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Resenha de "Diários de Llansol" no O Globo

24/12/2011 — Júlia Studart, O Globo

Diários de Llansol — Caixa com quatro livros: Um falcão no punho; Finita; Inquérito às quatro confidências e uma reunião de entrevistas, de Maria Gabriela Llansol. Editora Autêntica, R$ 117.

Por Júlia Studart

O esforço para a publicação dos livros da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol no Brasil já se desenha há certo tempo. E só agora isto se deu. Certas coisas são mesmo incompreensíveis, mas ainda não é tão tarde assim. Ao mesmo tempo, é fácil e possível explicar porque a recepção do texto de Llansol, me parece, mesmo em Portugal nunca foi ou ainda é algo tão simples. E o percurso é longo, se marcamos no calendário: nascida em 1931, em Lisboa, com uma trajetória que vai desde a formação em Direito, logo abandonada, até o exílio na Bélgica e, depois, um retorno a Sintra, em Portugal, em 1985, onde viveu até sua morte em 2008. Depois da biografia, Llansol toma como opção para seu trabalho de escrita um caminho que tem a ver diretamente com “liberdade de consciência” e com “dom poético”.

Reunidos numa caixa, foram publicados recentemente pela editora Autêntica, de Belo Horizonte, três volumes de seus diários: “Um falcão no punho” (1985), “Finita” (1987) e “Inquérito às quatro confidências” (1996). acrescidos de um pequeno volume com três entrevistas, de 1993, 1995 e 1997, mesmo que não apareçam nesta ordem. Os volumes também são vendidos separadamente.

Llansol registra em “Finita” o inacabado de sua escrita movida a fragmentos de singularidade: “Escrevo ouvindo, na ilusão corrigida, a minha própria voz. Ponho-me a meditar e concluo que a obra da minha vida abrange toda a espécie de trabalhos preparatórios, entre os quais/ reconverter-me a uma originalidade,/ encaminhar-me para o mesmo lugar”, lê-se em uma anotação com data de 18 de dezembro de 1976, em Jodoigne (Bélgica).

Por isso, para que se entenda um pouco acerca desse trabalho sempre em preparação, é muito interessante que a edição dos livros de Llansol no Brasil traga, primeiro, uma noção de conjunto e, segundo, a cada volume, uma pequena iconografia seguida ainda de uma nota biográfica fundamental e de um mapa com toda a sua obra, incluindo-se os dois volumes póstumos de diários e as traduções que, aliás, demarcam uma parcela importantíssima do seu trabalho. Entre os autores que traduziu, encontram-se de Baudelaire a Rimbaud, de Hölderlin a Paul Éluard, de Oscar Wilde a Emily Dickinson, de Apollinaire a Sade ou Flaubert, entre outros. Não há dúvida de que a boa ideia é a da apresentação do texto de Llansol ao leitor brasileiro ainda desavisado e, mais do que isso, também apresentar algo das ideias da própria Llansol em torno de seu texto.

Sobre Llansol, já temos no Brasil livros como o de Lúcia Castelo Branco (“Os absolutamente sós”, de 2000) e de Jorge Fernandes da Silveira (“O beijo partido”, de 2004). E há mais, numa dispersão de revistas, seminários, colóquios etc. E, mais ainda, no meio de todo esse esforço, há o trabalho incansável das pessoas que estão à frente do Espaço Llansol, em Sintra, para organizar o espólio e dar a ver generosamente esse arquivo inclassificável: João Barrento, seu diretor, Maria Etelvina Santos, Maria Carolina Fenati, Daniel Ribeiro Duarte e Bernardo Bethônico, entre outros.

Não à toa, acaba de sair em Portugal, pela editora Assírio e Alvim em parceria com o Espaço Llansol, um livro seguramente esclarecedor acerca de uma questão imprecisa da literatura de Maria Gabriela Llansol: “Europa em sobreimpressão — Llansol e as dobras da História”, organizado por João Barrento, reunindo textos, imagens, fragmentos, anotações etc, além de um DVD encartado com quatro filmes de Daniel Ribeiro Duarte a partir do trabalho de Llansol.

E é este trabalho de Llansol, uma espécie de jogo com a literatura, quando toda literatura comparece numa aposta ou num pacto que se dá entre posse e despossessão, que imprime um traço de rupturas constantes com o texto (tradição, imagem, História etc), que agora temos mais perto a partir dos diários recém-lançados aqui. Abrir um livro de Llansol é tomar ciência da reiteração necessária da História da qual ela se apropria e depois se desapropria, que ela constrói e apaga, para rearmar a cada livro uma espécie de convite a um leitor ativo, participante. Tanto que ela diz em “O Livro das Comunidades”, de 1977: “É a minha própria casa, mas creio que vim fazer uma visita a alguém”. O leitor, ou o legente, como ela prefere, tem que incorporar o corte e a dobra do sentido desse narrador do inexpresso, inserir-se numa avaria das células de seu corpo e do corpo do texto para tocar ali o intocável. Isto é uma política com o texto e o texto como um lugar do político; um impasse armado com a linguagem, este nosso fosso, e com a literatura.

Lembro que a crítica portuguesa Silvina Rodrigues Lopes indica que “a primeira coisa a compreender é que não há personagens nos livros de Maria Gabriela Llansol.” Ora, se não há personagens não há, provavelmente, enredo; se não há enredo, o que pode haver é desvio e figura: este “hóspede de rara presença”, estes “seres inadiáveis” que “vêm do mundo, existem no texto e voltam a atuar no mundo, algo entre o orgânico e o concebido”, “uma imagem em devir”. Os habitantes inadaptados dos textos de Llansol são entes (muda-se o nome, reconfigura-se a outridade) que vêm e comparecem em seus livros, os derrotados pela História: Nietzsche, Ana de Peñalosa, Eckhart, Hölderlin, Fernando Pessoa (num seu avesso, Aossê), Müntzer e tantos outros. Tanto que Maria Carolina Fenati, no seu livro intitulado “Três vazios — Leitura de ‘Geografia de Rebeldes’ de Maria Gabriela Llansol” (2009), diz que a ideia de figura em Llansol remete ao vazio e que “provocar vazios na definição de homem é negar a forma da unidade, aproximando-o da ideia de indefinição, de transitoriedade.” O que leva a pensar que todo o texto de Llansol é vestígio, fenda e, principalmente, algo inacabado porque em preparação constante e contínua para compor a imagem intermitente da História.

Escreve Llansol em “Um falcão no punho”: “Eu, quanto mais escrevo, mais difícil e cheio de obstáculos encontro o caminho de escrever. Em minha consciência, eu não devo escrever para dar a ler/ primeiro/ o que já disse/ segundo/ o que já foi dito./ Concluo daí que eu não sei escrever, e que constantemente anseio pelas modificações da minha vida:/ os horizontes, as perspectivas, as intermitências, as regras. Eu preferiria começar, ou pelo direito da crise, ou pelo avesso do mundo figural, tal é, no fim do cálculo, a transparência.” Agora temos os seus diários e, como disse Maurice Blanchot, “o interesse do diário é sua insignificância”, “o diário aparece aqui como uma proteção contra a loucura, contra o perigo da escrita.”

A pertinência do texto de Llansol resvala nisso e para muito além de tudo isso, e isto é apenas uma maneira de pedir licença para entrar não somente nos livros, esta elucidação de início, mas no seu projeto inclassificável porque desajustado com a História, como um limiar e um campo de possíveis. Ela anota: “Há o sexo de ler”, e isto é uma aprendizagem aberta.

JÚLIA STUDART é poeta, doutoranda em Teoria Literária (UFSC/CNPq – UNL/CAPES). Publicou “Marcoaurélio!”, com a artista visual Milena Travassos, e “Wittgenstein e Will Eisner — Se numa cidade suas formas de vida”, entre outros

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