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"A Odisseia de Hakim" personifica a tragédia dos milhões de refugiados sírios (Zero Hora)

06/08/2020 — Ticiano Osório - Zero Hora

Em entrevista, o francês Fabien Toulmé, autor dos sucessos “Não Era Você que eu Esperava” e “Duas Vidas”, fala sobre sua nova obra

O que a queda de um avião alemão nos Alpes Franceses pode ter a ver com a tragédia dos refugiados da guerra civil na Síria? O quadrinista Fabien Toulmé explica no comecinho do primeiro volume da trilogia A Odisseia de Hakim, lançado recentemente no Brasil pela editora Nemo (tradução de Fernando Scheibe, 272 páginas, R$ 53,87).

É a terceira HQ do francês nascido em 1980 – e o terceiro gênero que este ex-engenheiro civil adota. Em Não Era Você que Eu Esperava (2014), Toulmé fez um relato autobiográfico sobre sua relação com Julia, a segunda filha de seu casamento com a brasileira Patrícia – o casal engravidou quando ele morava em João Pessoa, na Paraíba. A menina veio à luz com Down, o que forçou o pai a confrontar suas expectativas com a realidade, em um processo de aceitação por vezes doloroso, não raro bem-humorado, mas absolutamente franco.

No quadrinho seguinte, Duas Vidas (2017), Toulmé enveredou pela ficção, mas continuou refletindo sobre a existência e encenando um duelo entre o que queremos e o que podemos. Narrou a história de dois irmãos muito diferentes. Baudoin é sufocado pelo trabalho monótono como jurista, e Luc viaja o mundo praticando a medicina. A descoberta de um tumor vai aproximar os dois e mudar perspectivas.

Na sequência dessas duas obras (ambas também publicadas no Brasil pela Nemo), o autor resolveu experimentar o jornalismo em quadrinhos. Mas, de certa forma, manteve – para além de seu traço característico e cartunesco – elementos das HQs anteriores. A Odisseia de Hakim também ilustra o conflito entre as expectativas de um bem-sucedido jovem sírio e a realidade opressora e sangrenta desde que a guerra civil eclodiu em seu país, em 2011. Neste primeiro capítulo, que acompanha Hakim (só o nome é fictício, o autor explica na entrevista abaixo) da Síria à Turquia, Toulmé espera provocar no leitor a mesma mudança de perspectiva que ele sentiu-se moralmente impelido a empreender depois da tal queda de uma aeronave alemã nos Alpes Franceses. Era preciso dar um rosto e proximidade à frieza dos números noticiados sobre aquela que, provavelmente, é a mais grave crise humanitária surgida no século 21 – estima-se em 5,6 milhões o montante de refugiados.

“Uma única história humana pode nos aproximar de uma tragédia coletiva”

Fabien Toulmé morou no Brasil por vários anos. Veio em 2001, para trabalhar em obras de engenharia civil após se formar na França. Por aqui, conheceu sua esposa, Patrícia, e virou pai – Louise nasceu em João Pessoa, onde também foi concebida Julia. No Brasil, também nasceu a paixão de Toulmé pelos quadrinhos, que ele passaria a desenvolver mais tarde. Em uma entrevista concedida via áudios de WhatsApp, com respostas em um português de forte sotaque nordestino, o francês falou sobre A Odisseia de Hakim e sobre sua relação com o Brasil:

No preâmbulo, você fala que sentimos compaixão pelas pessoas com as quais nos identificamos, mas não por números. Em jornalismo, um mantra é tentar dar um rosto a essas tragédias coletivas. Fico pensando: quantos rostos sírios (e também africanos, por exemplo) precisamos mostrar para mudar essa percepção quase indiferente?
Bem, é uma pergunta complicada. Acho que não é questão de quantidade de rostos, é uma questão, talvez, de apenas uma história humana um pouco mais encarnada, para realmente sentir uma proximidade com essas vidas, conseguir se projetar nessas vidas. Eu não acho que se precisa repetir, contar muitas histórias. Apenas poder sentir e mostrar uma vez essa compaixão e essa empatia pela pessoa. Basta uma só história para poder viver, por meio dela, o que a personagem enfrentou e, assim, mudarmos nossa percepção.

O fato, por exemplo, de que dois filmes sobre a guerra na Síria, For Sama e The Cave, terem concorrido ao Oscar de melhor documentário sinaliza uma maior atenção do Ocidente para o que está acontecendo no país do Oriente Médio?
Ah, não sei se sinaliza uma maior atenção do Ocidente. O fato é que uma tragédia humana gera obras de arte, porque uma das maneiras de digerir e viver além dessas tragédias é transformá-las em formas de arte, como aconteceu com a Segunda Guerra Mundial, por exemplo.

Hakim foi seu primeiro e único entrevistado? Pergunto porque, do ponto de vista narrativo, você teve, digamos, sorte, já que a jornada dele foi bastante turbulenta.
Não, não fiz entrevistas para escolher meu personagem. Parti do princípio de que todas as vidas são extraordinárias. Não há uma vida padrão de refugiado. Uma vez que você é obrigado a deixar seu país, você passa por experiências que outros não passarão. Poderia ter feito muitos quadrinhos se entrevistasse muitas pessoas, porque cada uma tem sua história, embora haja pontos em comum, como prisão, tortura, risco de morte e, depois, a trajetória até chegar ao país de acolhimento.

Uma característica interessante de Hakim, e que combina muito com o seu estilo de fazer quadrinhos, é a mistura de naturalidade e bom humor. Como quando você pergunta sobre a foto que ele tirou de um espelho quebrado na empresa de jardinagem dele: não era um marco de quando tudo começou a ruir, mas apenas uma imagem para Hakim solicitar a reposição. Essa leveza do Hakim te surpreendeu?
Sim, agora sei, por experiências complicadas que até eu vivi, que temos a tendência de trazer bom humor para quebrar sentimentos ruins. Eu imaginava isso, mas é verdade que não esperava tanto da parte dele. Uma coisa que me surpreendeu no Hakim foi essa capacidade que ele teve de contar toda sua história sem ficar tão abalado ou emocionado. Só em algumas ocasiões, especialmente no volume 2. Mas ele teve a resiliência e a faculdade psicológica de superar esses momentos traumáticos. Eu fiquei impressionado.

Na mesma linha, ao final do livro Hakim consegue encontrar “uma coisa boa” em ser um refugiado: “Você não tem muito o que levar numa mudança”. Ele parece uma pessoa inquebrantável, não?
Ninguém é. Mas, à medida que o tempo vai passando, o cérebro vai trabalhando, vai amenizando a dor. Também tem uma questão de fachada, de proteção. E, quando se quer quebrar a tragédia de uma coisa, fala-se, na França, em piada de velório, uma piada para dissolver um ambiente triste. Acho que a leveza dele tem a ver com isso tudo.

Mais adiante, as memórias de Hakim começam a ficar mais pesadas. Mas ele diz que narrar chega a ser terapêutico para ele. E para você, como ouvinte, como foi?
Na hora em que colhi a história, eu não podia me emocionar. Eu a sentia, mas não podia me emocionar, porque estava muito envolvido nos aspectos técnicos da entrevista: gravar o som, anotar pontos importantes, ver que perguntas deveria fazer, onde eu queria chegar… Não tive muito tempo durante a entrevista. Depois, veio a redação do roteiro, quando senti com muito mais impacto a força dessa história. E teve um terceiro momento, quando, em um lugar público, fui desenhar ouvindo as gravações. Pela primeira vez, eu escutei de maneira pura a história. E aí, sim, me senti muito emocionado.

Em algum momento você pensou em omitir algumas informações ou detalhes para proteger Hakim ou sua família?
Eu pensei e perguntei a ele o que poderia contar ou não. Mudei algumas informações, mas isso não muda a história nem seu espírito. Foi com o objetivo de proteger seu anonimato. Ele achou engraçado, no começo, o jeito como o desenhei e o nome que lhe dei. Agora, deve estar feliz de como a história está sendo contada. É uma maneira de transmitir essa história para os filhos deles e deixar um rastro do que aconteceu.

Quando Hakim lhe apresenta o filho recém-nascido, conta que o batizou de Sebastien porque queria que ele começasse sua vida sem ter de enfrentar preconceitos. Ou seja, é como se ele dissesse que o melhor é a assimilação do que o cultivo de sua identidade. Por um lado, o discurso ecumênico de Hakim é muito bonito, mas, por outro, não é triste que pessoas tenham de camuflar suas raízes?
No caso de Hakim, não é uma questão de camuflar a raiz. Você ainda não viu o último volume, em que conto que ele teve um terceiro filho a quem deu um nome árabe. Foi mais uma forma de agradecimento por ter sido acolhido na França. Acho bonito preservar as raízes, mas sou muito de entender como cada um sente as coisas. Ele sentiu vontade de fazer assim, então também é bonito. Vejo o lado bom em todas as coisas.

Você morou no Brasil, tem uma esposa brasileira e, inclusive, está lendo essas perguntas em português mesmo. O que você acompanha da situação do país?
A minha relação com o Brasil é muito forte. Eu tinha 21 anos quando fui morar aí e estava me construindo como adulto. Integrei muita coisa, além da língua e da cultura. Ainda vou todos os anos para o Brasil. Considero o meu segundo país. Estou acompanhando a política, o crescimento da extrema-direita, os casos de racismo, violência contra homossexuais e mulheres. Isso é reflexo de uma situação mundial. Ao mesmo tempo em que temos mais conexão com o outros, esse excesso de contato parece ter gerado uma tendência de se fechar ao outro. Uma pena, principalmente em relação ao Brasil, porque era o país da abertura e da mistura.

Para mais informações, entre em contato com nossa assessoria de comunicação pelo e-mail ou pelo telefone (31) 3465-4500 (ramal 207).

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