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‘O tratador do zoológico de Mossul’: um homem por seus leões (Nexo)

24/07/2020 —

O ‘Nexo’ publica trecho de livro baseado na história real de um homem iraquiano que enfrentou os riscos de uma ocupação do Estado Islâmico para proteger o seu zoológico. Abu Laith, apelidado de ‘pai dos leões’, garantiu por dois anos a sobrevivência dos animais, superando forças repressoras, bombardeios e a fome, antes de os levar para fora do país com uma ousada operação de resgate

***

O parapeito que protegia a beirada da laje de Abu Laith tinha um metro de altura e vinte de comprimento — em cimento róseo, moldado num contraforte que ressaltava da lateral da casa. Dali, qualquer um agachado na laje com o alto da cabeça sobressaindo da amurada ficava quase invisível a quem estivesse trabalhando no novo zoológico do parque, em frente à casa.

No meio da tarde, Abu Laith estava às voltas com sua habitual administração do zoológico a partir da laje. Vinha mantendo um perfil discreto desde que os homens da mesquita haviam ido à sua casa, pois tinha receio de ser preso se o vissem no zoológico. Mas sua segurança tinha uma enorme desvantagem — não podia mais passar um tempo com Zombie, nem com Mãe e Pai, ou com Lula, a ursa, e o filho dela, que as crianças dali apelidaram de Warda.

Desde a semana em que os leões haviam chegado ao novo local em frente à casa de Abu Laith, não aparecera ninguém com um mínimo de competência para cuidar dos animais. Abu Laith estava furioso, queria alguém para ficar de olho neles. Ahmed, o funcionário que havia escondido Zombie e seu irmão ainda filhotes num cercado na garagem da sua casa, parecia ser o atual encarregado do zoológico, depois de sua transferência forçada. Não passava muito tempo ali, e, no entender de Abu Laith, não se preocupava tanto com os animais quanto em coletar os quinhentos dinares que as pessoas pagavam para entrar e vê-los. Além de Ahmed, havia também alguns funcionários que cuidavam de aparar a grama, gerir os carrosséis e, de vez em quando, dar algo de comer aos bichos.

Tecnicamente, Ahmed era os olhos e os ouvidos de Ibrahim, o dono do zoológico — e também o seu administrador na ausência do patrão. Ibrahim morava em Erbil e não tinha nada a ver com a gestão do dia a dia do parque de diversões.

Desde que o zoológico viera para sua nova localização, Abu Laith via outros animais chegarem quase todos os dias. Pavões, macacos — incluindo um babuíno — e um avestruz, com suas longas penas pretas, haviam sido trazidos em caminhões, soltando guinchos e assumindo posturas indignadas. Depois vieram as cabras e a raposa, alguns porquinhos-da-índia e um esquilo. As cobras chegaram em caixas de vidro, e dois pôneis shetland corriam soltos num pequeno recinto.

A maioria dos animais foi disposta em jaulas em volta de uma área cimentada na parte esquerda do zoológico, do ângulo em que Abu Laith os via de sua casa. Ele queria muito ir até lá e ver os bichos de perto. Desde a breve visita que fizera no primeiro dia, quando os animais chegaram, e quando teve um feliz vislumbre de Zombie, não fora mais até o zoológico. No limite do parque, entre a casa de Abu Laith e o zoológico, ficava a mesquita. Como não retomara as rezas, ignorando, portanto, as instruções que lhe haviam sido dadas, Abu Laith não podia correr o risco de passar pela mesquita e ser identificado. Então ficava ali na laje, aguardando, espionando o que acontecia no zoológico, dando um tempo até ver se conseguia conceber algum plano.

Só que, em várias ocasiões, quase foi visto por Ahmed e pelos daeshis que andavam pelo zoológico. Precisava era de alguém ali, para informá-lo sobre o que acontecia. Um espião, pensou Abu Laith, enquanto se afastava de seu posto.

Desceu e começou a traçar um plano. Já contava com Luay, que ele podia mandar ao zoológico. Mas, embora o menino fosse muito esperto, intimidava os outros tanto quanto um cocker spaniel. Abu Laith precisava de um leão — alguém capaz de manter os animais em segurança e que ficasse de olho em Ahmed. Se tivesse um milímetro de espaço, Abu Laith ponderou com pessimismo, aquele homem seria capaz de vender os animais pela melhor oferta.

Sabia o que devia fazer. Pegou uma cadeira e sentou-se junto à porta de entrada, como um homem num trono. O portão estava semiaberto, portanto ele podia observar o que acontecia na rua sem ser visto. Sentou, bebericando seu copo de chá, esperando que aparecesse alguém apto a ser espião — alguém que ele pudesse enviar ao zoológico em seu lugar.

Teve que esperar até o sol começar a se pôr e a rua ficar quase esturricada com o calor do dia. Luay se juntara a ele, e os dois ficaram ali, observando a rua. Já haviam passado alguns jovens por ali, mas Abu Laith descartara todos. Baixinho demais, magro demais, fraco demais. Precisava de alguém mais assertivo, que fosse capaz – se preciso — de impedir qualquer tentativa de roubo dos animais e de supervisionar a dieta alimentar de Zombie.

Por volta das 6h30 da tarde, ouviram uma voz rouca de algum aldeão que gritava pela rua.

— Esse aí é o Marwan — disse Luay. — Eu o conheço, é daqui do bairro. Um cara legal, mas meio tosco.

Abu Laith pareceu interessado.

— Às vezes ele bebe — disse Luay. — E o pai dele é uma figura. Mas é um cara forte.

Percebendo a aproximação do rapaz, Abu Laith levantou e foi até o portão da casa. O jovem tinha mais ou menos a idade de Luay, mal saído da adolescência, magro, mas musculoso. Seus antebraços estavam cheios de tatuagens caseiras, relevos esverdeados e confusos em cima da pele. Era bem bronzeado de sol e parecia bravo.

Para Abu Laith, o cara perfeito.

— Assalamu aleikum — ele o saudou, e chegou perto dele.

O rapaz olhou surpreso para Abu Laith e cumprimentou Luay com um aceno de cabeça.

— Wa aleikum assalam — respondeu.

— De onde você é? — Abu Laith perguntou.

— Hasan Sham — ele disse. Era uma vila de maioria curda, fronteiriça ao território do Daesh. Embora fosse árabe, Marwan aprendera a falar curdo por ter sido criado lá.

— Você está empregado? — perguntou Abu Laith, sabendo muito bem que não estava.

— Não — disse Marwan. — Sabe de alguma vaga?

Abu Laith, que concebera um plano no qual punha muita fé, indicou com um gesto uma pilha de tijolos junto ao portão. — Você se incomodaria em ajudar a transportar alguns desses tijolos? — ele perguntou, de olho na reação de Marwan. Luay ficou rondando por perto, procurando não interferir nos assuntos do pai.

Marwan concordou. Sem demora, carregou os tijolos e os dispôs em duas pilhas no ponto indicado pelo dono da casa. Seus braços, Abu Laith notou, eram admiravelmente robustos, e ele parecia capaz de cumprir ordens.

— Muito bem — ele disse, enquanto Marwan acomodava uma braçada de tijolos empoeirados. — Venha aqui dentro, um momento. Seja bem-vindo.

Foram até a sombra e sentaram-se os três. Marwan tinha 20 anos, disse a Abu Laith, e viera à cidade com a família para ganhar algum dinheiro. Precisava muito de trabalho.

— Estou procurando um espião — disse Abu Laith, enquanto descansavam um pouco em meio à algazarra dos pardais que faziam ninho nos muros do pátio. — Preciso de alguém para trabalhar no zoológico e verificar se ele está funcionando direito.

Marwan pareceu muito irritado. — Não estou aqui por gostar de animais — ele disse, sob o olhar perscrutador de Abu Laith. — Estou aqui porque preciso trabalhar.

Abu Laith avaliou-o. Pelo menos, era honesto. Abu Laith sabia lidar com gente que queria dinheiro. Se o rapaz era pobre, trataria bem os animais, caso contrário não receberia o dinheiro. O pai dos leões não confiava em gente que estava atrás de poder, ou em caras fracos que aceitavam ser mandados pelos outros. — Isso tudo vai mudar — Abu Laith lembrou mais tarde de ter dito ao rapaz. — Agora preste atenção ao que vou lhe dizer.

Louise Callaghan é correspondente do jornal inglês Sunday Times no Oriente Médio. Foi eleita Nova Jornalista do Ano em 2017, e ganhou o Marie Colvin Award, nos British Journalism Awards de 2018. Louise foi a única jorna­lista ocidental a cobrir o ataque químico na cidade de Douma, e seu relato desafiou a versão do governo de Bashar al-Assad, que alegou que as filmagens com cenas devastadoras de pessoas sofrendo os efei­tos do agente químico eram encenadas e, portanto, falsas.

O TRATADOR DO ZOOLÓGICO DE MOSSUL
Louise Callaghan
Trad. Luis Reyes Gil
Vestígio
336 páginas
Lançamento em agosto de 2020

Para mais informações, entre em contato com nossa assessoria de comunicação pelo e-mail ou pelo telefone (31) 3465-4500 (ramal 207).

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