Leia trecho do livro 'O dicionário dos intraduzíveis'

Barbara Cassin - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 01/02/2019


Crédito da foto: Frédérique Plas

BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS

LÍNGUAS INDÍGENAS NO BRASIL
LÍNGUA, LÍNGUAS E TRADIÇÕES, PORTUGUÊS, ASPECTO

O Brasil revela uma ainda muito pouco conhecida diversidade de línguas e falas, sobretudo se adentrarmos o universo das línguas e dos dizeres ameríndios, resistentes e sobreviventes. É uma diversidade silenciada pelo Estado, por missões, pelos meios de comunicação e nas escolas, diante da soberania (nacional) de uma única língua. Contudo, diante da agonia e da morte, das brechas e das fronteiras emergem novas línguas e variedades, orais e escritas. Eis uma primeira questão a ser enfrentada: o que é língua? Não há uma resposta única e inequívoca. A maior parte deste texto trata da tradução de línguas indígenas como processo, desafio, impasse, (im)possibilidade. Propomos alguns exercícios e saídas, atravessando palavras, gramáticas e artes verbais de um pequeno conjunto de línguas: a expressão do que chamaríamos de tempo, e que tempo não é, lá onde não é esperado, em kuikuro; o baile de traduções de palavras cruciais nas cosmologias ameríndias; a tradução de poéticas verbo-musicais, que operam transformações e conexões entre mundos humanos, não humanos e supra-humanos (kuikuro, marubo, parakanã, tikmũ’ũn). A chegada de intelectuais indígenas à academia nos oferece, enfim, reflexões e provocações em torno da “nossa” tradução de suas línguas. Em suma, traduzir línguas indígenas é um exercício em abismo de trocas de perspectivas e exige assumir o equívoco sempre latente.

I. BRASIL MULTILÍNGUE

O Brasil é, ainda, multilíngue. Além das línguas trazidas por imigrantes, das variedades regionais do português brasileiro e dos falares afrodescendentes, estima-se que no Brasil ainda sobrevivem, em graus variados de vitalidade, em torno de 160 línguas ameríndias, distribuídas em 40 famílias, 2 macrofamílias (troncos) e uma dezena de línguas isoladas. Essa diversidade linguística continua sendo silenciada, com estratégias variadas, pelo Estado, por missões, pelos meios de comunicação e nas escolas, em todos os níveis do chamado “sistema educacional”. A soberania de uma única língua, a dos conquistadores que conformaram a “nação”, é mantida a qualquer custo.

As línguas sempre morrem ou se transformam, no passado e hoje, e novas línguas surgem do encontro entre povos, mas é inegável que uma nada natural perda vertiginosa da diversidade linguística caracteriza a era da conquista europeia dos novos e velhos mundos, sobretudo nos últimos 500 anos e, ainda mais, nos últimos 200 anos.

Tendo como base o último censo brasileiro, realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 37,4% dos 896.917 indivíduos que se declararam “indígenas” falam sua língua nativa, a dos seus pais ou avós, e somente 17,5% desconhecem o português. O censo também revelou que 42,3% dos “indígenas” já não vivem em áreas indígenas e que 36% se estabeleceram em cidades; essa porcentagem continua em rápido crescimento. Dos que não estão mais em terras indígenas, apenas 12,7% falam a(s) língua(s) dos seus pais ou avós. O português é falado por 605,2 mil indivíduos (76,9% dos “indígenas”) e por praticamente todos os que vivem fora de suas terras (96,5%). A proporção entre 5 e 14 anos que fala uma língua indígena é de 45,9%, 59,1% dentro de terras indígenas e 16,2% fora delas. Nas terras indígenas, boa parte dos falantes de língua indígena não falam português, sendo o maior percentual o dos indivíduos com mais de 50 anos (97,3%), enquanto que, fora das terras, nessa mesma faixa etária, o censo revelou um percentual bem menor (40,7% de falantes somente de língua indígena). O quadro é claro: a transmissão esperada entre gerações é interrompida.

Segundo estimativas, já desatualizadas, o panorama não é animador: a média é de 250 falantes por língua; muitas línguas são usadas apenas em domínios restritos ou podem ser consideradas “inativas”; outras definham para o status de “línguas adormecidas”, um eufemismo, já que se supõe que elas possam ser “acordadas”. O último falante de apiaká morreu no começo de 2012; outras línguas contam com menos de dez falantes, como o yawalapiti. O guató é exemplo do último capítulo da sobrevivência de uma língua nativa: dois semifalantes sem comunicação entre si. Há não poucas línguas que manifestam sinais de declínio, com o abandono de artes verbais e de partes do léxico culturalmente cruciais, o uso do português como língua franca e o crescente bilinguismo (língua(s) indígena(s)/português). As línguas “ameaçadas” são a maioria das que existem, muito mais do que as oficialmente declaradas como tais, se adotarmos o critério internacional que define como “línguas em perigo” as que têm menos de mil falantes.

Ainda sabemos pouco sobre essas línguas, apesar dos avanços importantes de estudos, pesquisas e documentação nos últimos vinte anos.

II. “LÍNGUA”: UM PRIMEIRO INTRADUZÍVEL

A. Quantas são?

Quantas línguas indígenas ainda existem no Brasil? A resposta a esta pergunta deveria ser simples, mas, na verdade, não há nenhum levantamento atualizado, e os números são aproximativos; muito menos sabemos sobre a diversidade dialetal interna a cada língua. Uma língua sem diversidade interna é uma ficção: qualquer língua varia no tempo e no espaço (geográfico e social) e de uma situação comunicativa para outra. Não temos com relação às línguas indígenas a mesma atenção destinada à variedade interna do português; elas são quase sempre apresentadas como “objetos” homogêneos. E ainda menos sabemos sobre sistemas e contextos de bilinguismo e de multilinguismo, regra e
não exceção na história e na paisagem ameríndias antes da conquista.

Nessa dança dos números de objetos (línguas) supostamente contáveis, faz pensar o número de línguas indígenas que consta do censo de 2010: 274. Esse número se choca com as estimativas dos linguistas, mesmo as mais generosas: por volta de 160 línguas.

B. O que caracteriza uma língua?

Em primeiro lugar, o número “exagerado” de 274 línguas indígenas aponta para um suposto equívoco que deve ser interpretado, já que expressa traduções, apropriações e representações – com força e valor políticos – por parte dos alvos da operação censitária, os “indígenas”. Diante das opções “raciais” oferecidas pelo censo, os que se autodeclararam “indígenas” acessavam perguntas a respeito de seu “idioma” ou “língua”, uma inovação introduzida com o propósito de avaliar quantitativamente e qualitativamente a existência e a vitalidade das línguas indígenas no Brasil. As discussões provocadas pelos dados do censo têm revelado as dificuldades de se compreender o que é “língua”, de se chegar a uma definição que convença falantes, supostos não falantes que se declaram decididamente falantes de línguas consideradas “extintas” ou “adormecidas”, linguistas, não linguistas e agentes do Estado responsáveis por “patrimonializar línguas”.

Chegamos ao segundo ponto. Cabe uma pergunta: afinal, o que é uma língua?
Trata-se de um construto ideológico, que resultou, no Brasil, na perpetuação torturante da distinção entre, de um lado, língua nacional (uma nação, uma só língua) e línguas de civilização com suas literaturas (as que têm assento nos departamentos universitários) e, do outro lado, aquelas que até hoje custam a ser chamadas de “línguas”, talvez “idiomas”, “dialetos” ou “gírias”, sendo estes dois últimos termos claramente estigmatizantes.

Muitas vezes, os que se autodeclararam para o censo como falantes de uma língua considerada “extinta” pertencem a grupos que conseguiram ressurgir da invisibilidade e do silêncio. Em sua luta pelo reconhecimento de sua existência e resistência, bem como de seus direitos territoriais, declarar-se falantes de uma “língua” é um corolário lógico e uma urgência política. Algumas dessas comunidades não ficam apenas na retórica, e estão, no momento, empenhadas em se apropriar de uma língua, seja junto a vizinhos falantes de variedade ou língua aparentada (geneticamente e/ ou historicamente), seja através de uma recriação, como está acontecendo, há quase duas décadas, com o patxohã, a “língua dos guerreiros” pataxó, no sul do estado da Bahia. É o que está acontecendo no resgate da língua dos guató, o povo sobrevivente do Pantanal. Novas vidas e novas línguas voltam a povoar uma paisagem de perda e subtração, em iniciativas espontâneas de revitalização, sacudindo a omissão e à revelia das tímidas e fragmentadas políticas linguísticas do Estado. Em suma, é a noção de “língua” como construto político que interessa daqui em diante: “língua” declarada para existir, resistir, reagir.

Línguas morrem, mas novas línguas surgem dos interstícios, nas fronteiras, num constante processo de criatividade expressiva, em novas variedades tanto orais como escritas (por exemplo, o “internetês misturado”, português/língua indígena, usado nas comunicações eletrônicas em redes sociais). Se algumas línguas morrem, enterradas em funerais apressados (que lástima! Não foi possível salvá-las…), outras sobrevivem em variedades inesperadas. Jovens indígenas pulam capítulos inteiros da história da escrita alfabética ocidental, passando de uma forma de oralidade (a “tradicional”) para outra (vídeos, televisão, filmes, cantos, desenhos), inventando incessantemente novas poéticas, novos “textos”, novas ironias, novas metáforas, novos xingamentos, em suas línguas “misturadas”… Estamos em pleno “glocal”, a explosão do local no coração do global.

Os índios sempre foram bilíngues e multilíngues, mesmo antes de os brancos chegarem.

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Este trecho foi retirado do livro O dicionário dos intraduzíveis.

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