Por que a psicanálise celebra um retorno

Fillipe Mesquita e Amanda Bernardes de Melo - Publicado na categoria Dicas de leitura em 18/08/2023


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Pintura Odalisca no divã do analista (2016), por Miguel Matos. De acordo com Freud, a postura relaxada deve ajudar os pacientes a penetrar mais profundamente em sua própria psique.


Leia a matéria do jornal alemão Welt, traduzida por Fillipe Mesquita e Amanda Bernardes de Melo, sobre a força da psicanálise que reside na durabilidade de seus efeitos:

Por que a psicanálise celebra um retorno


A psicanálise há muito foi considerada desatualizada: não científica, cara, longa. Faltavam comprovações do poder de cura. Entretanto, novos estudos mostram: a psicanálise tem um efeito mais duradouro do que todas as outras terapias.


A trilha para a herança de Freud leva a um belo edifício antigo no centro de Berlim, com cinco andares de altura. Lá em cima, nos últimos andares do edifício, a gente é buscado já na porta. Passamos por imagens abstratas, dispostas no chão do corredor, através de um escritório arrumado, até alcançar o quarto mais distante do apartamento. E lá está ele, o divã (couch), em um quarto quase vazio. Um divã tipo chaise longue, vermelho claro, já desgastado, com muitos travesseiros.


Duas vezes, às vezes três vezes por semana, Anna, como a paciente deve ser chamada aqui, se deita nesse divã e se deixa olhar para a alma. Ela precisa de um momento para chegar. Toca suavemente sobre a capa macia, olha da janela para fora, mira os escritos antigos em um rolo de papiro pendurado na parede à sua frente – e dos quais não sabe o que significam. E então ela fala.


O divã (couch) é o símbolo da psicanálise. Sigmund Freud fundou a psicanálise em 1890. Sua teoria diz que as pessoas não se conhecem bem, que elas muitas vezes não têm ideia de por que fazem o que fazem, pensam o que pensam e sentem o que sentem. Elas raramente são senhoras em sua própria casa: suas partes inconscientes e pulsionais entram constantemente em contato com normas sociais internalizadas e levam a conflitos.


“Recalcar [Verdrängen] causa problemas de relação”, disse Freud


O inconsciente é um pote de coleta para experiências recalcadas – e muito poderoso. Isso decide com qual imagem de si mesmo a gente atravessa o mundo. Decide se a gente se reencontra em bons ou maus relacionamentos, se fracassa ou segue seu caminho com sucesso. Aqueles que recalcam muito tendem a comportamentos destrutivos e problemas de relacionamento. E por isso, evocam repetidamente os velhos problemas.


Freud queria romper essa compulsão de repetição. Quem se deita no divã, o terapeuta atrás de si, e procura pelo recalcado, terá a chance de se curar, de acordo com sua promessa [ Versprechen ]¹. Lembrar, repetir, perlaborar, esse era o seu mote.


¹Aqui vale assinalar a ambiguidade do vocábulo Versprechen: pode indicar tanto promessa, comprometimento, quanto lapso, equívoco.



Novas terapias recalcaram o divã


Durante muito tempo Freud foi estimado, uma vez que a psicanálise foi a única terapia formulada que existia para o sofrimento psíquico por 70 anos. Mas depois vieram outras terapias que produziam efeitos mais rapidamente e mitigavam sintomas mensuráveis: transtornos de ansiedade, depressão, transtornos compulsivos.


As novas terapias pressionaram o território de domínio da psicanálise, aparentavam conquistá-lo. Nos últimos anos, parecia que em pouco tempo a gente deveria levar a psicanálise para a cova. Parecia muito longa, muito cara, muito pouco científica e não estava claro se ela era de todo modo efetiva. Durante muito tempo, os psicanalistas não se importavam com isso, eles estavam convencidos da terapia, e os planos de saúde pagavam.


Somente quando a pressão tomou conta, eles se agitaram. Agora, finalmente, há estudos que tiram a imagem empoeirada da psicanálise. Eles mostram: ela é sim efetiva, funciona. E não apenas tão bem quanto outros procedimentos, mas melhor – porque com efeitos muito mais duradouros.


Mais raramente de volta ao hospital


A Alemanha é o único país do mundo onde a psicanálise é um benefício padrão dos planos de saúde. Tem sido assim desde 1967. O motivo foi um exame da AOK dois anos antes. Pacientes com problemas de saúde mental submetidos à psicanálise foram examinados cinco anos antes e cinco anos após o tratamento.


O resultado surpreendeu os cientistas do chamado estudo Dührssen: até cinco anos após a análise, o número de internações hospitalares dos pacientes diminuiu bastante drasticamente. Tanto que os ex-pacientes foram internados com menos frequência do que a média dos segurados. Assim, a psicanálise foi ancorada como um benefício padrão dos planos de saúde – através do reconhecimento de que se economiza dinheiro com ela a longo prazo, mesmo que custe inicialmente.


Mas então a psicanálise ganhou um concorrente ao mesmo tempo em que entrou no catálogo de benefícios planos de saúde neste país. Nos anos 60, os psiquiatras americanos Aaron Temkin Beck e Albert Ellis desenvolveram a terapia cognitivo-comportamental, uma forma de psicoterapia que tinha princípios completamente diferentes.


Enquanto a psicanálise se concentra no passado, a terapia comportamental está ancorada no aqui e agora. Em vez de se dedicar aos sentimentos, sonhos e fantasias, a terapia comportamental se concentra no mundo do pensamento do paciente: como ele percebe o mundo, como pensa, como tira conclusões. De acordo com a convicção, a depressão é o resultado de pensamentos impróprios em conexão, que então levam a sentimentos negativos, como tristeza e desamparo. Se a gente mudar os pensamentos, então os sentimentos também se alteram.


Livrar-se dos sintomas ou combater as causas?


Livrar-se dos sintomas é o principal objetivo da terapia comportamental, uma ideia que só desencadeia um balançar de cabeça dos psicanalistas. A gente tem que entender, primeiramente, os sintomas: por que eles estão lá, de onde eles vêm. Afinal, ninguém extinguiria um incêndio sem ver qual foi a causa do incêndio. De que outra forma você deveria evitar o próximo incêndio?


Mas a terapia comportamental funcionou maravilhosamente, como evidenciado por um estudo após o outro. Pacientes depressivos, ansiosos e com distúrbios forçados, todos eles se sentiram melhor após a terapia comportamental. Desde o início, foi importante para os defensores do novo procedimento provar sua razão de existir – enquanto a psicanálise fez pouco por muito tempo para provar sua eficácia. Nos anos 80, a terapia comportamental foi incluída no catálogo de serviços dos planos de saúde.


A posição da psicanálise vacilou. A terapia comportamental era muito mais curta e mais barata. Enquanto a primeira hoje se dá bem com 30 a 50 sessões de terapia e custa em média 3600 euros, uma psicanálise custa até 300 sessões e uma média de quase 7000 euros. Então, por que escolher a psicanálise?


As angústias se dissipam através da análise


Anna tentou ambos os procedimentos. Ela, que tem hoje 32 anos, interrompeu o curso de medicina há oito anos. Havia se torturado com isso por sete semestres e ficou feliz por ter se predisposto a interromper. Mas depois disso vieram angústias que ela logo não conseguia mais controlar, que a paralisaram.


Angústia diante do futuro, angústia diante de decisões, angústia diante da própria ausência de significado. Anna procurou ajuda e acabou com um terapeuta comportamental. Apenas algumas vezes ela foi, depois se sentiu melhor, e essa era a meta. Foi uma boa experiência. Ela começou uma nova faculdade, mudou-se para o exterior. Tudo caminhou.


Até ela perder, há um ano,seu emprego em um ministério em Berlim. Racionalmente, ela entendeu por que, emocionalmente não. As angústias voltaram, e desta vez elas foram mais severas. Problemas de relacionamento vieram e Anna não sabia mais para onde ir. Ela escreveu para sete ou oito terapeutas, um tinha um lugar livre, um psicanalista. Deitar-se em seu divã vermelho claro agora lhe dá estabilidade, semana após semana.


Conhecer a si mesmo apropriadamente na terapia


Seu terapeuta não diz muito, e ele não trabalha sobre uma meta concreta. Ele ouve atenciosamente, lhe dá suporte e segurança. Ele não julga, pergunta sobre seus desejos e fantasias, chama a atenção para os paralelos entre o presente e o passado. Lembrar, repetir, perlaborar. Só isso quebra velhos padrões, e o terapeuta a acompanha em seu caminho.


“Tenho a sensação de que finalmente estou me conhecendo apropriadamente”, diz ela. Isso muda muito. Ela não está mais tão à mercê de suas inseguranças e agressões, seus pensamentos e sentimentos feios não pareciam mais tão ameaçadores. E ela se torna mais paciente, mais indulgente. Consigo mesma, mas também com os outros.


“Nós carregamos tudo o que experimentamos conosco”, diz Benigna Gerisch, da Universidade Internacional de Psicanálise em Berlim. É por isso que os psicanalistas perguntam: Qual história está associada a um sintoma? Como é construída a personalidade dessa pessoa em particular, quais estruturas se formaram nela? A gente tem que entender estas questões antes de poder mudar alguém.” Uma intervenção curta, como a primeira experiência de Anna, pode ajudar se você estiver em crise, mas tiver uma estrutura interna estável. Se os problemas retornam repetidamente, então você tem que reconhecer, romper, mudar estruturas básicas. E isso leva tempo.


O inconsciente se deixa medir?


No entanto, o que se prova na prática está longe de estar na pesquisa. Durante décadas, além do estudo AOK, houve poucas evidências do quanto a psicanálise, demorada e cara, de todo modo funciona bem; muito menos se tem vantagens em relação à terapia comportamental muito mais curta. E assim os analistas foram cada vez mais ridicularizados como dinossauros, como relíquias de uma época passada. 300 horas no divã, quem assume isso, mesmo que seja possível com 50 horas?


Cord Benecke, da Universidade de Kassel, foi um dos poucos que tentou dar à psicanálise uma subestrutura empírica anos atrás. Ele bateu na porta de colegas, tentou convencê-los a estudar. Isso foi difícil. “A gente não pode medir o inconsciente”, ele ouviu. Ou: “Não nos interessa a pura melhora dos sintomas!” Somente nos últimos anos a vontade de participar cresceu lentamente. “A psicanálise dormiu demais nos últimos 30 anos”, diz Benecke. Talvez por arrogância, talvez também por medo de que seus próprios princípios sejam questionados.


Esse sono foi fatídico porque leva muito mais tempo para realizar um estudo psicanalítico do que um para terapia comportamental, devido à duração mais longa da terapia. “Do planejamento à publicação dos resultados finais, leva cerca de 15 anos para um estudo de eficácia em psicanálise – isso dificilmente se encaixa em uma biografia normal do pesquisador.”


Novas evidências rebatem as críticas à psicanálise


Agora, contudo, a psicanálise finalmente se recupera: aparece um estudo de longo prazo após o outro que provam a eficácia da psicanálise. Os resultados não apenas tiram as dúvidas sobre a psicanálise, mas também deixam os experts em júbilo. No final de 2015, por exemplo, o estudo da Clínica Tavistock de Londres apareceu na revista “World Psychiatry”, 13 anos depois que o Serviço Nacional de Saúde da Grã-Bretanha iniciou o projeto. Por um lado, mostra que a psicoterapia psicanalítica funciona tão bem quanto a terapia comportamental no fim do tratamento da depressão crônica


Acima de tudo, no entanto, também mostra que a força da psicanálise reside em uma enorme durabilidade. Enquanto apenas 10% dos pacientes em terapia comportamental não tinham mais depressão dois anos após o término do tratamento, na psicanálise o número sobe para 44%, quase metade. Isso reforça os resultados de outros estudos, como os publicados em 2012 por pesquisadores da Universidade Técnica de Munique: aqui, também, os pacientes deprimidos que receberam uma psicanálise em vez de terapia comportamental se sentiram significativamente melhor três anos após o fim do tratamento.


Experiência com enorme durabilidade


As evidências estão aumentando, diz Benecke, de que os pacientes de psicanálise têm uma vantagem maior, especialmente a longo prazo: muitas vezes se sentem cada vez melhor após o final do tratamento, enquanto o efeito da terapia comportamental é diretamente mais forte no final do tratamento e depois diminui novamente. Isso pode ser demonstrado, entre outras coisas, na taxa de recaída, no número de internações ou nos dias de doença dos pacientes.


Cord Benecke, juntamente com Dorothea Huber e outros, mostrou que o sucesso da psicanálise não se deve apenas ao fato de simplesmente durar mais tempo. Quanto mais uma terapia usou técnicas psicanalíticas, melhor os pacientes se sentiam três anos após o tratamento. Portanto, foi acima de tudo o tipo de terapia, não apenas a duração que contava. Lembrar, repetir, perlaborar, isso parece de fato funcionar.


Benecke já está realizando o próximo estudo. Ele é trabalhador, mas não tem escolha. Das mais de 40 cadeiras de psicologia clínica em universidades públicas, apenas duas são ocupadas por psicanalistas: Tilmann Habermas em Frankfurt e Cord Benecke em Kassel. Até a década de 1970, muitas cadeiras clínicas nas universidades ainda eram ocupadas por psicanalistas, diz Thilo Eith, da Sociedade Psicanalítica Alemã. Mas com a entrada da pesquisa empírica nas universidades, os psicanalistas se mudaram dela – não exatamente de livre vontade.


Os alunos dificilmente aprendem análise na formação


Isso também significa que muitos estudantes não percebem quase nada sobre a psicanálise em seus cursos de psicologia, como reclama a Comunidade de Interesse da Psicanálise nas Universidades. E quem não escuta nada sobre isso, também não se especializa no treinamento terapêutico, que segue após a graduação e é um pré-requisito para a licença. Não porque a psicanálise não esteja interessada, mas porque agora não é mais, nesse meio tempo, conhecimento básico. E porque o treinamento como analista custa muito mais tempo e dinheiro do que o treinamento como terapeuta comportamental.


Mas, felizmente, o interesse vem aumentando novamente há três ou quatro anos, diz Thilo Eith. Os novos resultados da pesquisa ajudam com isso, mas também as iniciativas dos próprios psicanalistas. Ingo Jungclaussen, da Universidade de Colônia, por exemplo, desenvolveu uma oferta de e-learning para psicanálise, que deve facilitar o acesso à herança de Freud nas universidades no futuro. No entanto, o programa chamado Pergunte a Freud! – E-learning como um novo caminho na didática da psicanálise destina-se não apenas a ajudar os alunos, mas também a possibilitar a formação continuada dos terapeutas e apoiar institutos de formação.


A Universidade Internacional de Psicanálise em Berlim, fundada em 2009, também cuida do problema das novas gerações. Uma universidade privada que quer preencher a lacuna “que foi criada pela orientação unilateral e científica da psicologia acadêmica”, como está escrito na página inicial. Benigna Gerisch, a clínica, trabalha lá. Ela teria tido poucas oportunidades nas universidades públicas – e também poucas oportunidades de trabalhar da maneira que gostaria. Seus 30 anos de experiência na prática pesam menos do que estudos empíricos, os quais os outros têm mais do que ela, que fez principalmente estudos qualitativos. Mas muitos dos cientistas nunca viram ainda um paciente, diz ela.


Anna não se importa com quantos estudos seu terapeuta escreveu. Ela está feliz por ele existir – e seu divã. Ele pode ser velho e desgastado e o caminho para lá pode ser cansativo e desgastante. Fazer uma análise, isso custa superação. Mas vale a pena.

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Tradução: Fillipe Mesquita e Amanda Bernardes de Melo.
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