As ondas, de Virginia Woolf - interlúdio III

Tomaz Tadeu | Virginia Woolf - Publicado na categoria Palavra da Editora em 30/12/2020


Até o lançamento de As Ondas, previsto para o primeiro semestre de 2021, publicaremos, semanalmente, os nove trechos que Virginia chamava, em seu diário, de “interlúdios”, nos quais uma voz narrativa descreve o movimento do sol desde a madrugada até o anoitecer e uma série de eventos associados a cada um de seus estados. A tradução é de Tomaz Tadeu.

interlúdio III

O sol se levantou. Barras de amarelo e verde caíam sobre a praia, dourando as balizas do barco carcomido e fazendo o cardo-marinho e suas encouraçadas folhas luzirem azul como aço. A luz quase atravessava as velozes e tênues ondas à medida que elas se precipitavam em leque sobre a praia. A garota que sacudira a cabeça e fizera todas as joias, o topázio, a água-marinha, as joias aquareladas cobertas de faíscas de fogo, dançarem, agora descobria a fronte e, com olhos arregalados, abria caminho, em linha reta, por sobre as ondas. A cintilação delas, tremulante e como a de uma cavalinha, se tornava escura; elas se acumulavam; suas cavidades verdes se aprofundavam e escureciam e podiam ser atravessadas por cardumes de peixes errantes. Ao avançarem e recuarem, chapinhando, deixavam uma fímbria negra de gravetos e cortiça e palha e estilhas de madeira na praia, como se alguma chalupa leve tivesse afundado e perdido os costados e o marinheiro tivesse nadado até alcançar terra firme e escalado o penhasco e deixado sua frágil carga ir parar na praia.

No jardim os pássaros que na alvorada tinham cantado errática e espasmodicamente em cima daquela árvore, em cima daquele arbusto, agora cantavam em coro, estridentes e ruidosos; ora juntos, como se conscientes da companhia, ora sozinhos como se cantassem para o céu azul-claro. Davam meia-volta, em bando, quando o gato negro se mexia por entre os arbustos, quando a cozinheira jogava cinzas no quintal, espantando-os. O medo estava em seu canto, e a apreensão da dor, e o prazer a ser arrebatado rapidamente, agora, neste instante. Também cantavam por emulação no ar límpido da manhã, dando guinadas no alto, por sobre o olmo, cantando juntos ao mesmo tempo que iam um atrás do outro, escapando, perseguindo-se, bicando-se, enquanto davam voltas no alto. E, então, cansados da perseguição e fuga, graciosamente vinham descendo, delicadamente vinham baixando, silenciosamente caíam e pousavam na árvore, no muro, com seus olhos brilhantes olhando de relance, e a cabeça virada para um lado, para o outro; atentos, alertas; intensamente conscientes de uma coisa, de um objeto em particular.

Talvez fosse a concha de um caracol, erguendo-se na grama como uma catedral gris, uma edifício inchado, marcado a ferro com anéis negros e sombreado de verde pela grama. Ou talvez vissem o esplendor das flores compondo uma luz de um púrpura ondulante sobre os canteiros, ao longo dos quais túneis negros de um tom púrpura eram escavados por entre os talos. Ou fixassem o olhar, bailando, embora refreados, nas minúsculas e brilhantes folhas da macieira, que reluziam rígidas por entre as inflorescências de pontas rosadas. Ou vissem a gota de chuva sobre a sebe, pendente mas não escorrendo, com uma casa inteira encurvada dentro dela, e olmos grandiosos; ou, olhando direto para o sol, seus olhos virassem contas douradas.

Agora olhando para um lado, para o outro, examinavam mais profundamente, por sob as flores, ao longo das avenidas escuras, o mundo sem luz onde a folha apodrece e a flor caíra. Então um deles, arremessando-se esplendidamente, aterrizando precisamente, bicou o corpo macio, monstruoso da indefesa minhoca, deu bicadas e mais bicadas, e abandonou-a à putrefação. Lá embaixo, entre as raízes, onde as flores apodreciam, lufadas de odores fétidos se elevavam; gotas se formavam nos lados empolados de coisas inchadas. A casca das frutas podres rachava e vertia um pus espesso demais para poder escorrer. Excreções amarelas eram secretadas pelas lesmas e de quando em quando um corpo amorfo com uma cabeça em cada ponta se balançava lentamente de um lado para o outro. Os pássaros de olhos dourados lançando-se por entre as folhas observavam aquela purulência, aquela umidade, inquisitivamente. De vez em quando, mergulhavam selvagemente a ponta do bico na mistura gosmenta.

Agora, também, o sol nascente atingia a janela, tocando a cortina debruada de vermelho, e começava a realçar círculos e linhas. Agora, à luz crescente, sua alvura se instalava no prato; a lâmina da faca condensava seu brilho. Cadeiras e guarda-louças avultavam ao fundo de modo que embora estivessem separados pareciam inextricavelmente entrelaçados. O espelho alvejava sua poça sobre a parede. A flor real sobre o peitoril da janela ganhava a companhia de uma flor fantasma. Mas o fantasma era parte da flor, pois quando um botão brotava a flor mais pálida do espelho também abria um botão.

O vento ficava mais forte. As ondas tamborilavam na praia, como guerreiros em turbantes, como homens em turbantes com azagaias envenenadas que, girando os braços no alto, avançam sobre os rebanhos de pasto, as ovelhas brancas.


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