Monteiro Lobato - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 16/01/2019
I – NARIZINHO
NUMA CASINHA BRANCA, lá no Sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha de mais de 60 anos. Chama-se Dona Benta.
Quem passa pela estrada e a vê na varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando:
– Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto…
Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas – Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho, como todos dizem.
Narizinho tem 7 anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos. Na casa ainda existem duas pessoas – Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo. Emília foi feita por Tia Nastácia, com olhos de retrós preto e sobrancelhas tão lá em cima que é ver uma bruxa. Apesar disso, Narizinho gosta muito dela; não almoça nem janta sem a ter ao lado, nem se deita sem primeiro acomodá-la numa redinha entre dois pés de cadeira.
Além da boneca, o outro encanto da menina é o ribeirão que passa pelos fundos do pomar. Suas águas, muito apressadinhas e mexeriqueiras, correm por entre pedras negras de limo, que Lúcia chama as “Tias Nastácias do rio”.
Todas as tardes Lúcia toma a boneca e vai passear à beira d’água, onde se senta na raiz de um velho ingazeiro para dar
farelo de pão aos lambaris. Não há peixe do rio que não a conheça; assim que ela aparece, todos acodem, numa grande faminteza. Os mais miúdos chegam pertinho; os graúdos parece que desconfiam da boneca, pois ficam ressabiados, a espiar.
I I – UMA VEZ…
UMA VEZ, DEPOIS de dar comida aos peixinhos, Lúcia sentiu os olhos pesados de sono. Deitou-se na grama com a boneca no braço e ficou seguindo as nuvens que passeavam pelo céu, formando ora castelos, ora camelos. E já ia dormindo, embalada pelo mexerico das águas, quando sentiu cócegas no rosto. Arregalou os olhos: um peixinho vestido de gente estava de pé na ponta do seu nariz.
Vestido de gente, sim! Trazia casaco vermelho, cartolinha na cabeça e guarda-chuva na mão – a maior das galantezas! O
peixinho olhava para o nariz de Narizinho com rugas na testa, como quem não está entendendo nada do que vê.
A menina reteve o fôlego de medo de o assustar, assim ficando até que sentiu cócegas na testa. Espiou com o rabo dos olhos. Era um besouro que pousara ali. Mas um besouro também vestido de gente, trajando sobrecasaca preta, óculos e bengalão.
Lúcia imobilizou-se ainda mais, tão interessante estava achando aquilo.
Ao ver o peixinho, o besouro tirou o chapéu, respeitosamente.
– Muito boa tarde, Sr. Príncipe! – disse ele.
– Viva, Mestre Cascudo! – foi a resposta.
– Que novidade traz Vossa Alteza por aqui, Príncipe?
– É que lasquei duas escamas do filé e o Dr. Caramujo me receitou ares do campo. Vim tomar o remédio neste prado,
que é muito meu conhecido, mas encontrei cá este morro que me parece estranho. – E o Príncipe bateu com a biqueira do guarda-chuva na ponta do nariz de Narizinho. – Creio que é de mármore – observou.
Os besouros são muito entendidos em questões de terra, pois vivem a cavar buracos. Mesmo assim aquele besourinho de sobrecasaca não foi capaz de adivinhar que qualidade de “terra” era aquela. Abaixou-se, ajeitou os óculos no bico, examinou o nariz de Narizinho e disse:
– Muito mole para ser mármore. Parece antes requeijão.
– Muito moreno para ser requeijão. Parece antes rapadura – volveu o Príncipe.
O besouro provou a tal terra com a ponta da língua.
– Muito salgada para ser rapadura. Parece antes…
Mas não concluiu, porque o Príncipe o havia largado para ir examinar as sobrancelhas.
– Serão barbatanas, Mestre Cascudo? Venha ver. Por que não leva algumas para os seus meninos brincarem de chicote?
O besouro gostou da ideia e veio colher as barbatanas. Cada fio que arrancava era uma dorzinha aguda que a menina sentia – e bem vontade teve ela de o espantar dali com uma careta! Mas tudo suportou, curiosa de ver em que daria aquilo. Deixando o besouro às voltas com as barbatanas, o peixinho foi examinar as ventas.
– Que belas tocas para uma família de besouros! – exclamou.
– Por que não se muda para aqui, Mestre Cascudo? Sua esposa havia de gostar desta repartição de cômodos.
O besouro, com o feixe de barbatanas debaixo do braço, lá foi examinar as tocas. Mediu a altura com a bengala.
– Realmente, são ótimas – disse ele. – Só receio que more aqui dentro alguma fera peluda.
E para certificar-se cutucou bem lá no fundo.
– Hu! Hu! Sai fora, bicho imundo!…
Não saiu fera nenhuma, mas como a bengala fizesse cócegas no nariz de Lúcia, o que saiu foi um formidável espirro –
Atchim!… –, e os dois bichinhos, pegados de surpresa, reviraram de pernas para o ar, caindo um grande tombo no chão.
– Eu não disse? – exclamou o besouro, levantando-se e escovando com a manga a cartolinha suja de terra. – É, sim, ninho de fera, e de fera espirradeira! Vou-me embora. Não quero negócios com essa gente. Até logo, Príncipe! Faço votos para que sare e seja muito feliz.
E lá se foi, zumbindo que nem um avião.
O peixinho, porém, que era muito valente, permaneceu firme, cada vez mais intrigado com a tal montanha que espirrava. Por fim a menina teve dó dele e resolveu esclarecer todo o mistério. Sentou-se de súbito e disse:
– Não sou montanha nenhuma, peixinho. Sou Lúcia, a menina que todos os dias vem dar comida a vocês. Não me reconhece?
– Era impossível reconhecê-la, menina. Vista de dentro d’água parece muito diferente…
– Posso parecer, mas garanto que sou a mesma. Esta senhora aqui é a minha amiga Emília.
O peixinho saudou respeitosamente a boneca, e em seguida apresentou-se como o Príncipe Escamado, rei do Reino das Águas Claras.
– Príncipe e rei ao mesmo tempo! – exclamou a menina, batendo palmas. – Que bom, que bom, que bom! Sempre tive
vontade de conhecer um príncipe-rei.
Conversaram longo tempo, e por fim o Príncipe convidou-a para uma visita ao seu reino. Narizinho ficou no maior dos
assanhamentos.
– Pois vamos, e já – gritou –, antes que Tia Nastácia me chame.
E lá se foram os dois de braços dados, como velhos amigos. A boneca seguia atrás sem dizer palavra.
– Parece que Dona Emília está emburrada – observou o Príncipe.
– Não é burro, não, Príncipe. A pobre é muda de nascença.
Ando à procura de um bom doutor que a cure.
– Há um excelente na corte, o célebre Dr. Caramujo.
Emprega umas pílulas que curam todas as doenças, menos a gosma dele. Tenho a certeza de que o Dr. Caramujo põe a
Sra. Emília a falar pelos cotovelos. E ainda estavam discutindo os milagres das famosas pílulas quando chegaram a certa gruta que Narizinho jamais havia visto naquele ponto. Que coisa estranha! A paisagem estava outra.
– É aqui a entrada do meu reino – disse o Príncipe.
Narizinho espiou, com medo de entrar.
– Muito escura, Príncipe. Emília é uma grande medrosa.
A resposta do peixinho foi tirar do bolso um vaga-lume de cabo de arame, que lhe servia de lanterna viva.
A gruta clareou até longe e a “boneca” perdeu o medo. Entraram. Pelo caminho, foram saudados, com grandes
marcas de respeito, por várias corujas e numerosíssimos morcegos.
Minutos depois chegavam ao portão do reino. A menina abriu a boca, admirada.
– Quem construiu este maravilhoso portão de coral, Príncipe?
É tão bonito que até parece um sonho.
– Foram os Pólipos, os pedreiros mais trabalhadores e incansáveis do mar. Também meu palácio foi construído por eles, todo de coral rosa e branco.
Narizinho ainda estava de boca aberta quando o Príncipe notou que o portão não fora fechado naquele dia.
– É a segunda vez que isto acontece – observou ele com cara feia. – Aposto que o guarda está dormindo.
Entrando, verificou que era assim. O guarda dormia um sono roncado. Esse guarda não passava de um sapão muito feio, que tinha o posto de Major no exército marinho. Major Agarra-e-nãolarga- mais. Recebia como ordenado cem moscas por dia para que ali ficasse, de lança em punho, capacete na cabeça e a espada à cinta, sapeando a entrada do palácio. O Major, porém, tinha o vício de dormir fora de hora, e pela segunda vez fora apanhado em falta.
O Príncipe ajeitou-se para acordá-lo com um pontapé na barriga, mas a menina interveio.
– Não ainda! Tenho uma ideia muito boa. Vamos vestir este sapo de mulher, para ver a cara dele quando acordar.
E, sem esperar resposta, foi tirando a saia da Emília e vestindo-a, muito devagarinho, no dorminhoco. Pôs-lhe também
a touca da boneca em lugar do capacete, e o guarda-chuva do Príncipe em lugar da lança. Depois que o deixou assim transformado numa perfeita velha coroca, disse ao Príncipe:
– Pode chutar agora.
O Príncipe, zás!… Pregou-lhe um valente pontapé na barriga.
– Hum!… – gemeu o sapo, abrindo os olhos, ainda cego de sono.
O Príncipe engrossou a voz e ralhou:
– Bela coisa, Major! Dormindo como um porco e ainda por cima vestido de velha coroca… Que significa isto?
O sapo, sem compreender coisa nenhuma, mirou-se apatetadamente num espelho que havia por ali. E botou a culpa no
pobre espelho.
– É mentira dele, Príncipe! Não acredite. Nunca fui assim…
– Você de fato nunca foi assim – explicou Narizinho. – Mas, como dormiu escandalosamente durante o serviço, a fada do sono o virou em velha coroca. Bem feito…
– E por castigo – ajuntou o Príncipe –, está condenado a engolir cem pedrinhas redondas, em vez das cem moscas do nosso trato.
O triste sapo derrubou um grande beiço, indo, muito jururu, encorujar-se a um canto.
***
Este texto é referente aos 2 primeiros trechos do primeiro capítulo do livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
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