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Dar corpo ao impossível – II (A Terra é Redonda)

21/09/2020 — Manuel Tangorra

Comentário sobre o livro de Vladimir Safatle

Com qual discurso enunciar o que ainda não é possível? Com qual pensamento refletir sobre as emergências sociais, políticas e estéticas? Para enfrentar tais questões, Vladimir Safatle opta por uma singular reativação da dialética, propondo uma interpretação original da tradição filosófica de Hegel, Marx e, principalmente, de Theodor Adorno. Escrito no Brasil atual – um dos laboratórios de ponta do neoliberalismo conservador contemporâneo –, Dar corpo ao impossível aposta numa “dialética da emergência” capaz de apreender as condições de ruptura com a ordem existente, de eclosão “daquilo que poderia ser diferente, e que ainda não começou” (p. 34).

Evidentemente, uma redefinição epistemológica da dialética – ao que se consagra a primeira parte do livro – revela-se indispensável. Segundo Safatle, recuperar a noção de negatividade torna-se um elemento central para ultrapassar a perspectiva – que o autor atribui à segunda geração da Escola de Frankfurt – que transforma o consenso do Estado Social-Liberal (p. 24), assim como as pretensões de fundar uma práxis emancipatória a partir das identidades “essencializadas” dos sujeitos oprimidos (p. 38), em horizonte definitivo da política.

Nem simples “contrariedade”, nem “incompatibilidade material”, a negatividade deve ser entendida como não-identidade fundamental que abala o campo de significações do qual surgiu. Para conceber a emergência em sua radicalidade, um pensamento da diferença não é, portanto, suficiente. O diferente – em termos políticos, estéticos ou mesmo antropológicos – deve experimentar-se enquanto não-identidade para aparecer como corporificação de um impossível face à atualidade capitalista. Portanto, se a dialética negativa de Adorno pode oferecer uma reflexão acerca da emergência de sujeitos revolucionários, é porque ela opera um “deslocamento” (p. 84), mais do que uma “amputação” (p. 81-82), do momento positivo do idealismo hegeliano.

Os processos de libertação devem ser compreendidos não como a absorção conceitual da heterogeneidade, mas como uma transformação das faculdades estéticas, capazes de organizar o múltiplo na experiência emancipatória, assumindo a dimensão somática irredutível do acontecimento. Por esse viés, Adorno retoma, segundo Safatle, a tradição hegeliano-marxista em seu gesto mais radical: o de situar a emergência na auto-negação imanente das determinações, que se realizam – que atingem seu telos – não na integração a uma estrutura genérica meta-estável (p. 88), mas no colapso “das identidades inicialmente postas” (p. 60).

Em um segundo momento, Safatle reconstrói o dialogo entre a dialética de Adorno e outras tradições com as quais ela compartilha um diagnóstico da racionalidade técnica dominante. Se na fenomenologia alemã – especialmente em Heidegger – surge uma “recuperação de tal experiência de impotência social em chave autoritária” (p. 150) devido à hipóstase da não-identidade em uma diferença ontológica entre a atualidade do sujeito e a abertura do acontecimento (p. 162), é na metapsicologia freudiana que a dialética reabilitada por Safatle poderá encontrar uma aliada para pensar “um desejo de não-identidade” (p. 184) imanente aos processos de subjetivação.

Uma interrogação dialética da vida pulsional deve fazer dela não tanto uma passagem à instância “arcaica” ou “pré-individual” que escapa a toda racionalização (p. 201-202), quanto uma latência afetiva da racionalidade, uma “dinâmica constante de indeterminação” das representações conscientes (p.199). Nesse sentido, em Safatle, o materialismo e a psicanálise convergem em torno de uma política do sintoma (pp. 187-188), isto é, de uma práxis de ativação de uma relação criativa com o afeto que in-determina a norma da socialização capitalista.

Finalmente, em um terceiro e decisivo momento de seu livro, Safatle intervém nos debates atuais sobre a geocorporalidade do pensamento, analisando, a partir do contexto brasileiro, as condições de uma dialética periférica capaz de refletir seu enraizamento situacional. Não será questão de recorrer a uma singularidade antimoderna que se subtrairia da razão ocidental, mas de enraizar-se na sintomatologia de uma subjetividade percorrida pelas contradições devastadoras da colonialidade (p. 256), de sentir, no núcleo da reflexão crítica que “pulsa no cerne da dialética uma energia negativa das classes subalternas” (p. 260).

Por meio disso, Safatle chega a uma leitura de Guimarães Rosa, identificando em sua narrativa uma rememoração dialética da potência subalterna, que não se define como “nostalgia do irracionalismo” (p. 278), mas como ativação de uma latência de descentramento da narrativa colonial e capitalista do Brasil. No seio desta poética do sertão, dispõe-se, segundo Safatle, um campo de espectralidade que invoca o fantasma originário do progresso brasileiro (p. 281), que não é o retorno mistificador de uma origem perdida – nem o triunfalismo “tropicalista” do subdesenvolvimento (p. 253) – mas “o abismo de virtualidade” múltiplo (p. 284), reprimido pela modernização colonial. Através de tal estratégia estética, a subalternidade se descobre como processo de transformação categorial, como emergência intempestiva de uma língua que bascula as gramáticas existentes (p.290) para fazer ressoar a multiplicidade de vozes excluídas que vêm assombrar as etapas do desenvolvimento brasileiro.

A obra de Safatle anuncia uma sobrevida inesperada do pensamento dialético, não como reiteração de sua função reconciliadora, mas como retorno a uma enunciação periférica que faz colapsar a relação entre as experiências subalternas e as normas que supostamente as regeriam. Essa dialética descentrada não tem a pretensão de oferecer um telos definitivo para a práxis emancipatória, mas de tornar-se corpo em sua latência transformadora, de se reinventar conceitualmente no vivo de suas lutas. Nesta aliança inusitada com a subalternidade, a dialética retoma sua potência criadora de sentido a partir dos traumatismos de nossa época. Ela anuncia seu retorno, mas radicalmente subvertida, encarnada em uma somática estrangeira “incorporada em outros corpos” (p. 48).

*Manuel Tangorra é professor na Université Catholique de Louvain (Bélgica).
Tradução: Daniel Pavan.

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