Leia um trecho de "Bodas de Sangue", de Pierre Lemaitre

Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 28/01/2020


Sentada no chão, as costas contra a parede, as pernas esticadas, ofegante.

Léo está completamente encostado nela, imóvel, com a cabeça no seu colo. Com uma das mãos, ela acaricia seus cabelos; com a outra, tenta enxugar os olhos, mas com uma grande desordem nos gestos. Chora. Os soluços às vezes se transformam em gritos; começa a berrar, algo que vem do ventre. A cabeça pende para um lado, para o outro. Às vezes a aflição é tão intensa que ela bate contra a parede a parte de trás da cabeça. A dor lhe traz um pouco de reconforto, mas, logo, dentro dela, tudo desmorona de novo. Léo é muito tranquilo, ele não se move. Ela baixa os olhos, olha para ele, aperta a sua cabeça rente ao ventre e chora. Ninguém pode imaginar o tamanho da sua infelicidade.

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Nessa manhã, como em tantas outras, ela acordou em prantos, com um nó na garganta, mesmo sem ter nenhuma razão em particular para estar preocupada. Na sua vida, as lágrimas não são nada de excepcional: chora todas as noites desde que ficou louca. De manhã, caso não sentisse o rosto encharcado, poderia até pensar que suas noites são tranquilas e seu sono é profundo. De manhã, o rosto banhado em lágrimas e o aperto na garganta são meros detalhes.

Desde quando? Desde o acidente de Vincent? Desde sua morte? Desde a primeira morte, bem antes?

Ela endireitou-se sobre um dos cotovelos. Enxuga os olhos no lençol, tateando à procura dos cigarros e, não os encontrando, de repente percebe onde estão. Tudo lhe vem à cabeça, os acontecimentos da véspera, da noite… Ela se lembra, de repente, de que precisa ir embora, deixar aquela casa. Levantar-se e ir embora, mas fica ali, pregada na cama, incapaz de fazer o mínimo gesto. Esgotada.

Quando ela finalmente consegue sair da cama e ir até a sala, encontra a senhora Gervais sentada no sofá, tranquila, inclinada sobre o seu teclado.

– Tudo bem? Descansada?

– Tudo bem. Descansada.

– Pela sua cara, não parece.

– Eu sempre fico assim de manhã.

A senhora Gervais salva o arquivo e fecha seu laptop.

– Léo ainda está dormindo – diz ela, já se dirigindo com um passo firme ao cabideiro. – Eu estava com medo de acordá-lo, então preferi não entrar no quarto. Como ele não tem aula hoje, é melhor que fique dormindo, assim você tem um tempinho de tranquilidade…

Não tem aula hoje. Sophie se recorda vagamente. Algo sobre uma reunião pedagógica. De pé, perto da porta, a senhora Gervais já vestiu o casaco.

– Tenho que ir agora…

Ela sente que não vai ter coragem de anunciar sua decisão. Aliás, mesmo que tivesse coragem, não teria tempo. A senhora Gervais já fechou a porta e se foi.

Hoje à noite…

Sophie ouve o barulho dos seus passos na escada. Christine Gervais nunca toma o elevador.

Tudo fica em silêncio. Pela primeira vez, desde que conseguiu aquele emprego, ela acende um cigarro ali mesmo, no meio da sala.

Põe-se a vagar pela casa. Faz lembrar uma sobrevivente de uma catástrofe, tudo o que vê lhe parece vazio. Precisa ir embora. Já não sente tanta pressa agora que está sozinha, de pé, com um cigarro na mão. Mas sabe que, por causa do Léo, precisa se preparar para ir embora. Dando um tempo para não perder o juízo, ela vai à cozinha e coloca água para ferver na chaleira elétrica.

Léo, seis anos.

Desde que o viu, pela primeira vez, ela o achou uma criança bonita. Fazia quatro meses, nessa mesma sala da rua Molière. Ele entrou correndo, parou de uma só vez diante dela e a olhou fixamente, erguendo um pouco a cabeça, o que, nele, é um sinal de intensa reflexão. Sua mãe disse simplesmente:

– Léo, como eu tinha te falado, essa é a Sophie.

Ele a observou por bastante tempo. Depois disse simplesmente: “Legal” e aproximou-se dela para cumprimentá-la com um beijo.

Léo é um menino amável, um pouco caprichoso, inteligente e terrivelmente vivo. O trabalho de Sophie consiste em levá-lo à escola pela manhã, pegá-lo no almoço e depois no fim do dia e cuidar dele até a senhora Gervais ou seu marido voltarem para casa, num horário imprevisível. Portanto, sua hora de ir embora varia entre cinco da tarde e duas da manhã. O que lhe rendeu o emprego com certeza foi sua disponibilidade: ela não tem vida pessoal, isso ficou evidente desde a primeira entrevista para o trabalho. A senhora Gervais até tentou não tirar tanto proveito da sua disponibilidade, mas as demandas do dia a dia sempre prevalecem sobre os princípios. Em menos de dois meses, Sophie se tornou uma engrenagem indispensável para a família, porque está sempre lá, sempre a postos, sempre à disposição.

O pai de Léo, um quarentão esguio, ressecado e enrugado, é chefe de serviço no Ministério das Relações Exteriores. Já sua esposa, uma mulher alta e elegante com um sorriso incrivelmente sedutor, tenta conciliar as exigências do seu cargo de estatística em uma sociedade de auditoria com aquelas que lhe cabem como mãe e mulher de um futuro secretário de Estado. Todos os dois ganham a vida muito bem. Sophie foi sábia em não ter se aproveitado disso para negociar o salário. Na verdade, sequer pensou nisso, já que aquilo que lhe propunham atendia às suas necessidades. A senhora Gervais logo aumentou o seu ordenado, no fim do segundo mês.

Já Léo, agora, só jura pelo nome dela. Ela parece ser a única que pode, sem se esforçar, obter dele o que a sua mãe levaria um bom tempo. Não se trata de uma criança mimada e exigente como um tirano, o que poderia ter-se temido, mas de um garoto calmo e que sabe escutar. Claro, ele dá suas cabeçadas, mas Sophie ocupa um lugar privilegiado na sua hierarquia, bem no topo.

Toda noite, por volta das 18 horas, Christine Gervais liga para ter notícia e dizer, num tom embaraçado, a que horas vai chegar. Sempre conversa alguns minutos com seu filho e depois com Sophie, com quem, por telefone, esforça-se para trocar umas palavras mais pessoais.

Essas tentativas não são tão bem-sucedidas: Sophie se atém, sem nenhuma vontade em especial, a generalidades formais, como o relatório do que aconteceu durante o dia, sua conversa se resumindo essencialmente a isso.

Léo é colocado na cama às 20 horas em ponto, todas as noites. Isso é importante. Sophie não tem filhos, mas tem princípios. Depois de ler uma história para ele, ela passa o resto da noite na frente da imensa televisão de tela plana que recebe praticamente todos os canais transmitidos via satélite, um presente disfarçado dado pela senhora Gervais, no segundo mês de trabalho, assim que constatou que Sophie estava sempre na frente da televisão quando ela chegava em casa, pouco importava o horário. Foram várias as vezes em que a senhora Gervais ficou espantada com aquilo, com o fato de uma mulher de 30 anos, visivelmente de boa educação, contentar-se com um emprego tão modesto e passar noites inteiras na frente de uma tela, mesmo que seja agora uma telona. Na primeira conversa entre elas, Sophie lhe disse que tinha estudado comunicação. A senhora Gervais quis saber um pouco mais e ela mencionou seu diploma universitário num curso profissionalizante, explicou, sem especificar seu cargo, que tinha trabalhado numa empresa de origem inglesa e disse ter sido casada, mas que já não era mais. Essas informações bastaram à senhora Gervais. Sophie tinha sido recomendada por uma amiga de infância, diretora de uma agência de trabalhos temporários que, por alguma razão ainda desconhecida, simpatizou com ela, numa única entrevista. E, acima de tudo, era urgente a contratação de alguém: a babá anterior tinha pedido demissão de uma hora para a outra, sem aviso-prévio. O rosto calmo e sério de Sophie inspirava confiança.

Durante as primeiras semanas, a senhora Gervais procurou sondar um pouco mais sobre sua vida, mas, com muito tato, desistiu, pressentindo que um “drama terrível e secreto” devia ter assolado a sua existência, um resquício de romantismo bastante frequente, mesmo na alta burguesia.

Como de costume, quando a chaleira elétrica dá o sinal de que a água está fervida, Sophie se encontra perdida nos seus pensamentos. No caso dela, podem durar um bom tempo, tais momentos de ausência. Seu cérebro parece se fixar em torno de uma ideia, de uma imagem, o pensamento se enrola ao redor, bem devagar, feito um inseto, e ela perde a noção do tempo. Aí, sob o efeito de uma espécie de lei da gravidade, ela cai novamente no instante presente. Então retoma sua vida lá onde a tinha interrompido, normalmente. É sempre assim.

Dessa vez, curiosamente, foi o rosto do doutor Brevet que surgiu. Há muito não pensava nele. Não era assim a imagem que tinha dele. Por telefone, imaginara um homem alto, autoritário, e ele era uma coisinha de nada, lembrava um escrevente de um tabelião, impressionado por ser autorizado a receber clientes menos importantes. Ao lado, uma estante de livros com bibelôs. Sophie queria ficar sentada. Dissera na entrada: “Não quero me deitar”. O doutor Brevet fizera um sinal com a mão, como que dizendo que não havia problema algum. “Aqui, a gente não se deita”, acrescentara ele. Sophie se explicara, o melhor que pudera. “Uma caderneta”, decretara, enfim, o doutor. Sophie devia anotar tudo o que fazia. Podia ser que, simplesmente, fosse ela que fizesse dos seus esquecimentos uma coisa “do outro mundo”. Precisava tentar ver as coisas objetivamente, dissera o doutor Brevet. Dessa forma, “você poderá medir com exatidão o que esquece, o que perde”. Então Sophie tinha começado a anotar tudo. Tinha feito isso por, vai saber, três semanas… Até a sessão seguinte. E, durante esse período, quanta coisa tinha perdido! De quantos encontros tinha se esquecido e, duas horas antes de reencontrar o doutor Brevet, ela se deu conta de que tinha perdido até mesmo a sua caderneta. Impossível tê-la às mãos novamente. Já havia revirado tudo. Teria sido nesse dia que tinha trombado de novo com o presente de aniversário de Vincent? Aquele que ela tinha sido incapaz de achar na hora de lhe fazer a surpresa.

Tudo se confunde, sua vida é uma confusão só…

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Tags:  pierre lemaitre,  thriller,  bodas de sangue


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