Há cem anos nascia uma estrela chamada Clarice Lispector

Hugo Almeida - Publicado na categoria Nossos Autores em 10/12/2020


Tão instigante quanto a obra, é a vida de Clarice Lispector (1920-1977). Ao nascer na Ucrânia em 10 de dezembro de 1920, ganhou o nome de Haia, vida em hebraico. Era a terceira filha dos russos de origem judaica Pinkouss (Pedro) e Mania (Marieta). Clarice dizia que havia chegado ao Brasil com apenas dois meses, mas a estudiosa de sua vida e obra Nádia Battella Gotlib documentou no livro Clarice Fotobiografia, publicado pela Edusp, que ela aportou em Maceió, em 1922, com um ano e três meses. A futura escritora, que 22 anos depois começaria a renovar a literatura brasileira com o romance Perto do coração selvagem, desembarcou no país no exato ano da Semana de Arte. Destino, mistério?

A família mudou-se em 1925 para Recife, onde viveu até 1935, quando Pedro, que tinha ficado viúvo cinco anos antes, e as filhas Elisa, Tânia e Clarice mudam-se para o Rio de Janeiro. Na então capital federal, a jovem Clarice estudou Direito na Universidade do Brasil, onde conheceria Maury Gurgel Valente, seu colega de curso, com quem se casaria. Clarice perdeu o pai em 1940 e no mesmo ano começou a trabalhar na Agência Nacional como redatora. Teve como companheiros de trabalho, entre outros, os escritores Lúcio Cardoso (1912-1968) e Antonio Callado (1917-1997). Em 1942, Clarice estreou como repórter de A Noite. Em janeiro do ano seguinte, naturalizada brasileira, casou-se com Gurgel Valente, então diplomata. Começava ali uma longa peregrinação pelo Brasil e exterior.

Em 1943, deixaria perplexo Antonio Candido (1918-2017) e outros críticos com Perto do coração selvagem, seu primeiro livro. Segundo Candido, “crítico titular” da Folha da Manhã, a jovem autora “colocou seriamente o problema do estilo e da expressão”. No artigo publicado em julho de 1944 Candido saudou a estreante: “O ritmo do livro é um ritmo de procura, de penetração, que permite uma tensão psicológica poucas vezes alcançada na nossa literatura moderna”. Esse artigo de Antonio Candido está em seu livro Brigada Ligeira, de 1945, depois reeditado.

No início de 1944, Clarice e Gurgel mudaram-se para Belém (PA). Em agosto eles já estavam em Nápoles. Clarice morou em vários países, como Estados Unidos, Inglaterra e Suíça até se separar do marido em 1959, quando voltou para o Rio de Janeiro, onde viveria seus últimos 18 anos. O casal teve dois filhos, Pedro (1948) e Paulo (1953). Enquanto escrevia livros, Clarice publicava contos e crônicas em diversos jornais e revistas, como Senhor, Correio da Manhã, Diário da Noite, Manchete, Fatos e Fotos, Jornal do Brasil e Última Hora. Depois de Perto do coração selvagem, lançou O lustre (romance, 1946) e Laços de família (contos, 1960).

Em carta a Clarice em 3 de setembro de 1961, o escritor Erico Verissimo (1905-1975), que se tornara amigo do casal Clarice-Gurgel Valente em Washington, afirmou: “Não escrevi antes sobre seu livro de contos Laços de família por puro embaraço de lhe dizer o que eu penso dele. Aqui vai: é a mais importante coletânea de contos publicada neste país desde Machado de Assis”. Em 1966, Clarice Lispector sofreu queimaduras na mão direita e nas pernas em incêndio em seu quarto, no Leme, no Rio de Janeiro. Num Congresso Mundial de Bruxaria na Colômbia, em 1975, em vez de ler o discurso que havia preparado, Clarice Lispector apenas falou um pouco antes de alguém ler “O ovo e a galinha”, de A legião estrangeira, conto que ela mesma considerava “tão inexplicável como se fosse sobrenatural”, “misterioso”, com “uma simbologia secreta”. Vítima de câncer, Clarice partiu em 9 de dezembro de 1977. No dia seguinte, completaria 57 anos.

Clarice Lispector nunca quis ser escritora profissional para não perder a liberdade e durante muitos anos teve dificuldade para conseguir editor. Hoje seus livros estão traduzidos em dezenas de países. Clarice produziu vasta obra, cada vez mais admirada, como os romances O lustre (1946), A maçã no escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969), A hora da estrela (1977), filmado em 1985 por Suzana Amaral (1932-2020), a novela Água viva (1973) e os volumes de contos Laços de família (1960), A legião estrangeira (1964), Felicidade clandestina (1971), A via crucis do corpo e Onde estivestes de noite (1974), além de livros infantis, como O mistério do coelho pensante (1967), A mulher que matou os peixes (1968) e A vida íntima de Laura (1974). Em seu livro História concisa da literatura brasileira (Editora Cultrix), o professor e crítico literário Alfredo Bosi (1936) lembra que Clarice Lispector manteve-se “fiel às suas primeiras conquistas formais” de Perto do coração selvagem e destaca no estilo clariciano “o uso intensivo da metáfora insólita, a entrega ao fluxo da consciência, a ruptura com o enredo factual”.

Como apontam estudiosos de sua obra, Clarice escreveu histórias reais, do cotidiano, espelho natural da vida, natural, mas que reflete mistério, inquietação e sofrimento. Como a de todo autor clássico, a obra de Clarice Lispector não morre. Aversa à frivolidade, ela escreveu sobre a alma humana, a perplexidade do ato de viver, sobre a solidão. Muitas vezes sobre a melancolia da mulher “feliz”. Clarice mescla a agudez da dor com a mansidão da alegria, sempre efêmera. Há ritmo e som no texto, uma cavatina, pequena ária para solista, dolorosa, “o sofrer em compasso”, como diz Antoine Roquentin, personagem-narrador de A náusea, de Sartre. E reverberam no texto da Clarice silêncios eloquentes. Os personagens claricianos não silenciam seus urros, ainda que por vezes sejam metafóricos ou manifestos em surdina.

Ler certos contos da Clarice é como entrar andando no mar, a água mansa chega aos joelhos, à cintura, parece tudo tranquilo, seguro e de repente você perde o pé, o fundo do mar afundou, a água cobre sua cabeça. E não há salva-vidas na praia da Clarice, você precisa aprender a nadar. O texto dela tem essa força oculta latente, como disse um grande escritor. É palimpséstico, traz inúmeras camadas. Há sempre algo vulcânico ou abissal sob a pele das palavras. Isso não morre, será sempre atual. Clarice Lispector está viva.

Hugo Almeida, organizador de Feliz aniversário, Clarice
São Paulo, dezembro de 2020

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