Uma carta canção

Fernanda Otoni Brisset - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 11/11/2019


Caro S. Freud

Protegia-me à sombra. Uma xícara de café e jornal.

Um cruzeiro de dois dias entre Los Angeles e San Francisco fora o pretexto criado pelos meus para comemorar as dezenas de anos que há muito deixei de contar. Do outro lado da piscina era possível alongar meu olhar sobre as formas femininas que ao sol se ofereciam enquanto chapéu e livro lhe cobriam o rosto. Algo de familiar naquele cenário insistia em reter acesas minhas retinas já alquebradas.

Quando ela passou por mim, meu olhar interessado interrompeu sua marcha. Com a gentileza dispensada às pessoas mais velhas, ela se detém. Brilha aos meus olhos a assinatura na capa vinho-bordeaux que carregava. Como esquecer tal letra? O abismo do tempo se abre e evanesce. O livro ganha as minhas mãos. Ela fala de sua relação com o autor. Em síntese: uma lacaniana de férias, lendo Freud ao descansar.

Era uma edição em português. Ilegível!, não fosse a caligrafia estampada na capa e a fotografia de uma carta guardada em seu interior. Eu a reconhecia! Muito jovem eu escrevi ao senhor, doutor Sigmund Freud. Foi num instante atrevido de angústia. Apesar de meus esforços em represar em zona de penumbra o que lhe contei, era impossível silenciá-lo. Despertava-me às noites. Escrever foi uma saída. Um viés para fazer falar o que se instalava como incontornável em meu destino.

Agora, mais uma vez, em meu corpo algo se ativa. O mesmo que se continha entre aquelas linhas. Uma carta sempre chega ao seu destinatário? É verdade. Estava em minhas mãos, outra vez.
Escrevo-lhe, enfim!

Começo por confessar que, às escondidas, eu lia As canções de Bilitis, de Pierre Louÿs. Bem guardado, é claro, por sob os lençóis. Não passava um dia sem que eu as visitasse, durante as noites intensas de minha adolescência. Porém, pouco antes de lhe endereçar aquela carta, soube que aqueles poemas foram escritos por uma poetisa grega, uma cortesã contemporânea de Safo. Não eram da autoria de Louÿs. Ele os traduziu e publicou como se fossem seus. O avesso também acontece!

E agora? Sem poder esconder-me nos extravios da juventude, vejo que d’isso eu só falo de viés. Fogem-me as palavras para costurar as lembranças, suas vagas e o soído das canções em meu corpo.

O senhor nomeou de homossexualidade a causa de minhas preocupações. Agradeço a indicação da obra de Havelock Ellis, não o tinha lido ainda. Conheci o termo “homossexualidade” através do livro de Edward Carpenter – The Intermediate Sex: A Study of Some Transitional Types of Men and Women –, que eu li na biblioteca pública da minha cidade, no inverno de 1934/35, quando eu devorava tudo que pudesse esclarecer a perturbação que transbordava de minhas entranhas e pensamentos.

Encontrar uma definição para nomear o que estava acontecendo seria uma solução? Talvez sim, o senhor tem razão. A minha angústia advinha, fundamentalmente, do caráter indefinido da busca pela satisfação daquele jovem corpo. Não havia formalidade moral, educação ou ensino da tradição que o contivesse. Eu queria sossegar o desvario que se escrevia nas páginas daquele diário. Desejar o mesmo sexo ou um outro figurava ali como apenas mais um detalhe daquele cenário libidinal aberto ao infinito. Sem saber como o conter, perguntava-me, obcecadamente: haveria uma forma de defesa contra esse forasteiro habitual e freneticamente determinado a realizar o sequestro do corpo e o fazer se abandonar sem a memória das exigências da vida que seguia lá fora? O que naquele diário se confessava comungaria da mesma substância que ativava a pluma de Gide, Louÿs, Aragon e Duras? Não é o mesmo que se passa com O imoralista, por A porta estreita? Entre A cabeleira durante As canções de Bilitis? O que levantava o véu do pudor em Aragon nos metrôs de Paris? E atravessava a menina de chapéu e sapato de lamê ao ver H. Lagonelle ou ao se deixar mastigar pelo seu chinês, O amante? Como tratar essa coisa louca e indefinível? O termo “homossexualidade” parecia-me à época, e ainda hoje, pouco expressivo para dar conta de definir tamanha intensidade.

Qual destino, então, dar a isso que ali se escreveu?

Eu, que ainda não pude escrever ou dizer a frase que me mostrasse inteira,
Levanto minha saia e mostro, quando ele volta do banheiro,
essa inesperada entrega depois de me aferrar e resistir por tanto tempo.
Não, não foi o vinho, nem o violão, nem o poema;
foi antes uma imperativa abertura que irrompeu em cheiro e carne.
Antes de mim, antes dele, mas presente aqui
nesse gesto tão vivo quanto simples e duro.*

Quem escreve? Um homossexual, um heterossexual, uma travesti? Um poeta… podia ser eu! Ou qualquer ser que se autorize da escrita d’isso que não se mostra inteiramente, mas se experimenta simplesmente, intensamente, de passagem pelas cavas secretas do corpo desde o subúrbio de sua existência, insondável e inconfessável.

Saber quem escreveu aquele diário não resolveria o x da questão. Eu queria era saber o que era isso que se passava com aquele que chamei de meu filho. Sua carta me esclareceu! A manifestação dessa coisa em si, indefinida e constante, não é razão para vergonha ou sinal de doença. Quando lhe escrevi, eu já pressentia seu caráter incurável. Um alívio, não era um verme maligno! O que se mostrava dizia, então, da atividade de um germe presente em todos nós, em cada ser sexuado, seja ele homossexual, heterossexual ou qualquer outro. A forma como se desenvolve, se inibe, se desloca, se mascara, se debilita ou desabrocha é o que faz advir em cada um o seu modo de ser, de amar e de gozar.

O senhor o soube ler ali. Restou-me consentir com a simples e iniludível existência da vida que se ativa desde as tripas. Uma vida erótica! A marca desse germe perdura como uma autorização. O que desse encontro se escreve anima em cada um sua responsabilidade por seu modo de ser e viver. Uma assinatura.

Já não sei se li, pensei, sonhei, vi ou vivi o que relatei ao senhor. Mas isso pouco importa. Sua carta elucidou o que estava em jogo naquela cena, naquele tempo. O germe! Isso germina em mim, em ti e em mais alguns outros… um germinar infinito. Será isso o que Lacan nomeou como um outro gozo, o feminino? Gosto da ideia! Ela parece localizar, se aproximar dessa coisa furtiva que escorre pelas cavidades impalpáveis do meu ser, mesmo quando durmo. Um gozo que não se contém, ainda que se sossegue, às vezes. Não falo do gozo enquadrado nas formas instituídas. O que não falo acontece sem soltar uma palavra. Desliza em desdobradas formas, inquieto e incabível.

Pude ler outros textos de Lacan. Ele constatou que só há gozo do corpo próprio e de suas fantasias. A ideia de que poderia haver um gozar do corpo do outro deu lugar a uma farta mitologia do par perfeito, como sublinhou Jacques-Alain Miller. Ou seja, onde se supunha uma correspondência entre os gozos e o amor, a relação não existe. Essa leitura também me alivia. Minha aflição, quando lhe escrevi, sofria do contágio dessa ilusão.

Sua carta abriu-me um caminho surpreendente. Eu o vivi de forma intensa, não toda pública. O germe em mim ativado também se desdobrou em uma causa. Fui ativista junto com Harry durante certo período e depois, sempre em reserva, aqui e ali, fui buscando arejar os canteiros para que o germinar seguisse sua forma sem precedentes, em cada um. Às vezes só ou ao lado do Harry e de tantos outros. Entregar a cada um o direito de falar, cantar e ouvir a canção, sempre de autoria irredutível e inominável, orientou a minha existência. Afinal, se uma canção toca um corpo e o faz suspender sua defesa contra o infinito, como saber o que ali é de Bilitis ou de Louÿs?

Por que não respondi a sua carta? Talvez para perdurar o infinito que ela me abriu, não precipitar um ponto final. Sei lá… Ao sorver a lembrança em pó daquela folha amarelada, algo em mim se ativava, sempre. Mesmo agora, me relança à vida e a faz vibrar, outra vez.

Hoje, meus filhos e netos festejam comigo meus muitos anos de vida. Não por acaso me trouxeram a este cruzeiro para atravessar, uma vez mais, o Portal Dourado. Agradeço-lhe por me fazer consentir os instantes fugidios nos quais a vida mostra, intensa, a surpresa que ela contém. Afinal, a ativista sempre foi uma passageira clandestina das minhas vagas. Quantas vezes passei a ela a direção… e quando pensei tê-la sossegado, aquela mulher de chapéu a desperta, outra vez. Ela não percebe, mas ativou em mim uma saudade.

Ontem, no jantar, minha neta anunciou que uma criança está para chegar. Festejamos a vida que segue. Mas o que será o amanhã? Tenho notícias que a intolerância voltou a ter voz no palanque do poder público e que algumas formas de amar estão em risco, outra vez. Resistir é preciso. Escrevo!

O Cruzeiro acaba de entrar na baía: Yerba Buena à vista!

Se nunca é tarde para a missiva chegar ao seu endereço, deixo-a enfim partir, infiltrada nos guardados de uma mulher… seguindo a canção.
É seu destino!

P.S.: Quando encontrei o doutor Alfred Kinsey, nos anos 1950, através do Instituto de Pesquisa do Sexo na Universidade de Indiana, anonimamente passei a carta que o senhor me escreveu para ele a guardar, a considerar. Queria provocar nele, infiltrar ali, a mesma sorte de esclarecimento que sua carta teve em mim. Sem sucesso! Contudo, fiquei feliz em saber que ele a entregou ao seu filho. Só vi hoje que ali assinei como “uma mãe agradecida”… ainda cobria de veludo o incontornável ativado.

Sobre a rasura na carta, ainda um esclarecimento: quando escrevi ao senhor, em 1935, o nome na assinatura não era o meu. Portanto, a razão pela qual rasurei o “meu” nome naquela carta, como comentam os editores de sua obra, foi por entender que ela poderia se dirigir a qualquer um portador do germe ativador do gozo de viver.
Foi o meu modo de resguardar o infinito!

*MEIRA, Caio. Romance. Rio de Janeiro: Circuito, 2013, p. 36.

A carta acima integra a obra Caro Dr. Freud, organizado por Gilson Iannini.

Confira a agenda de lançamento do livro:


12/11/2019 – Belo Horizonte: Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274 – Savassi), às 19h.
Com a presença do organizador, Gilson Iannini, e dos autores Marco Aurélio Prado e Sarug Dagir

21/11/2019 – São Paulo: Livraria Travessa (Rua dos Pinheiros, 513 – Pinheiros), às 19h30.
Roda de conversa com os autores: Adilson Moreira,Lucas Bulamah, Pedro Ambra, Sônia Máximo, Tales Ab’Sáber

Tags:  Autêntica Editora; Sigmund Freud; Psicanálise


Comentários