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A leitura e o leitor integraL

02/06/2007 — Cyana Leahy-Dios

O livro exerce um fascínio multidimensionado na maioria das sociedades. Seu poder totêmico se exibe nas bibliotecas das classes abastadas, nas lombadas trabalhadas a ouro para serem admiradas. Dominar a leitura e a escrita capacita politicamente o cidadão ativo, que passa da condição de vítima passiva a dominador da palavra escrita.

A primeira grande divisória da história humana está na capacidade de comunicação simbólica que prenunciou a invenção da escrita. Em que pese a importância da tradição oral, a invenção do livro ampliou sua fixação e transmissão em grandes quantidades e em formas especiais, de grande valor para a compreensão histórica da estrutura social de forma permanente, aumentando as possibilidades críticas, racionais, lógicas de comunicação do pensamento. Ler e pensar são processos indissociáveis que caminham juntos na expressão nossa e do outro, na revelação e na partilha de idéias e sentimentos.

Como escreveu Célia Lucia Monteiro de Castro no prefácio deste livro, ‘a leitura tem muitos mistérios e encantamentos.’ Mistérios e encantamentos cercam a literatura, leitores e práticas sociais de leitura. Ler é olhar e ver. Lemos não apenas palavras escritas ou impressas, mas lemos também pessoas e objetos que nos cercam, uma leitura da qual nos apropriamos através dos sentidos, das emoções, da razão – do pensamento. Mistérios e encantamentos.

Toda narrativa escrita pressupõe um leitor, uma leitora. Pode ser alguém que se adapta ao texto, que busca significados e se submete às prescrições de leitura, como também pode ser alguém que contribui com múltiplas interpretações e modos de percepção. Tanto faz, desde que cada leitor mantenha o olhar aberto para o processo de ler, numa transformação permanente e sem medidas.

Ler já foi habilidade, exercício espiritual, atividade sagrada, meio de instrução da elite, acesso à verdade absoluta, e causa de várias doenças – de resfriados e dores de cabeça ao enfraquecimento dos olhos; de ondas de calor, gota, artrite, hemorróidas à asma, apoplexia, doença pulmonar, indigestão, obstipação intestinal, distúrbio nervoso, enxaqueca, epilepsia, hipocondria e melancolia.

Minha história com a palavra escrita se iniciou nos bondes antigos do Rio, no trajeto entre o Centro e o Flamengo, onde morávamos. Para que eu não adormecesse durante a viagem, minha mãe, a professora Cypriana, lia os letreiros das lojas por onde passávamos. Me encantavam as ‘letras com frio’, imensas lantejoulas prateadas da Casa Neno e sua promessa: serve bem ao grande e ao pequeno. Posso dizer que fui alfabetizada nos bondes, tendo por cartilha os letreiros comerciais, fascinada pelo mistério dos sinais. Um pouco mais tarde, ganhei de meu pai a obra infantil completa de Érico Veríssimo, e então entendi o mais importante: tanto em forma de lantejoulas tremulando ao vento, quanto em tinta sobre papel, os sinais só ganhavam vida quando eu, elemento central do processo, lhes atribuía sentido. Sem minha participação efetiva, existiam apenas como sinais isolados que não se comunicavam com o mais profundo em mim: meu pensamento, minha imaginação, minha fantasia.

Em seguida, veio outra descoberta importante: lendo, eu podia reconhecer e partilhar bens de consumo do cotidiano adulto, tais como a receita de bolo, o letreiro do bonde, o bilhete da vizinha. Eu já fazia parte daquele mundo, e me sentia pronta, aos 4 anos, a desvendar os segredos da existência. Por outro lado, pressupondo que aprender a ler era ato tão natural quanto aprender a amarrar os sapatos, ficava perplexa no contato com adultos não alfabetizados. Entender essa e outras formas de exclusão social ainda levaria algum tempo.

Podemos dizer que ler permite o acesso amplo e extenso aos bens culturais da humanidade, e às variadas formas de sua produção e consumo. E, nesse sentido, ler é inclusão desmedida; é ato transdisciplinar e eclético, que se estende dos outdoors da rua à novela da televisão, das obras clássicas ou canônicas às notícias de jornais e revistas de fofocas sociais. Leitores são um coral polifônico, vivo, dissonante, em processo de permanente transformação. E assim devem ser vistos e respeitados.

É mais que importante suspeitarmos sempre de nossa própria leitura, para podermos caminhar em outras direções e experimentar novos sentidos. Entender que, às vezes, considerar um texto ‘interpretado’ nada mais é que estar dando o primeiro passo para sua leitura mais profunda, aquela que nos levará a novos mergulhos e vôos, dentro e fora de nós mesmos. Educar para crescer pressupõe mudar. Para transformar, é preciso, antes de tudo, conhecer, ler e escrever a vida e a história de cada dia, de cada um. A literatura realiza essa utopia liberadora.

A literatura é a arte da palavra, instituída sobre processos sociais. Arte, palavra e sociedade constituem o alicerce da produção, do consumo, da educação pela literatura. A palavra é um construto poderoso na construção de fronteiras sociais, rotulando indivíduos em classes e castas. A arte é outro divisor de águas na classificação das culturas e políticas sócio-econômicas: quem diz que a arte abstrata e a música erudita são redutos das classes abastadas nunca viu a afluência aos concertos dominicais populares no Teatro Municipal do Rio.

Não se iludam: não há uma predisposição biológica, cultural, nem sócio-econômica para se gostar de funk, axé ou concertos sinfônicos: é muito mais uma questão de oportunidade, de acessibilidade social. Então, se a literatura é a arte da palavra, é fácil pensar no poder mobilizador ilimitado dessa arte. Arte, palavra, vida e liberdade têm uma ligação íntima e profunda, transformadora, revolucionária. É desse tipo de leitura que estamos falando, é essa a leitura que queremos. Aquela que nos faz olhar e ver. Aquela que nos liberta, impulsiona para a frente e para cima, construindo ‘leitores integrais’. Porque o ser humano foi feito para crescer, viver e ser feliz.

Para mais informações, entre em contato com nossa assessoria de comunicação pelo e-mail ou pelo telefone (31) 3465-4500 (ramal 207).

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