Reescrever o alheio: o prazer da tradução

Tomaz Tadeu - Publicado na categoria Palavra da Editora em 29/07/2021


No princípio

Tudo, em minha vida intelectual, se resume em enganos que se transformaram em acertos. Por engano fui parar, garoto, num seminário católico. Por engano, cursei o segundo grau numa modalidade que, na época, se chamava “científico”, quando deveria ter optado pelo “clássico”. Por engano, cursei Matemática, quando deveria ter ido para a área de Letras. Por engano, fiz o doutorado em Stanford, quando deveria ter ido para Paris (o que, depois compensei, me metendo com Deleuze, Derrida, Foucault e a turma toda).

Acertei quando, já metido na área da educação, fui contrabandeando uns subversivos para dentro de um campo acadêmico estagnado e retrógrado. Acertei quando, num evento acadêmico da área educacional, em Caxambu, no final dos anos 1980, início dos 1990, conheci Rejane Dias, então ainda inventando o que se tornaria uma grande editora, a Autêntica. Por aí, começando pela publicação de livros próprios e de traduções na área de educação, sociologia e filosofia, fui me voltando para a tradução de textos literários, terminando por onde deveria ter começado: a literatura, uma paixão de toda a vida.

Antes de me dedicar quase inteiramente à Virginia, traduzi uma coisa ou outra dos franceses, Valéry, Mallarmé, Baudelaire (O pintor da vida moderna), um conto de Scott Fitzgerald e outro de Henry James. Virginia entrou na minha vida por vias francesas (Deleuze e Guattari, em Mil platôs) e pela sugestão da Rejane, diretora da Autêntica, que estava atenta à entrada em domínio público, em 2012, das obras de Virginia. Começamos pelo óbvio, Mrs Dalloway. O resto se seguiu naturalmente.

Prazer e privilégio

Minha situação é privilegiada: só traduzo o que escolho ou, em alguns casos, aquilo que me é sugerido e do qual também gosto. Acho que é preciso estar em sintonia com o texto que se vai traduzir; mais: é preciso estar apaixonado por ele, estar identificado com ele. É certamente isso que acontece no meu caso com Virginia. (Mas também com Mallarmé, com Joyce, com Valéry, com Baudelaire…).

Em alguns casos, sinto que me transformo na pessoa cujo texto estou traduzindo. Isso aconteceu, sobretudo, quando traduzia Spinoza (Ética) e Mallarmé (Rabiscado no teatro). Passo a viver naquela cidade, a viver naquela época. Curiosamente, não foi bem isso que aconteceu no caso da Virginia. Claro, muitas vezes me transferi para Londres (cheguei até a visitar, realmente, o castelo de Knole), mas não cheguei a me transformar em Virginia. Talvez pela extensão dos anos em que venho traduzindo sua obra, talvez por uma questão de gênero. Seja lá como for, alguma identificação com a pessoa que se está traduzindo ajuda muito, pelo menos no meu caso.

O ritmo, acima de tudo

Na tradução, assim como na escrita literária, de modo mais geral, o ritmo é tudo. Sem ritmo, não tem jogo. É preciso traduzir o significado tão precisamente quanto possível. Para isso temos os dicionários e, agora, todos os recursos proporcionados pela internet. Mas em textos literários o que conta é a combinação, a trama, o bordado do significante. A forma, enfim. E isso, tendo em vista não apenas os recursos próprios, exclusivos, de cada língua, mas, sobretudo, as torções, os jogos de mão, os malabarismos, que cada artista da palavra faz com sua língua.

Para isso não é preciso sair, desvairadamente, caçando aliterações, assonâncias, iconismos, para falar dos recursos mais óbvios. Basta entrar em sintonia com a música do original e tentar reproduzi-la na música da sua língua, se é que isso é possível.

Para Virginia não é. Falando das traduções dos clássicos russos para o inglês, ela decreta: “O que estamos dizendo significa, pois, que temos julgado toda uma literatura destituída de seu estilo. Quando se mudou cada palavra de uma frase do russo para o inglês, alterou-se, com isso, um pouco o sentido, e completamente o som, o peso e o acento das palavras em sua mútua relação, nada restando a não ser uma versão crua e grosseira do sentido.” (“The Russian Point of View”). Sim, Virginia, neste tribunal sou réu. Confesso. Em suma, não existe tradução bem sucedida ou “primorosa”, como gostam de dizer nas resenhas. Traduzimos por teimosia.

O gênero da tradução

Quando comecei a traduzir Virginia, em 2012, a questão do gênero de quem traduz uma obra (se coincide ou não com o gênero de quem a escreveu) ainda não estava em questão. Agora, tendo chegado, talvez, ao final de meu affaire com Virginia, tenho a sensação de que serei, a qualquer momento e sem aviso prévio, cancelado. Por sorte, as decisões pessoais de leitura não obedecem a nenhum tribunal.

A ideia de que a tradução de uma obra literária só pode ser feita por alguém de identidade igual ou parecida a de quem a escreveu tornaria impossível o ofício da tradução. No caso de Virginia, ela era, por nascimento ou educação, uma pessoa de nacionalidade britânica, classe média, algo esnobe, um tanto antissemita (embora casada com um judeu) e uma mulher que gostava de mulheres (embora casada com um homem); enfim, um ser humano em toda a sua complexidade. Quem se habilita?

Penso que a política da identidade nos condena, às vezes, a um isolamento que não tem nada de político e muito de separatismo (“cada qual no seu quadrado”). Se alguma coisa aprendemos das teorias da identidade, é que as identidades são fluidas, instáveis, provisórias. A identidade fixa, definitiva, para sempre definida, é uma identidade morta. Não, não me sinto culpado, por ter traduzido, como homem, uma boa parte da obra dessa genial escritora inglesa. Amo-a, simplesmente. Que esse amor me absolva, se é que tenho alguma culpa.

Coisas do ofício

Minhas ferramentas são, imagino, as de qualquer outro praticante da profissão. Dicionários monolíngues, para começo de conversa (no caso do inglês, o Oxford, sem dúvida). Além disso, faço pelo menos uma conferência global nas traduções anteriores do livro que estou traduzindo, em português ou nas línguas que leio (espanhol, italiano, francês). Mas, infelizmente, há um princípio infalível: se é algo complexo e difícil, ninguém deu boa solução. Não acompanho passo a passo as traduções existentes, mas confiro, nas que acho mais confiáveis, alguma passagem ou palavra de difícil tradução. No caso de As ondas, conferia, de vez em quando, a última tradução francesa (Michel Cusin & Adolphe Haberer) e uma tradução italiana antiga, mas bastante boa (Maura Del Serra). Mas as minhas fontes principais de decifração são as da crítica literária e as teses e dissertações acadêmicas. A cada passagem difícil, consulto o Google para checar se alguém comentou aquela passagem específica e, mesmo que o objetivo de quem comentou não seja, obviamente, o meu, se o comentário lança alguma luz sobre seu significado. E para cada uma dessas passagens, abro um arquivo com transcrições dos comentários etc. No caso de As ondas, tenho mais de 500 arquivos com anotações. Essas anotações são para me ajudar na tradução e para fazer as notas que costumo colocar no fim do livro. Infelizmente, no caso de As ondas, não pude fazê-las por estar com a mão direita prejudicada por décadas de digitação. E não posso usar o ditado, primeiro, porque os programas de ditado não funcionam direito e, segundo, porque descobri que as frases me saem das pontas dos dedos e não dos lábios.

Paratextos e outros parangolés

Desde a minha primeira tradução de Virginia, Mrs Dalloway, me impus alguns princípios editoriais, imediatamente aceitos por Rejane Dias, diretora da Autêntica. Em primeiro lugar, se há um ou mais prefácios, meu ou de alguma outra pessoa, eles vão para o fim do livro. Viram posfácios. A regra é que nada deve vir antes do texto central. E também acho que notas explicativas em rodapé, no caso de obras literárias, deveriam ser proibidas. A estrutura dos livros com as traduções de Virginia segue sempre este mesmo padrão que, infelizmente, foi interrompido com As ondas, por cansaço do material, no meu caso, dos dedos “falantes”. Mas há, no final, um pequeno guia de leitura do livro (“Para ler As ondas”).

Ensaio ou ficção

Tenho traduzido tanto ensaios quanto romances de Virginia. Minha experiência anterior como tradutor concentrava-se na área de ensaios. Mrs Dalloway foi, quase, a minha primeira experiência (tinha traduzido antes um conto de Henry James, outro de F. Scott Fitzgerald, tanto quanto me lembro). Assim, era natural que me sentisse mais à vontade na tradução dos ensaios do que na tradução dos livros de ficção de Virginia.

E, de fato, penso agora que as exigências são diferentes, embora, obviamente, as habilidades necessárias sejam, em sua grande maioria, as mesmas. E, nos dois casos, ensaio e ficção, há um fator comum que considero essencial: a questão do ritmo. (Lá venho eu de novo com essa toada.) Sem ritmo, não há jogo. O problema é que ritmo é algo difícil de ser definido. Embora não tenha ouvido musical (nos coros dos meus tempos de seminário, o padre regente sempre perguntava: quem é essa voz de taquara rachada aí atrás?; era a minha), acho que tenho um ouvido, não sei como se poderia chamar isso, um ouvido linguajeiro? E já li em algum lugar que, neurologicamente, os dois tipos de ouvido têm ligações com áreas diferentes do cérebro.

Não tenho consciência de utilizar estratégias diferentes nos dois casos, ensaio e ficção, mas tenho consciência de utilizar uma estratégia comum, justamente a de seguir o ritmo do texto. Lembro-me, saudoso, da tradução de um ensaio de Michel Serres, que acompanhava a tradução de O tempo passa (Autêntica), que me deu um prazer inexprimível, ainda mais junto com o texto da Virginia. Michel Serres, tal como Virginia, é dança pura. Não há, na sua prosa, nada fora do ritmo. Paradoxalmente, um truque, uma manha, um instrumento tão vital, tão onipresente, como o ritmo, não tem nenhuma definição precisa. Melhor assim.

E, enfim, As ondas

Embora Virginia tivesse, antes, escrito obras de ficção que rompiam com o cânone realista do romance tradicional (Mrs Dalloway, O quarto de Jacob, Ao Farol), nada se compara com o experimentalismo radical de As ondas. Não há nada, aqui, que seja óbvio e de fácil leitura.

Para começo de conversa, nenhum dos seis personagens “fala” uma única palavra, embora todas as suas manifestações sejam assinaladas, invariavelmente, pelo verbo narrativo por excelência, “dizer”, na terceira pessoa do pretérito (“disse”). Se quisermos nomear essa característica no jargão das teorias da narrativa, essas “falas” todas podem ser classificadas como “monólogo interior”, ou seja, expressam o que os personagens pensam ou sentem e não o que realmente dizem ou falam. E, no entanto, essas mentes parecem se comunicar entre si e até mesmo adivinhar os sentimentos e pensamentos umas das outras.

Além disso, esses pensamentos não se expressam, estilisticamente, por frases cortadas, grudadas umas nas outras sem nenhuma conexão, como nos monólogos interiores mais conhecidos, como os de Molly Bloom, no último capítulo de Ulisses. Pelo contrário, os seis personagens, três mulheres e três homens, se expressam num estilo elevado, sofisticado, formal. E tem mais: o texto é, com exceção dos interlúdios, todo ele, elíptico, conciso, misterioso. Se acompanharmos o texto do romance pela leitura dos rascunhos que foram preservados, perceberemos que Virginia simplesmente cortou todas as conexões que poderiam tornar o texto mais compreensível.

Curiosamente, Virginia começou com romances um tanto convencionais (Noite e dia, The Voyage Out) e terminou com um romance que se poderia classificar como tradicional (Os anos) (se ignorarmos Entre os atos, publicado postumamente), mas no meio temos essa obra ímpar, inigualável, original, que se chama As ondas. Nesse sentido, o livro se compara a todas as experimentações (o roman nouveau, as metaficções, etc.) que, na última metade do século XX, revolucionaram o que se entende por romance.

E quando se fala de experimentalismo, como no caso de Virginia com As ondas, não se está falando apenas de veleidades literárias, mas de uma visão renovada e revista do mundo, da vida. Neste caso, o romance, a ficção se põem ao lado do pensamento, da filosofia. Outro mundo, outra visão de mundo, outra narrativa. Há um vínculo estreito entre o que pensamos e o que narramos. Contar histórias é pensar. Imaginar é refletir.

Nota

Este texto se beneficiou de respostas a entrevistas concedidas na fase final da tradução de As ondas (final de 2020, início de 2021) ou, num dos casos, a um texto feito por encomenda. Agradeço as “provocações” de Maria Rita Viana, Myllena Lacerda e Bertha Maakaroun (Estado de Minas), bem como à equipe da Pernambuco, pelo convite.

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