guardian em 19 de novembro de 2015.
Você pode lê-la em sua forma original aqui.

De Chris Ware
Tradução de Nilce Xavier

Todo quadrinista que se preze nutre o desejo secreto de criar “O Livro”: um livro que pode ser dado para um amante da literatura que geralmente não lê quadrinhos; um livro que não requer explicações prévias nem pedidos de desculpas antecipados; que é desenvolvido o bastante em atitude, humanidade e complexidade para falar com maturidade por si mesmo. Os quadrinhos percorreram um longo caminho nos últimos 25 anos até encontrarem um público adulto com as graphic novels autobiográficas Maus, Persépolis e Fun Home, cujos autores escrevem sobre a realidade pungente usando uma linguagem visual flexível que, por décadas, foi usada apenas como um meio de panfletagem de aventuras juvenis publicadas diariamente nos jornais. Mas, por algum motivo, a ficção adulta em quadrinhos não parece ter se anunciado da mesma forma que a autobiografia adulta. E não foi por falta de tentativas; junto dos igualmente importantes artistas experimentais (que são tão, se não mais, obscuros), nós, romancistas de quadrinhos, podemos listar dezenas de colegas quadrinistas que desenham suas vidas sob a influência de escritores como Anton Tchekhov, Raymond Carver, Alice Munro e Zadie Smith. Não estou falando de quadrinhos “para” adultos, mas de quadrinhos “sobre” adultos.

Intrusos, de Adrian Tomine, talvez seja finalmente Esse Livro, o que é impressionante e encorajador. Tomine começou sua carreira como um prodígio adolescente, a princípio autopublicando seu sofisticado minigibi Optic Nerve antes de levá-lo para o impecável catálogo da editora canadense Drawn and Quarterly. A partir daí, tornou-se um artista frequente nas capas da revista The New Yorker. Shortcomings, sua graphic novel de 2007, foi um trabalho complexo e cheio de nuances emocionais que fez com que o restante de nós, artistas veteranos já cobertos de teias de aranha, tirássemos os olhos dos nossos próprios umbigos e reparássemos nele. Desde então, Tomine se casou, teve duas filhas e continuou produzindo Optic Nerve, cujas páginas davam uma prévia das histórias de seu mais novo livro conforme ele finalizava ambos. Mas Intrusos não é uma coletânea de histórias curtas organizada às pressas, simplesmente porque estavam prontas; trata-se do trabalho mais maduro e afiado da carreira de Tomine.

Ao longo de seis narrativas que variam em extensão, abordagem visual e tom narrativo, Tomine emprega sutilmente conceitos e abordagens específicos em seus enredos, equilibrando qualidades quadrinescas básicas – como simplificação facial, informação de fundo e cor – para dar o timbre adequado à cada história. Do quinto conto ricamente ilustrado até o aparentemente despojado “Hortescultura”, Intrusos nos entrega um apanhado variado, mas consistente, de conteúdo real sobre a vida nua e crua. Um desejo desesperado de compreensão permeia toda a obra não apenas na forma como Tomine apresenta seus personagens, mas também na maneira como eles tratam uns aos outros. Em “Vamos, Owls”, um traficante de drogas alcoolista e fã de esportes oferece à namorada, vítima de um relacionamento abusivo, a oportunidade de bater nele de volta para “ficarem quites”. Uma mãe tenta entender uma cultura e um ex-marido na carta que escreve para o filho em “Tradução do japonês”. Em “Hortescultura”, quando uma esposa no limite tranquiliza seu marido, um artístico jardineiro, de que ele é talentoso (ele não é), seu desespero é desnudado: “Eu te amo e quero que você seja feliz”. A empatia flui silenciosamente nesse livro, às vezes mergulhando tão sorrateira sob as ações que chegamos a desconfiar que ela se perdeu; então, subitamente, ela eleva os personagens a um patamar tão acima de suas vidas cotidianas que até sentimos um nó na garganta.

Existe um certo equilíbrio necessário ao se planejar uma história em quadrinhos que, embora seja uma alquimia incalculável, conta com algumas grandezas mensuráveis – a forma como os personagens são desenhados, como se movem e reagem um ao outro –, o que pode tanto abrir estradas com inúmeras possibilidades na mente do autor quanto configurar barricadas que bloqueiam todas as vias dramáticas. Tomine claramente pegou o primeiro caminho, em especial em “Amber Sweet”, a história de uma garota frequentemente confundida com uma estrela pornô da internet. Aqui, vemos um uso raro do narrador pouco confiável em um meio que, até muito recentemente, mostrava com pouca criatividade as coisas como elas são. O modo como Tomine articula os espaços na composição de cada quadro conecta-se com a faísca eletromagnética do quadrinista maduro; ele sabe exatamente quais expressões faciais e quais gestos combinar à medida que seus personagens tentam convencer os outros de sua autenticidade ou de seus objetivos.

Cabe ao leitor, no entanto, fazer as maiores conexões, como entre o narrador de “Amber Sweet” e o aparecimento repentino de uma filha em outra história. As omissões de Tomine, contudo, não são desonestas nem pedantes, mas fruto do trabalho de um escritor confiante que espelha como nós convenientemente editamos os eventos e as pessoas de nossas lembranças para adequá-los às narrativas que gostaríamos que tivessem acontecido. A precisão cumulativa e a eficiência dessas histórias têm um efeito incisivo na mente de quem quer que as leia.

Tomine também trabalha as nuances entre as pessoas e seus diferentes contextos socioeconômicos com uma segurança impressionante. Perspicazes estereótipos étnicos são jogados como minibombas, com frases como “Esse oriental sabia das coisas!”, “Não fala inglês?” e “Negão errado!”, expondo os preconceitos dos personagens sem condená-los. Tomine parece sempre tentar encontrar o lado bom de alguém, seja o traficante de drogas alcoolista e fã de esportes, seja o pai sufocante e repressor de uma adolescente reprimida e gaga que, contra todas as probabilidades, quer tentar a sorte como comediante stand-up. A quinta história, “Triunfo e tragédia” (que empresta o título à edição original), é a melhor da obra e talvez seja a melhor narrativa já escrita/desenhada em quadrinhos. O leitor experimenta um turbilhão de emoções despertado pelos três personagens, indo da simpatia à repulsa, passando por amor, raiva e frustração; dessa forma, Tomine consegue proporcionar mais vida real em 12 páginas do que a maioria dos romancistas consegue em 200. Assim como na vida, as melhores histórias não têm um “fechamento”, mas permanecem em aberto – e com “Triunfo e tragédia” não é diferente. Poucas obras, em qualquer meio, trouxeram lágrimas aos meus olhos, mas os últimos quatro quadrinhos dessa história conseguiram. Trata-se de uma narrativa que vai tão fundo no âmago de onde nascem as histórias que não é possível voltar à superfície sem despedaçar alguma coisa lá dentro. Ao terminar, você vai querer abraçar o seu filho ou o seu cônjuge. E essa, afinal, é a melhor história de todas.

• O último livro de Chris Ware é Building Stories (Jonathan Cape, 2012).

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O livro Intrusos é lançamento de março da Editora Nemo.
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