“Confissões marca o primeiro mergulho literário ocidental na interioridade humana”

Equipe - Publicado na categoria Entrevistas em 28/04/2023


Mais de 1.600 anos após sua publicação, as Confissões de Agostinho de Hipona continuam a atrair a atenção dos leitores. As razões para isso são diversas: seu caráter de memória, autobiografia, hino, oração, salmo, exortação, tratado teológico, diálogo e narrativa literária exerceu influência não apenas na definição de alguns dos principais pilares da religião cristã, como também tornou Agostinho de Hipona um dos maiores teólogos e filósofos da história do pensamento ocidental.

A nova edição da obra, que acaba de ser publicada pela Autêntica, em tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, atesta a relevância da obra e recupera a riqueza literária deste texto, identificando suas centenas de menções a textos bíblicos e à literatura latina, além dos vários trechos versificados que emulam os salmistas.

Márcio Meirelles Gouvêa Júnior possui mestrado em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra, em Portugal, e mestrado e doutorado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É pesquisador da Universidade de Coimbra e professor de Língua e Literatura Latina. Pela coleção Clássica, publicada desde 2014, já traduziu Utopia (2019), de Thomas More; Fastos (2015), de Públio Ovídio Nasão; e Medeias latinas (2014) (vários autores).

Em entrevista ao Blog do Grupo Autêntica, o tradutor compartilhou os diferenciais da nova edição e destacou os elementos que garantiram a influência da obra de Agostinho de Hipona ao longo do tempo.


As Confissões foram escritas por Agostinho de Hipona entre os anos 397 e 401 d.C. e representam um dos mais antigos relatos autobiográficos da cultura ocidental. O texto já ganhou diversas publicações ao longo dos séculos. Por que este livro desperta tanto interesse nos leitores?

Antes de tudo, as Confissões são lidas há mais de 1.600 anos por serem um texto de beleza extraordinária, de pura riqueza poética. São a obra mais conhecida do maior orador de seu tempo. Sua estrutura encanta o leitor desde os primeiros versos, e sua musicalidade o transporta à atmosfera mística da narrativa, do encontro físico de Agostinho com o seu Deus. Elas são o primeiro grande mergulho literário ocidental na interioridade humana, nos esconderijos de seu inconsciente, na sede oculta de seus desejos e na intrincada estrutura do tempo e da memória. Elas são o registro emocionado das indagações e perplexidades de uma mente inquieta diante de seus problemas essenciais, como natureza do mal, da felicidade, do amor e da fé. E essas são questões que nunca deixaram de se impor à reflexão de todos nós e que ainda hoje encontram em Agostinho sua mais luminosa e tocante exposição. Ler Agostinho é, em si, e como ele propõe, uma experiência de êxtase.


Santo Agostinho, reconhecido pela sua vasta obra intelectual, tem um importante papel na história do pensamento ocidental. Quem foi Agostinho de Hipona para além da Santidade?

Agostinho foi um dos pensadores mais importantes do primeiro milênio de nossa era. Um escritor e polemista incansável, com uma obra de mais de setenta grandes tratados. Sua leitura neoplatônica das cartas de Paulo de Tarso moldou o pensamento do mundo ocidental. Foi principalmente ele quem consolidou as bases da religiosidade que haveria de perdurar pelos séculos seguintes, formulando conceitos como o de livre-arbítrio, graça divina, trindade e pecado original.

Mas, além disso, Agostinho também foi um orador excepcional, um hábil e apaixonado pregador, que conseguia levar multidões de todas as regiões do mundo para ouvir seus sermões dominicais na Basílica da Paz, na distante Hipona – uma pequena e quase sem importância cidade do norte da África. Mas, revolucionário no pensamento teológico, ele o foi também em outras áreas. É dele a primeira, e uma das mais profundas, análise sobre a natureza da memória, com seus conteúdos manifestos e latentes.

Do mesmo modo, é com Agostinho que conseguimos explicar o paradoxo do tempo por meio de sua percepção pela mente, para a qual, na inexistência do tempo passado e do futuro, há apenas um eterno presente para o sujeito, no qual ele percebe as coisas passadas e futuras – como a psicanálise no século XX tanto haveria de estudar. É também dele a noção do arrebatamento provocado pela música, que seria capaz de nos levar a transcender o mundo terreno para atingir as dimensões mais profundas da mente, e, de lá, a transcendência mística. Do mesmo modo, no contexto da produção poética ocidental, são dele os primeiros versos com a estrutura rítmica que ainda hoje usamos, que se vale do paralelismo na sequência de sílabas tônicas.

Assim, podemos dizer que, se o mundo, durante a idade média, instruído por suas obras em prosa, pensou como Agostinho, ele também cantou como ele uma nova melodia: uma que se pretendia capaz de elevar a alma à presença mística da divindade, modulada em uma inédita cadência de versos, como se buscou recuperar e evidenciar na nossa edição das Confissões.


Entre toda a obra de Agostinho de Hipona, as Confissões foram as que mais vigorosamente sobreviveram ao tempo e seguem sendo lembradas como um marco literário, filosófico e religioso. Em que contexto elas foram escritas e a quem se destinavam?
As Confissões foram escritas quando o ocidente completava a transição de suas crenças clássicas para as crenças cristãs, em que o mundo romano se convertia. E elas são o relato da conversão de Agostinho, dividida em três partes: a descoberta de Deus, descrita no seu relato autobiográfico (Livros 1-9); a sua vida presente com Deus, na análise de sua interioridade e das nascentes de seu pensamento e de seus desejos, por meio da reflexão sobre o funcionamento da memória (Livro 10); e a vida futura em Deus, na discussão filosófica final do livro, quando ele percorre os versículos iniciais da Bíblia (Livros 11-13).

Elas são, portanto, uma obra de defesa e explicação da fé, que foram escritas logo no início de sua atividade pastoral como bispo, na cidade de Hipona, quando ele ainda estava no começo de sua formação como grande pensador das questões religiosas do cristianismo norte-africano. Daí vêm as três acepções de seu título: são uma obra que confessa as faltas passadas do autor, professa a sua fé presente e expressa a esperança que ele tem no futuro.

São, então, uma obra destinada à emulação de um modo de vida, tanto dos já convertidos quanto dos que ainda não foram. Além disso, foi uma obra que serviu para Agostinho, recém-consagrado bispo, defender-se daqueles que o acusavam das mais variadas faltas: de que ele ainda era um adepto da seita dos maniqueístas; que sua vida passada fora dissoluta; e de que seu batismo fora irregular.


Apesar da importância da obra de Santo Agostinho na história do catolicismo, a relevância das Confissões ultrapassa as barreiras religiosas. O que torna o livro, para além de um clássico da teologia cristã, um clássico da literatura mundial?
Antes de tudo, as Confissões são a obra de um gênio da oratória antiga; uma obra literária de cuidada elaboração. São uma verdadeira colcha de retalhos, composta de mais de 1.600 citações bíblicas e clássicas, de hinos, épicas e odes, que se entrelaçam no texto confessional de forma sutil e harmoniosa, conferindo-lhe, por um lado, diversos estratos de significação e entendimento e, por outro, evocações rítmicas que enlevam o leitor ora à memória dos salmos dos testamentos, ora à grandeza dos cantos épicos, em movimentos ascensionais da alma.

Esse diálogo literário é apresentado já nos primeiros capítulos do livro, em que ele descreve todo o seu processo educacional tradicional e evidencia seu profundo amor pela literatura latina. Ele sabe de cor as obras de Virgílio, Cícero, Terêncio e, com elas, se regozija. Mas, no convívio com Ambrósio de Milão, ele logo também encontrou prazer na leitura dos textos bíblicos, embora ainda com traduções latinas de pouca qualidade.

No entanto, a partir do método de interpretação alegórica das Escrituras, aprendido com Ambrósio, ele pôde fazer convergirem as duas tradições de pensamento que se encontravam em conflito naquele momento histórico – a clássica e a hebraico-cristã – e, por meio de um inexaurível diálogo literário de citações, alusões e referências compreendidas pelos seus ouvintes e neles amplificadas graças ao reconhecimento desses conteúdos subjacentes, ele conseguiu compor o mais realista e confessional retrato de um ser humano, não restrito apenas a seu tempo, mas um retrato de todos nós.


A edição de Confissões que acaba de ser publicada pela Autêntica traz um diferencial em relação a outras publicações, usualmente intituladas como Confissões de Santo Agostinho. Quais são os motivos por trás dessa escolha?
O título de nossa edição é Confissões, de Agostinho de Hipona. Decidimos retirar a caracterização de santo tradicionalmente a ele conferida para evidenciarmos o viés de nossa proposta. O olhar do tradutor foi aqui literário, com o instrumental dos Estudos Literários. Afinal, faltava em português uma edição das Confissões com esse foco expresso, e não com leitura teológica ou filosófica, como predominantemente nas edições anteriores.

A exclusão do título religioso permite que se sobressaia o orador, o poeta, o salmista, o ser humano em solilóquio. Então, a retirada da dimensão de santidade do autor, em uma forma de dessacralização do texto das Confissões, permite que a sua humanidade se apresente de forma plena e que toda a rede de referências, muitas vezes calada durante séculos de limitações teológicas dogmáticas, surja em surpreendentes novas interpretações, muito mais condizentes com os costumes do império romano no final do século IV do que com as explicações futuras. É o caso da vida de Mônica, sua mãe, que, por meio da análise literária, perde em realidade e verossimilhança para adquirir um profundo enraizamento com suas fontes poéticas, sob o constante modelo de Virgílio e de Terêncio.


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Quais são os outros diferenciais desta edição e da tradução? Quais foram os principais desafios para empreendê-la?
Nossa edição é muito diferente das anteriores. Primeiro, ela apresenta um corpo de mais de 400 notas históricas, literárias e filológicas inexistente nas outras edições, que se limitaram às citações bíblicas e a pouquíssimas análises de termos obscuros. Acreditamos serem necessárias essas explicações para a melhor fruição do texto, já que as interrelações subjacentes à obra, as referências a outros autores e contextos, as noções filosóficas, históricas, poéticas, semânticas, teológicas e pessoais são imprescindíveis para uma leitura mais proveitosa de qualquer texto, quanto mais de uma obra de tamanha tessitura de fontes e dados.

Por isso, incorporamos nas anotações os trechos de outras obras de Agostinho que esclarecem e evidenciam pontos menos desenvolvidos nas Confissões, mas lá presentes. Incorporamos, também, a opinião dos diversos tradutores e estudiosos, desde a edição renascentista de Erasmo de Roterdam até as mais recentes leituras periféricas e feministas da obra. Fornecer esse material ao leitor é dever daquele que pretende publicá-la. Por outro lado, há também na parte final do volume as cartas de Agostinho para os interlocutores presentes na obra, como seus amigos Nebrídio e Alípio. Essa correspondência abre para o leitor contemporâneo uma janela de observação da vida de Agostinho, sendo um precioso repositório de informações sobre sua vida e seu pensamento.

Por outro lado, a partir da análise de Agostinho quanto aos efeitos ascensionais da música na alma humana e do estudo da estrutura do texto latino, com suas irregularidades em relação às normas do latim clássico e suas semelhanças com os versos dos salmos e hinos bíblicos, propusemos nesta nossa tradução uma inédita leitura em versos de grande parte das Confissões, notadamente na passagem em que Agostinho se dirige expressamente a Deus, como nas preces e súplicas e nos momentos confessionais.

Esse, talvez, tenha sido o maior desafio da tradução: Agostinho criou uma nova língua, uma espécie de latim cristão, um precursor do latim litúrgico, modificando o idioma hegemônico na parte ocidental da costa mediterrânea para adequá-lo ao contexto religioso nascente, para fazer com que a velha língua dos poetas romanos se ajustasse às novas analogias e imagens bíblicas, aos ecos salmódicos de Davi e Salomão, com seus versos de ritmo fluido e sem rima, com seus paralelismos de ideias e sua peculiar disposição das palavras. Além disso, ele criou uma nova prosódia para as palavras latinas, já que, como ele mesmo diz, seus ouvidos africanos não distinguiam o ritmo utilizado até então pelos clássicos. Por isso, os versos de nossa tradução das Confissões também guardam algo dessa estranheza em relação ao texto, sentida decerto pelos primeiros leitores da obra. É, por exemplo, a estranheza causada pela incomum posição dos pronomes possessivos, normalmente pospostos por Agostinho aos substantivos, e que, apesar de inusuais, causam a impressão de maior proximidade com o autor.

Por tudo isso, nossa edição é mesmo bastante inovadora. Em resumo, é sua primeira tradução literária.


Ainda hoje, Santo Agostinho é reconhecido como um dos responsáveis pela primeira grande síntese do cristianismo. O que isso significa e de que forma essa concepção se reflete em Confissões?

Agostinho é, sem dúvida, um dos fundadores do cristianismo. Em um tempo em que os textos bíblicos não estavam ainda sistematicamente traduzidos para o latim, ele incorporou à análise deles a consistência filosófica neoplatônica, dando forma às ideias de Paulo de Tarso de modo a criar a noção de um Deus único e transcendente, incomunicável com os humanos senão pela Graça. E esse é um dos principais fios de interpretação da obra, presente na famosa expressão: “Dá o que ordenas, e pede o que quiseres”. Por outro lado, a noção da relação entre o tempo da criação e Deus, do qual o tempo cronológico é apenas um vestígio, é outro motor das Confissões para explicar que a presciência divina não afasta o livre-arbítrio, com o qual Agostinho explica a essência do mal. Como se vê, estão nas Confissões todos os fundamentos da crença cristã, com seus limites e alicerces.


Em vida, Agostinho de Hipona foi um estudioso assíduo da razão grega, pensamento que atravessa profundamente a sua formulação da relação entre a filosofia e a teologia. Quais pensadores foram posteriormente influenciados por sua obra?
Costumo dizer que todos os pensadores leram Agostinho. No plano religioso, não há como pensar em Tomás de Aquino, Teresa D’Ávila ou João da Cruz sem pensar em Agostinho. Tomás de Aquino apenas conseguiu alinhar a Igreja ao aristotelismo após a firme estrutura neoplatônica dos primeiros mil anos de agostinianismo na Igreja. Teresa D’Ávila e João da Cruz viveram o mesmo misticismo de Agostinho, que chegava a considerar sua obra um veículo, pela mera leitura, para os êxtases místicos. Já no plano filosófico, foi em Agostinho que se inspiraram Dante, Petrarca, Montaigne e Rousseau, em suas diversas formas de confissões. Foi em Agostinho que Freud encontrou o início de sua reflexão psicanalítica sobre o inconsciente, com seus conteúdos manifestos e latentes; que Henri Bergson desenvolveu sua noção de duração e que Ricoeur percebeu a função do tempo na narrativa e da literatura; que Hannah Arendt definiu o amor como elemento de união social; que T. S. Eliot encontrou sua ideia de “terra desolada”; e que Foucault e Derrida definiram o conceito confessional da contemporaneidade.


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