O Último Suspiro: leia o prólogo e o primeiro capítulo

Robert Bryndza - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 08/11/2018


PRÓLOGO

Segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Eram três horas da manhã e o fedor do cadáver tomava conta do carro. O calor não dava trégua havia dias. Ele dirigia com o ar-condicionado no máximo, mas, mesmo assim, o cheiro dela no porta-malas impregnava o veículo. A garota decompunha-se depressa.

Tinha colocado o corpo ali duas horas antes. As moscas haviam começado a procurá-la e, na escuridão, ele abanava os braços para espantá-las. Achou graça da maneira como se agitava e se debatia. Se ainda estivesse viva, ela provavelmente também teria rido.

Apesar do risco, ele gostava dessas excursões noturnas em que dirigia pela rodovia deserta e entrava em Londres pelos bairros afastados do centro. Duas ruas atrás, tinha apagado o farol e, ao virar em uma decadente rua residencial, desligou o motor. O carro, que se movimentava silenciosamente em ponto morto, passou diante das janelas escuras das casas e chegou ao final de uma descida onde uma pequena e deserta estamparia tornou-se visível. O prédio ficava afastado da rua e possuía um estacionamento mergulhado nas sombras das árvores altas que se enfileiravam na calçada, enquanto o entorno era iluminado pelo opaco brilho alaranjado da poluição da cidade. Ele entrou no estacionamento, sacolejando ao passar por cima das raízes das árvores que quebraram o asfalto à força. Foi até uma fileira de caçambas de lixo ao lado da entrada da estamparia, fez uma curva fechada para a esquerda e parou, deixando menos de trinta centímetros entre o porta-malas e a última caçamba.

Permaneceu um momento sentado e em silêncio. As casas em frente estavam encobertas pelas árvores e ao lado do estacionamento havia apenas a parede de tijolos da última casa de uma fileira de residências que se estendia pela rua. Inclinou-se na direção do porta-luvas e pegou uma luva de látex. Saiu do carro e sentiu o calor do asfalto subindo. As luvas ficaram molhadas por dentro em questão de segundos. Quando abriu o porta-malas do carro, uma varejeira-azul saiu zumbindo e pousou em seu rosto. Abanou os braços para espantá-la e cuspiu.

Levantou a tampa da caçamba e quase foi nocauteado pelo cheiro; mais moscas nojentas que botavam ovos em meio ao lixo apodrecido voaram para cima dele. Espantou-as com as mãos, soltou um gemido e cuspiu de novo, depois foi até o porta-malas do carro.

Ela tinha sido tão bonita, inclusive no fim, apenas algumas horas antes, quando chorava e implorava, com o cabelo oleoso e as roupas imundas. Agora não passava de uma coisa molenga. Seu corpo não era mais necessário, nem para ela nem para ele.

Sem fazer nenhum esforço, ele a levantou, retirando o corpo do porta-malas, e o deitou de comprido sobre os sacos pretos dentro da caçamba de lixo, fechando a tampa em seguida. Deu uma olhada ao redor. Estava sozinho, ainda mais agora que a havia desovado. Voltou ao carro e começou sua longa viagem de volta para casa.

Horas depois naquela manhã, uma vizinha da frente caminhou até a estamparia com um volumoso saco preto. Não recolhiam o lixo nos feriados e seus sogros estavam tomando conta do neném recém-nascido. Levantou a tampa da primeira caçamba para jogar o saco lá dentro e uma nuvem de moscas explodiu sobre ela. A moça recuou, agitando o braço. E então viu, deitado sobre os sacos pretos, o corpo da jovem. Ela tinha sido barbaramente espancada: um dos olhos estava fechado de tão inchado, havia cortes profundos na cabeça, e o corpo estava repleto de moscas no calor do início da manhã.

Então sentiu o cheiro. Largou o saco preto e vomitou no asfalto quente.

CAPÍTULO 1

Segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

A Detetive Inspetora Chefe Erika Foster observava o Detetive James Peterson esfregar uma toalha em seus dreads curtos para enxugar os flocos derretidos de neve. Ele era alto e magro e tinha a combinação certa de arrogância e charme. As cortinas estavam bem fechadas, a neve caía aos rodopios lá fora, a televisão emitia um confortável ruído de fundo e o pequeno quarto-e-sala era banhado pela suave e acolhedora luz de dois abajures novos. Após um longo dia de trabalho, Erika tinha se conformado em tomar um banho quente e dormir cedo, mas Peterson havia ligado do restaurante especializado em peixe empanado com batata frita que ficava na esquina, perguntando se ela estava com fome. Antes que pudesse pensar em uma desculpa, tinha respondido sim. Haviam trabalhado juntos antes em várias investigações de assassinatos bem-sucedidas comandadas por Erika, no entanto agora estavam em unidades diferentes: Peterson integrava a Equipe de Investigação de Assassinatos e Erika trabalhava com a Equipe de Projetos – um cargo que rapidamente passou a odiar.

Peterson foi até o aquecedor e dependurou com perfeição a toalha antes de virar-se para ela com um sorriso.

– Está caindo uma nevasca lá fora – comentou, juntando as mãos e soprando entre elas.
– Seu Natal foi bom? – ela perguntou.
– Foi legal, passei com os meus pais. Meu primo ficou noivo – ele respondeu, tirando a jaqueta de couro.
– Parabéns… – felicitou ela, sem conseguir lembrar se tinha ouvido falar de algum primo.
– E você? Estava na Eslováquia?
– Estava, com minha irmã e minha família. Dividi um beliche com a minha sobrinha… Quer uma cerveja?
– Adoraria.

Peterson pendurou a jaqueta no encosto do sofá e se sentou. Erika abriu a geladeira e deu uma espiada. Um fardo de seis cervejas estava na gaveta de verduras, e a única comida era uma panelinha com uma sopa de dias atrás na prateleira de cima. Tentou dar uma conferida em seu reflexo na lateral metálica da panela, mas o formato curvo o distorceu, deixando-a com um rosto espremido e a testa protuberante, como em um espelho de espetáculo de horrores. Devia ter mentido educadamente que já tinha jantado.

Meses antes, após alguns drinques em um pub com os colegas, Erika e Peterson tinham acabado juntos na cama. Embora nenhum dos dois achasse que tinha sido só mais uma noite, desde então mantinham a relação estritamente profissional. Haviam passado mais duas noites juntos antes do Natal e em ambas ela tinha ido embora antes do café da manhã. Mas agora ele estava no apartamento dela, os dois sóbrios, e o porta-retratos dourado com a foto de seu falecido marido, Mark, estava na prateleira de livros junto à janela.

Erika tentou não dar vazão para a ansiedade e a culpa que lhe invadiam, pegou duas cervejas e fechou a porta da geladeira. A sacola plástica do restaurante estava na bancada e o cheiro a fez salivar.

– Você gosta de comer o peixe enrolado no papel? – ela perguntou, tirando a tampinha das cervejas.
– É o único jeito de comer esse negócio – respondeu Peterson. Com um braço largado sobre o encosto do sofá e um tornozelo apoiado no joelho da outra perna, aparentava estar confiante e à vontade.

Erika sabia que quebraria o clima, mas tinham que ter uma conversa, ela precisava estabelecer alguns limites. Pegou dois pratos e os levou com as sacolas e as cervejas até a mesinha de centro. Em silêncio, desembrulharam a comida, o vapor do peixe empanado e das batatas, macios e dourados, elevou-se. Comeram durante um momento.

– Olha só, Peterson. James… – começou Erika.

Nesse momento, o telefone dele tocou e o detetive o tirou do bolso.
– Desculpe, tenho que atender.

Erika acenou para que prosseguisse. Ele atendeu o telefone e ouviu com a testa franzida.
– Sério? Okay, sem problema, qual é o endereço? – Ele pegou uma caneta na mesa e começou a escrever no canto da embalagem de comida. – Estou perto. Posso sair agora e segurar as pontas até você chegar lá… Vá com cuidado com esse tempo lá fora. – Ele desligou, enfiou uma mãozada de batata na boca e se levantou.
– O que foi? – perguntou Erika.
– Uns estudantes acharam o corpo mutilado de uma jovem em uma lata de lixo.
– Onde?
– Tattersall Road, perto de New Cross… Cacete, essa batata é das boas – elogiou, enfiando mais um punhado na boca. Pegou a jaqueta de couro no encosto do sofá e conferiu se estava com o distintivo, a carteira e as chaves do carro.
Erika sentiu mais uma pontada de arrependimento por não estar mais na Equipe de Investigação de Assassinatos.
– Desculpe, Erika. Vamos ter que continuar isso aqui outra hora. Achei que teria a noite livre hoje. O que você ia falar?
– Tranquilo. Não era nada. Quem te ligou?
– A Detetive Inspetora Chefe Hudson. Ela está presa na neve. Não presa, mas está vindo do centro de Londres e as estradas estão ruins.
– New Cross é aqui perto. Vou com você – ela se ofereceu, pondo o prato na mesa e pegando a carteira e o distintivo na bancada da cozinha.

Peterson a seguiu até a porta enquanto vestia a jaqueta. Erika deu uma conferida em seu reflexo no espelhinho na saída, limpou a gordura da batata no canto da boca e passou a mão no cabelo loiro curto. Estava sem maquiagem e, apesar das maçãs do rosto salientes, notou que as bochechas estavam mais cheias depois de uma semana com comidas deliciosas de Natal. Os olhos dos dois encontraram-se no espelho e ela viu que o rosto de Peterson havia se anuviado.

– Algum problema?
– Não. Só que a gente vai no meu carro – ele respondeu.
– Não. Vou no meu carro.
– Você vai impor sua autoridade para cima de mim agora?
– Do que é que está falando? Você pega o seu carro, eu pego o meu. A gente vai em comboio.
– Erika. Vim aqui para jantar…
– Só jantar? – questionou ela.
– O que está querendo dizer?
– Nada. Você recebeu uma ligação do trabalho, e me parece perfeitamente razoável, como oficial superior a você, comparecer ao local. Ainda mais com a Detetive Inspetora Chefe Hudson atrasada… – sua voz desvaneceu, ela sabia que estava forçando a barra.
– “Oficial superior”. Você nunca vai me deixar esquecer isso, vai?
– Espero que não se esqueça – ela o repreendeu, vestindo o casaco. Apagou a luz e os dois saíram do apartamento em um silêncio desconfortável.

***

O último suspiro é o novo livro de Robert Bryndza e marca o retorno da detetive Erika Foster mais eletrizante do que nunca.

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