Leia um trecho de O Brasil de Florestan, novo livro da Autêntica Editora

Florestan Fernandes - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 25/04/2018


Organizado pelo doutor em filosofia Antônio David, O Brasil de Florestan reúne artigos e resenhas de difícil acesso escritos por Florestan Fernandes entre 1943 e 1991. Incluindo dois manuscritos inéditos, os textos desta coletânea têm como fio condutor a preocupação do autor de oferecer um quadro interpretativo do Brasil.
Leia um trecho da obra abaixo.

Elementos étnicos na formação brasileira

Introdução

Os elementos em contato e os resultantes: tendência à fusão O Brasil, do ponto de vista étnico, é um caleidoscópio, tal a heterogeneidade dos tipos humanos em contato. Sobre uma população indígena pouco numerosa superpôs-se o branco, em contingente cada vez maior e absorvedor, e depois o negro cativo. Esses são os três elementos básicos na formação étnica brasileira, que, por um processo demorado de miscigenação, forneceram os tipos mestiços que vieram complicar o mosaico humano brasileiro. O branco e o índio produziram o caboclo; o branco e o preto, o mulato; o preto e o índio, o cafuzo, “numericamente insignificante” (Roquette Pinto). É claro que todos os processos posteriores de caldeamento se desenvolveram no seio das camadas populacionais constituídas por esses tipos mestiços e pelos brancos, negros e indígenas. São os tipos básicos que estruturaram durante muito tempo a população brasileira e que constituíram o elemento nativo que deveria entrar em contato com os elementos trazidos pelas correntes imigratórias iniciadas no início do século XIX.

De um modo geral, as variações individuais gravitam em torno do tipo branco, que tende a absorver os demais tipos (o negro e o indígena), que pouco a pouco desaparecem como unidades raciais. Esse processo de absorção dos outros elementos pelo branco tem sido a característica por excelência da formação étnica brasileira. Em seus recentes estudos sobre os contatos raciais no Brasil, Donald Pierson assinalou esse fato nos seguintes termos: “a tendência geral em toda a história brasileira parece ter sido para absorver o stock europeu predominante, gradativa mas inevitavelmente todas as minorias étnicas” […] da população, definida em torno dos três tipos étnicos fundamentais, ou não, com a situação anormal da guerra verificou-se que certos elementos migratórios, como os japoneses e os alemães, constituem encravamentos raciais ou minorias étnicas, dentro da população brasileira.

Na verdade, o italiano, o espanhol e outros elementos, como os alemães, os austríacos, os sírios, etc., fundiram-se de tal modo à população local que seus descentes se distinguem dos demais habitantes pelo nome, e às vezes por traços físicos específicos, como a cor da pele, dos olhos e do cabelo. Em certas zonas rurais, para onde afluíram há tempo elementos nórdicos, distinguem-se certos habitantes do caboclo justamente por esses traços – têm cabelos loiros e olhos azuis. No resto, até os costumes, confundem-se com os outros – são caboclos. Isso sem falarmos no elemento português, que é gente de casa. Relativamente ao japonês, todavia, há quem sustente que ele apresenta um mínimo de miscibilidade, mantendo padrões endogâmicos de casamento. O próprio sistema migratório japonês facilita essa situação – pois o japonês imigra em família e procura se localizar em lugares onde haja elementos da mesma nacionalidade. Nesses lugares (Bastos, na Alta Paulista, Pereira Barreto, Ribeira de Iguape, Araçatuba, Cotia, etc.), o japonês trabalha dois anos sob contrato, procurando, depois desse tempo, arrendar ou comprar propriedades coletivamente, reunindo-se cinco ou seis famílias. Com a melhoria de sua situação econômica, o japonês tende a arrendar ou comprar individualmente as terras para o cultivo, mantendo, entretanto, o sentido cooperativista que caracteriza suas colônias. Isso facilita os casamentos dentro do próprio grupo japonês, e, dada a diferença entre os padrões de vida dos japoneses e dos outros elementos da população, não se poderia esperar um índice elevado de miscibilidade. O professor Alfredo Ellis calculou as seguintes percentagens de intercasamento, para os japoneses, no ano 1927 (sobre dados do Anuário Demográfico): casamento entre japoneses 63,3%; casamento com brasileiros 27,4%; casamento com outras nacionalidades 5,3%.

Assim mesmo, 27,4% parece-nos uma percentagem elevada, que talvez se explique pelo fato de se considerar a nacionalidade e não a ascendência do habitante nos recenseamentos. É possível que parte desses brasileiros sejam japoneses nacionalizados ou seus descendentes brasileiros.

O próprio professor Ellis considera que os japoneses “não são favoráveis a uma rápida assimilação” (p. 182). E isso tem se evidenciado ultimamente por causa da atenção que a situação internacional atraiu sobre esses elementos. Vários conflitos culturais têm demonstrado que o japonês, devido à sua localização em áreas contíguas, sua organização cooperativista e a manutenção dos mesmos traços culturais originários (língua, costumes, etc.), não está sendo assimilado aos padrões sociais brasileiros. Um dos conflitos interessantes surgidos ultimamente refere-se a um casal japonês que queimou a sola dos pés de uma filha fujona.

Apesar disso, parece-nos prematuro concluir pela hipótese de encravamento, embora também em outras esferas culturais (competições de baseball, por exemplo, que “reúnem as equipes de todas as zonas de colonização japonesa”; língua, religião, festas, etc.) haja incongruências com a cultura do grupo dominante.

Sobre o imigrante alemão também se levantaram hipóteses de encravamentos ou de que constituíam minorias étnicas, mormente no sul do país, assegurando-se que o alemão não tem se assimilado aos padrões do grupo social brasileiro. Estudos realizados por Emílio Willems demonstram justamente que a falta de contato dos imigrantes alemães com o grupo social brasileiro estava em função do isolamento quase completo em que se mostraram esses núcleos, quer com as zonas urbanas, quer com as rurais. Havia falta de vias de comunicação, e a distância com os grandes centros dificultava ainda mais o contato. Isso levou os imigrantes desses núcleos (em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná) a constituírem verdadeiras ilhotas com uma vida cultural relativamente autônoma. Entretanto, nada se pode concluir de positivo sobre a miscibilidade desses imigrantes, porque o isolamento deixa poucas possibilidades ao intercasamento. Por isso, conclui o professor de Antropologia da Universidade de São Paulo, “todos os argumentos pró ou contra a capacidade de assimilação do imigrante alemão são inteiramente falhas enquanto não considerarem o fator isolamento”.

Há preconceito racial no Brasil?

O problema racial no Brasil, como muito bem observa Donald Pierson, só aparece quando um grupo tenta resistir à miscigenação e procura segregar-se no meio social brasileiro. Por isso criou-se um ambiente de oposição aos japoneses. Compreende-se que numa sociedade assim caracterizada não pode deitar raízes fundas o preconceito racial. O português defrontou-se com o problema de falta de mulher e falta de mão de obra, e resolveu os dois pelo mestiçamento.

A regularização da situação desses elementos mestiços consolidou o seu status social e abriu novas facilidades ao intercasamento com brancos. Por isso, pesquisadores como Donald Pierson acham que a aceitação de elementos racialmente caracterizados – como o negro – está mais em função de seu status econômico e social que de sua cor. Isso é verdade para o norte do Brasil até o Rio de Janeiro, e talvez em partes para o sul. Observamos em Sorocaba, em uma pesquisa que realizamos, a existência do preconceito contra o negro (não podem entrar em certas barbearias de luxo na cidade; não podem participar de certos clubes da sociedade “alta”; não podem nadar em certas piscinas, etc.). Isso é mais ou menos característico das populações sulinas.
Entretanto, o negro continua a se fundir à população branca e mestiça, o que, até certo ponto, inutiliza os argumentos favoráveis à sua segregação.

A color line, como existe nos Estados Unidos, entretanto, é estranha à sociedade brasileira. Contra outros elementos o preconceito parece não existir.

Há um tipo brasiliano?

Parece-nos que já falamos muito sobre a nossa situação étnica. Agora, uma pergunta, a título de conclusão, seria possível há um tipo étnico brasileiro? Parece que não há nem tipos, quanto mais um tipo, caracterizado antropologicamente. Para isso contribuiu muito a nossa própria formação – os elementos básicos da nossa miscigenação não se definiam antropologicamente em torno de um tipo, como já vimos com o índio, com o português e com o negro. Depois, várias migrações internas tornaram ainda mais instáveis, por novas fusões, os produtos dos primeiros mestiçamentos. Essas migrações são intensas, desde o período colonial (no ciclo da cana-de-açúcar, para o norte, no ciclo da mineração, para as [Minas Gerais], e no ciclo do café, para o sul – São Paulo, principalmente), até hoje.

Na verdade, é possível que haja uma tendência para a formação de tipos antropológicos brasileiros, mas só se [definirão] em futuro ainda remoto. Depois, assim nos parece, a formação de um tipo brasiliano é pouco provável, porque as características do processo de caldeamento mudaram muito nas regiões sulinas, como muito bem o reconhece Oliveira Viana. Sob esse aspecto mesmo, pode-se distinguir duas faces no melting-pot brasileiro: a primeira, em que entram os três elementos básicos de nossa formação, e que dura, para todo o Brasil, até meados do século XIX; e a segunda, no sul, em que as correntes migratórias europeias aumentam o contingente branco ao mesmo tempo que se caldeiam entre si nos vários núcleos coloniais, sem conhecer os elementos fundamentais da formação brasileira, ou os conhecendo através de mestiços, mulatos e caboclos – recessivos para o branco. Por isso, nessas zonas do sul, geralmente, as fusões se fazem entre os representantes das etnias europeias. Como o índio atualmente apenas oferece
poucos elementos puros à fusão (em certos estados, como Rio Grande do Norte, Pará, Mato Grosso, Goiás, mesmo São Paulo), e como os negros já não constituem, praticamente, uma unidade racial, pois estão desaparecendo no contingente branco – pela miscigenação –, naturalmente, por um processo de seleção letal pronunciado (em São Paulo, Suzana Pompeu Eliezer calculou, para o período compreendido entre 1932 e 1939, a diferença negativa 4,75 – 2,81 nascimentos e 7,56 óbitos), é possível que os caldeamentos se realizem no sul definitivamente sem o concurso desses dois elementos, ou apenas através dos seus mestiços. Alguns autores, como Oliveira Viana, acham que o melting-pot no sul se realiza só entre elementos étnicos europeus.

Por isso, é melhor aceitar, com esse autor, que o branco no Brasil é um grupo, e não um tipo.
Em todo caso, podemos resumir a nossa conferência frisando que os elementos fundamentais que entraram na formação brasileira foram o índio, o branco e o negro, e que, desde os fins do século XIX, há novos aspectos na miscigenação brasileira, graças às colônias do sul. Mas, como os elementos que integram esses núcleos não são muito numerosos – uns cinco milhões, não contando os descendentes –, é possível que eles sejam totalmente assimilados à corrente branca que vem dos portugueses, da era colonial.

(trecho extraído do primeiro capítulo de O Brasil de Florestan)

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Florestan Fernandes nasceu em São Paulo em 1920, filho da empregada doméstica Maria Fernandes. Obrigado a interromper os estudos ainda na infância, trabalhou como engraxate e garçom na capital paulista. Em 1941, ingressou no curso de Ciências Sociais da USP. Tornou-se professor assistente e, em 1964, catedrático titular da cadeira de Sociologia I. Cassado em 1969 pelo AI-5, exilou-se no Canadá. De volta ao Brasil, lecionou na PUC-SP. Em 1985 foi eleito deputado federal pelo PT, sendo reeleito para a legislatura seguinte. Faleceu em 1995, vítima de um erro médico. Dedicou-se à defesa dos direitos dos trabalhadores e dos discriminados de toda sorte, e sua obra é referência para o estudo do Brasil e das ciências sociais.

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