FIQ 2022: bate-papo exclusivo com Fabien Toulmé

Equipe - Publicado na categoria Entrevistas em 12/08/2022


Entre os dias 3 e 7 de agosto, o Minascentro recebeu o 11º Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte – o FIQ BH, que após três anos sem uma edição especial reuniu quadrinistas e visitantes de várias partes do mundo.

A Nemo, uma das principais editoras dedicadas ao gênero no Brasil, esteve presentada por nomes que há tempos estavam sendo aguardados pelos leitores brasileiros. O clima de saudosismo e a alegria de reencontrar artistas talentosos foram intensificados pela presença de Fabien Toulmé. O francês — que tem alma nordestina — é um dos quadrinistas mais aclamados pelos nemonautas.

Em uma entrevista exclusiva, o autor das obras Não era você que eu esperava, a trilogia A odisseia de Hakim, Duas vidas e Suzette — Ou o grande amor falou sobre o início da sua carreira, as inspirações para a criação de suas obras e o que vem por aí. Confira:

Quais são as suas inspirações para escolher os temas das suas graphic novels?

Com o passar do tempo eu consegui entender como eu funciono. Geralmente, tem uma coisa que acontece, uma coisa que eu vejo e que me gera alguma emoção. Isso não se torna imediatamente em uma história, mas é como se ela fosse uma semente plantada no meu cérebro e, com o decorrer do tempo, essa emoção vai se transformar em uma ideia e depois eu vou começar a construir essa história, mas sem escrever, só com a cabeça trabalhando mesmo. Então é assim, a emoção que se transforma em uma ideia e se torna uma história.

E você tem algum hábito de anotar essas ideias ou algo do tipo?

Depende. Com Suzette, meu último lançamento, por exemplo, a emoção que virou a ideia foi essa constatação de que a maneira como a gente vive um relacionamento mudou muito de algumas gerações para cá. Antigamente o casamento era uma construção social muito forte e, uma vez que a gente começasse a vida com uma pessoa, nós levávamos essa vida com a mesma pessoa até o fim. Hoje, é quase a situação inversa, é muito difícil você ficar a vida toda com a mesma pessoa porque nós temos critérios mais exigentes, porque ficou mais fácil se divorciar, porque a mulher tem mais autonomia financeira.

Eu comecei a sentir vontade de falar sobre isso, mas não existia ainda a trama da história, não existiam os personagens. Com o tempo eu comecei a captar algumas ideias, pode ser que eu veja um filme que me dê alguma inspiração, ou talvez eu esteja comendo em um restaurante e na mesa ao lado tenha uma discussão de um casal, e aí eu penso em uma situação que possa ser parecida com essa. Eu vou absorvendo um monte de coisas ao meu redor e assim eu começo a construir a narrativa, mas é uma construção mais mental, eu não escrevo nada até que a ideia esteja madura. Quando está maduro eu consigo escrever muito rápido porque é como se já estivesse quase tudo formado na minha cabeça.

Falando sobre processos criativos, qual é o seu preferido: ilustrar ou roteirizar?

Eu acho que cada etapa é prazerosa, mas o que torna prazeroso é justamente a possibilidade de fazer essa sucessão de etapas, a possibilidade de você construir a ideia, construir a história, imaginar os personagens. Quando você começa a imaginar os personagens é como se, aos poucos, eles se tornassem familiares, como se fossem seus amigos, sabe? Então quando você termina de escrever a história, você não quer deixar esses amigos, você quer continuar acompanhando, e o fato de desenhar é como se você continuasse vivendo uma vida com eles. Então é bom poder fazer cada etapa, ir acompanhando os amigos que você criou.

E fica um sentimento de tristeza quando você termina as suas histórias?

É uma mistura de alívio por ter terminado, porque é muito demorado para fazer um quadrinho. Geralmente, quando eu desenho um quadrinho, já estou na etapa de amadurecimento da história que vem depois, quando eu estou desenhando já vem se formando a história do quadrinho seguinte, então, na verdade, eu estou com pressa para começar a fazer esse próximo quadrinho. Tem uma certa tristeza de terminar a história, mas o sentimento de alívio e excitação de poder começar uma outra história é maior.

Quais autores ou quadrinistas brasileiros você acompanha?

Confesso que faz um tempinho que eu não leio quadrinho. Quando eu leio um quadrinho acabo sendo um pouco analítico demais, é como se um cozinheiro fosse à um restaurante e pensasse: “Poxa, talvez se tivessem colocado sal a comida ficaria melhor”. Então eu estou em uma fase que eu leio bem menos quadrinho, mas quando eu recomecei a ler, depois de muito tempo, encontrei a obra do Flavio Colin, um quadrinista brasileiro já falecido. Eu gostei muito da arte dele, da maneira como ele usou a cultura brasileira para contar história. Ele não quis fazer um quadrinho semelhante ao que se faz lá fora, ele disse “Não, eu sou brasileiro, nós temos uma cultura muito rica, eu vou trabalhar em cima disso”, e eu achei fantástico. Na época não era tão comum, todo mundo ia para área de quadrinhos infantis, de super-heróis, e ele quis investir nessa arte mais autoral.

Como surgiu o seu interesse por quadrinhos? Como foi a tomada de decisão de largar sua carreira como engenheiro para se transformar em um quadrinista?

Foi muito fácil, porque eu odiava o meu trabalho como engenheiro. Imagine: você tem um trabalho que você não gosta, todo dia você tem que acordar para fazer uma coisa que não gosta, é como tomar um banho de água muito fria. Então, para mim, largar a engenharia foi como sair dessa água fria, foi maravilhoso.

Mas você já tinha algum interesse pela área de quadrinhos? Você já desenhava? Pensava em transformar isso na sua profissão?

Na verdade, eu não me tornei quadrinista por acaso. Quando era pequeno eu lia muitos quadrinhos, acho que ser quadrinista foi um dos meus primeiros sonhos quando criança. Mas, depois, com o decorrer do tempo, a gente vai crescendo, recebemos a influência dos nossos pais, da sociedade que diz que é bom ter um trabalho sério, com um salário bom, com segurança, então eu comecei a perder esse sonho e me formei em engenharia. Mas, quando eu vi que todo dia eu estava tomando aquele banho de água fria, pensei: “O que eu poderia fazer para sair disso e fazer algo realmente prazeroso?”.

Eu estava morando em Fortaleza e encontrei uns quadrinistas brasileiros que conseguiam viver da arte, apesar de ser difícil no Brasil, mas eu achei incrível essa coragem de investir nessa arte, vivendo em um país onde o quadrinho não é tão valorizado. Isso me inspirou, na verdade, eu pensei: “Poxa, se eles estão conseguindo, se eles têm a coragem de fazer isso, eu que venho da França, que é um país com mais possibilidades na área dos quadrinhos, tenho que investir nisso”.

Foi assim que a ideia começou a amadurecer na minha cabeça, eu voltei a ler quadrinhos, eu voltei a desenhar e chegou o momento em que eu tomei a decisão de largar tudo e voltar para a França para tentar viver dos quadrinhos. Sem ter certeza, mas pelo menos eu queria tentar, porque na época eu tinha 28 anos e não me imaginava trabalhar até 65 anos como engenheiro. Eu acho que teria ficado deprimido, eu não gostava de jeito nenhum. Foi assim que aconteceu.

Você tem alguma graphic novel preferida entre as que já publicou?

Eu acho que é um pouco como ter filhos, é muito difícil escolher um filho preferido. Eu sempre passo por momentos em que eu não gosto daquela obra, depois eu volto a gostar. Na verdade, quando eu termino o quadrinho, quando ele vai ser lançado, é como se eu tivesse enjoado dele porque eu o li muito, eu trabalhei nesse quadrinho durante um ano inteiro, talvez mais, então meio que abusei do livro. Ao mesmo tempo, eu sou muito sensível à crítica do livro que acabou de sair, depois de passar um tempo eu fico mais tranquilo em relação a isso. Com o tempo eu começo a me reaproximar do quadrinho, então eu acho que cada um tem sua particularidade, cada um é vinculado a uma época da minha vida tem um estilo diferente — tem ficção, tem autobiografia, tem reportagem. São os meus filhos.

Sobre Suzette, como foi a escolha das relações retratadas na graphic novel? Por que você escolheu laços tão sensíveis como a relação entre dois idosos e de uma avó com uma neta?

Como eu disse antes, eu tive a ideia de falar sobre como nos relacionamos hoje em dia e a constatação de que, na época dos avós, era um casamento que a gente levava até o fim da vida, aguentando o que tivesse que aguentar, e que hoje é outra dificuldade, hoje temos a dificuldade da estabilidade. Eu quis falar dessa temática e comecei a imaginar quais poderiam ser os personagens que iam viver essa história. Eu queria muito que fosse do ponto de vista da mulher porque eu acho que, entre o casal, quem viveu mais essas mudanças foi a mulher. Também houve mudanças na forma de o homem enxergar um relacionamento, mas acho que essa mudança foi mais forte para a mulher. E para que duas gerações tão distantes pudessem conversar tão abertamente sobre isso, tinham que ser duas pessoas que se conhecessem muito bem.

Foi uma construção em forma de escada, no primeiro batente eu comecei a pensar justamente nessa temática sobre as relações, no segundo batente eu queria falar sobre o impacto disso para as mulheres, no terceiro batente eu quis mostrar que duas gerações distantes podem conversar de maneira bem íntima e aos poucos eu fui construindo essa história.

O que você está lendo agora? Ou qual foi o seu último livro lido?

Eu estou lendo um livro que se chama A muralha de lava, o autor é islandês, chamado Arnaldur Indridason.

Você tem algum recado ou fica para os fãs brasileiros que têm vontade de seguir pelo caminho das graphic novels?

Eu acho que, primeiramente, tem que ter um amor muito grande pela arte. Você vai precisar treinar todos os dias e, para praticar, tem que ter amor. O amor também é importante porque nós encontramos muitas dificuldades pelo caminho e isso pode te desencorajar. Então eu acho que a base de tudo é o amor, a vontade de viver disso, sabendo que não é fácil, mas acreditando que é possível.

*O que você pode nos contar sobre Em Lutte? *

Eu estou começando uma série que se chama “Os reflexos do mundo”. O objetivo dessa série é, em cada volume, falar de uma temática e encontrar pessoas no mundo que vivem essa temática. Nesse primeiro volume, eu falo sobre luta e eu fui para o Líbano encontrar uma mulher que estava fazendo parte da revolução de lá. Eu vim para o Brasil, na Paraíba, em João Pessoa, para conhecer pessoas que lutavam pela sobrevivência da favela, da comunidade onde eles moram. E eu fui para o Benim, na África, para encontrar uma jovem que vai para a área rural para fazer sensibilização contra a gravidez precoce. A ideia é fazer três reportagens, contar a história dessas pessoas, para que quando você termine de ler entenda um pouco melhor sobre as temáticas de cada volume.

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