Quadrinho de menininha. Será mesmo?

Carol Christo - Publicado na categoria Palavra da Editora em 23/03/2020


O mercado de quadrinhos sempre foi amplamente masculino, em todo o mundo. Aliás, até os anos 1990, pouquíssimas eram as mulheres com destaque nesse universo. Não eram divulgadas, muito menos premiadas. E não porque mulheres não produziam, ou produzam, quadrinhos de qualidade. Na verdade, elas sempre existiram, desde o surgimento da nona arte, mas, como em quase todas as áreas, pareciam, e por vezes ainda parecem, invisíveis.

O 43º Festival International de la Bande Desinée de Angouleme, o mais importante evento de quadrinhos da Europa, não incluiu nenhuma mulher na sua lista de 30 indicados à premiação anual. Isso aconteceu em 2016, há apenas quatro anos. O sexismo é evidente, é real. Mas as coisas estão mudando. Antes tarde que nunca.

Exigir nosso lugar não foi fácil, e ainda não o é, mas pouco a pouco seguimos conquistando espaço, fazendo valer nosso conhecimento, nossa voz e, principalmente, nossa capacidade e talento. O preconceito existe, tanto por parte dos leitores quanto de editores. É dito que as obras criadas por homens tem um certo “estilo” e as criadas por mulheres, outro. Um estilo mais “feminino”. É um dos argumentos mais sexistas do setor, já que as artistas, e seus estilos, são tão diversos quanto os lugares de onde elas vêm, suas trajetórias artísticas e visões de mundo. Tão diversos quantos são os “estilos” de desenho tidos “masculinos”.

Há pouco mais de uma década, o mercado se abriu, e quadrinistas mulheres por todo o mundo despontaram. Na França, Pénélope Bagieu, autora das graphic novels da Nemo Uma morte horrível e Ousadas 1 e 2, publicou inúmeras obras por todo o mundo. Em 2019, ganhou o Eisner de melhor edição americana de material internacional na Comic Con de San Diego. E ela não para.

Aqui no Brasil, as autoras da Nemo Lu Cafaggi, Fefê Torquato, Bianca Pinheiro e Fernanda Nia, e muitas outras artistas, tiveram seus trabalhos publicados pela primeira vez por editoras tradicionais. E seus trabalhos só crescem, amadurecem, se desenvolvem e destroem, um por um, todos os preconceitos e picuinhas infundadas dos leitores, fãs e editores (homens) por todos os cantos do país.

A Comic Con de Nova York em 2016 foi o primeiro evento em que as mulheres pareceram ser maioria no número de visitantes. Eram mulheres de diferentes idades e origens, e a reputação dos eventos de quadrinhos de serem ambientes masculinos caiu por terra de uma vez por todas. Hoje, mesmo no universo dos quadrinhos de super-heróis, os gigantes da indústria, como a DC e a Marvel, possuem artistas mulheres consideradas favoritas pelos fãs, como Gail Simone, Amanda Connor, Willow Wilson e muitas outras. O apoio das leitoras e fãs vem fazendo a diferença, mas, é claro, o gênero masculino ainda é dominante se formos contabilizar o número de publicações. É preciso mais.

O quadrinho independente vem cumprindo o seu papel. Mulheres estão dominando a publicação indie, nos meios físico e digital, e dando o que falar. Algumas delas construíram um público de milhões de leitores através de webcomics, que mais tarde viraram publicações impressas, é claro. Os editores estão de olho nelas, e colhendo os frutos.

Nos Estados Unidos, Raina Telgemeier se transformou num fenômeno. Aos 43 anos de idade, a artista da Califórnia virou a queridinha das leitoras pré-adolescentes americanas. E fenômeno não é força de expressão, Raina já vendeu milhões de cópias pelo mundo, sendo considerada uma verdadeira superstar pelas crianças americanas.

É claro que, apesar de o reconhecimento ter aumentado, o sexismo não será vencido tão cedo, principalmente nesse meio. Ele parte do desinteresse das grandes editoras pelos trabalhos de artistas mulheres, passa pelas perguntas infames dos entrevistadores daquelas que enfim alcançam o sucesso, e terminam nos comentários de leitores machistas, tão mergulhados em seus queridos personagens do meio nerd que não aturam a “invasão” feminina em seu retiro fantástico.

Ah, mas vão ter de aturar.

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Carol Christo, editora assistente da Editora Nemo.

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