Leia o prefácio do lançamento "Psicopatologia lacaniana. Volume 2: Nosologia"

Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 30/06/2020


Psicopatologia lacaniana. Volume 2: Nosologia, que se segue ao primeiro volume da coleção, voltado à semiologia, prossegue com o projeto iniciado há mais de três anos e que resultou da parceria entre a Autêntica, os organizadores do volume e a Escola Brasileira de Psicanálise.

Ele trata do sofrimento humano. Busca apreendê-lo em suas sutilezas, complexidades e estranhezas, mesmo as mais terríveis. Os autores reunidos na obra impõem-se o desafio de lidar com o adoecer sem deixar de lidar igualmente com a experiência subjetiva desse adoecimento. Recusam-se, portanto, a reduzir o viver humano da dor a modelos que excluam seu sujeito.

Você confere a seguir o prefácio deste volume, “A consciência aberrante”, escrito pelo psicanalista, psiquiatra e professor adjunto do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, Marcus André Vieira.

Prefácio: A consciência aberrante


Marcus André Vieira


Este livro trata do sofrimento humano. Busca apreendê-lo em suas sutilezas, complexidades e estranhezas, mesmo as mais terríveis. Nos textos que seguem, seus autores impõem-se o desafio de lidar com o adoecer sem deixar de lidar igualmente com a experiência subjetiva desse adoecimento. Recusam-se, portanto, a reduzir o viver humano da dor a modelos que excluam seu sujeito. Não deixam em nenhum momento de incluir na descrição dos fenômenos patológicos que apresentam, no modo de ordená-los e de compreendê-los, a maneira como a dor atinge quem sofre.

É premissa vital num tempo como o nosso, em que a tônica é abordar o homem a partir de analogias seja com animais de laboratório, seja, sobretudo, com modelos computacionais. A experiência humana comporta bem mais do que vive uma cobaia quando escolhe dobrar à esquerda ou à direita em um labirinto, quando um neurotransmissor desencadeia um reflexo de fuga ou luta ou quando uma imagem cerebral desenha uma área mais carregada de impulsos elétricos que outra.

Evidentemente, esses modelos são fundamentais e sua complexidade pode ir ao infinito, mas costumam topar com dois obstáculos intransponíveis. O primeiro é a extrema variabilidade dos fenômenos subjetivos, não apenas em escala transindividual, como também para um mesmo sujeito. Coordená-los, pensá-los em um conjunto mais ou menos integrado de signos patológicos ou não, propor para eles ações terapêuticas implica sempre uma perda, a mesma sentida por quem busca um tratamento para sua tristeza e encontra o cuidado para a tristeza de um enfermo padecendo de uma depressão abstrata e universal. O segundo é que a própria instância encarregada de realizar a integração dessas funções em um nível individual escapa à sua apreensão, a consciência. Onde situá-la? Como pensá-la? A integração de informações que faz o essencial da consciência é sempre hipotética, nem localizável nem funcional. Em outros termos: como situar a consciência que administra as singularidades que compõem a vida subjetiva quando ela mesma constitui uma singularidade que escapa à sua própria observação. Apesar de estarmos às voltas com o paradoxo de Bertrand Russell sobre o catálogo de todos os catálogos que, no entanto, não tem como incluir em seu catálogo ele mesmo, não se trata de tema abstrato. Toda questão é como será reintroduzido o que se perdeu, ou seja, como fará aquele que se aproxima de alguém em sofrimento munido desses modelos para reintroduzir o sujeito.

Este livro tem a ambição de aceitar estes dois desafios: percorrer os modelos de doença referidos a uma normalidade suposta sem perder de vista a experiência singular do sofrimento e do tratamento. Tanto aceita tomar por base o modo como o sujeito racional, consciente, entende e aborda as doenças que lhe acometem quanto aquilo que esse sujeito não pode assumir do humano a não ser como patologia. Por um lado, acompanharemos a contribuição da psiquiatria clássica, fundada na razão, e, por outro, a da psicanálise, que observa a consciência a partir da experiência do inconsciente, sempre estranha e incongruente com relação a ela.

Nesse sentido, no contrapé das pesquisas de laboratório, parte-se, para começar, de um modo de olhar específico, o mesmo descrito por Michel Foucault em O nascimento da clínica. Somos levados a um ponto relativamente distante no tempo, quando a própria ideia de um sujeito da razão estava em estado nascente e que tem sido esquecido. De fato, nosologia é um termo relativamente em desuso, referido à ideia de entidades clínicas articulando uma síndrome a um agente etiológico específico, como a pneumonia, por exemplo. Sempre andou de par com semiologia, a leitura de sinais e sintomas que compõem as síndromes nosológicas de base e que também tende a ser substituída por imagens de laboratório e outros procedimentos técnicos de medida. É que a clínica que nasce do método cartesiano, apanágio da razão ordenadora do mundo, encontra seu apogeu um minuto antes da revolução que a descoberta de substâncias de ação efetiva nos sintomas psicóticos trouxe ao campo da clínica. Essa revolução aportou ganhos indiscutíveis e fundamentais, mas também o efeito colateral de uma tendência a reduzir a importância de detalhes e de sutilezas da vivência dos pacientes, pois o “aqui” e o “agora” da relação interpessoal deixaram de ser tudo o de que dispõe o profissional – exatamente o que ainda hoje interessa de maneira privilegiada ao clínico, ao psicólogo, ao psiquiatra ou psicanalista, todos os que se interessarem pela relação tanto quanto pela resolução. Aqueles que buscam uma resolução que não ignore a experiência subjetiva.

A maneira como nossa cultura lida com a estranheza dos desvios da norma sofreu grande transformação no período do Renascimento, dando luz à nossa concepção quotidiana de loucura. É a partir de uma importante mudança de paradigma que o pensamento louco é separado de forma estanque do pensamento racional. O ditado “de médico e louco todo mundo tem um pouco” mostra como tanto um quanto o outro ainda são considerados categorias opostas, o avesso uma da outra.

Imagine o leitor que somos os alienistas do século XVII, quando esse modo de olhar ganha força. Um alienista a essa época tinha moradia dentro das paredes do manicômio. Estamos, assim, mergulhados na experiência, feita de som e fúria, dos desatinos de uma humanidade muitas vezes errática e excessiva. Estranhos, errantes, aberrantes sujeitos que perturbavam demasiadamente a aurora das cidades iluministas. Alguns ali viviam com esses sujeitos sofridos e assumiram que tudo o que é real é racional, que a desrazão, portanto, só podia ser doença, desvio da norma. Esse alienista começa a descrever a experiência do sofrimento a partir desse modo de olhar. Nasce a ideia do doente, e não do possuído ou amaldiçoado, e logo adiante, com La Metrie, a identificação entre a experiência subjetiva e o funcionamento de uma máquina. Esse homem é o ideal dos alienistas, que constroem o edifício da psicopatologia à sua medida.

Descartes é o nome próprio de um momento na história da humanidade em que essa distinção se engendrou. Simboliza e cria, simultaneamente, o lugar de uma razão despojada dos atributos do mal e que virá sustentar a visão mecanicista da doença. Os loucos são excluídos da razão, assim como o Gênio maligno que perturbaria minha visão do mundo. A partir daí, nas Meditações metafísicas, razão e desrazão se separam, e se obtém a certeza de que o pensamento claro e distinto é um espelho do mundo.

Este livro é a retomada daquela nosologia que nasceu na riqueza iluminista dos detalhes do olhar alienista. Acrescenta-lhe, porém, uma torção decisiva, a hipótese do inconsciente, do estranho, do monstruoso inerente ao homem. Assume que a desrazão também segue uma lógica, sua lógica própria. Assim como as doenças têm suas leis, o que não significa que o estranho se tornará conhecido, apenas poderá entrar no rol do que se descreve e se trata. Ganha-se em humanidade, mas também em inteligibilidade, uma vez que toda uma série de fenômenos ficam, em sua singularidade, fora da capacidade heurística do universal descritivo que visa aprendê-los. Desse ponto de vista, pode-se, no avesso do olhar da clínica iluminista, aquilatar como a consciência é enganosa, e a normalidade, muitas vezes aberrante.

A clínica psiquiátrica foi reinventada por Lacan, seu herdeiro direto, dessa forma, a partir da inserção nela de Freud. Levada para a psicanálise, ela hoje talvez seja ainda seu bastião. O exemplo maior é o modo como apreende-se a loucura desse ponto de vista. A psiquiatria de hoje tende a associar as vivências delirantes ao diagnóstico de esquizofrenia. Lacan prefere abordar a experiência da desrazão a partir do termo psicose. Não qualquer loucura, mas aquela que se delimita como psicose. O termo, vigente na psiquiatria no tempo de Lacan, guarda a força de uma prática anterior à revolução dos medicamentos e da tendência atual a assumir como esquizofrenia a diversidade das múltiplas formas do enlouquecer. Até então, só se dispunha de detalhes e sutilezas para fazer diferença, tudo o que continua essencial para o psicanalista. Destaca-se, nessa clínica, a fala. Imagens cerebrais e vias de transmissão neuronal serão secundárias aos caminhos subjetivos do dizer. É dessa forma que Lacan aborda a psicose, a partir do modo como os meandros de nossas narrativas nos estruturam, para examinar os cursos pelos quais nossa urgência em viver vem a desaguar em um quotidiano mais ou menos regrado e coletivo.

Nas páginas que seguem, a psicanálise lacaniana se expõe didaticamente, no melhor sentido do termo – com simplicidade e precisão, de forma direta e ordenada e com os ganhos de saber provenientes da aplicação da psicanálise ao estudo da doença mental. Não se trata de compreensão, coisa que Lacan sempre repudiou. A compreensão, no sentido que lhe dá Lacan seguindo sua recusa por Jaspers, é prima-irmã da empatia, cada vez mais em cartaz hoje, quando os direitos humanos e o universal da fraternidade andam tão decaídos.

Antonio Teixeira, a quem devemos, juntamente com Heloisa Caldas, o primeiro volume de Psicopatologia lacaniana, dedicado à semiologia, associa-se agora a Márcia Rosa para compilar o modo como a psiquiatria descreve no detalhe diferentes categorias que cria para compilar as variantes do sofrimento humano e o modo como a psicanálise permite situar esse sofrimento dentro de uma leitura que inclua o sujeito. Organizam, assim, este volume tão rico quanto cuidadoso, graças ao concurso de toda uma comunidade de experiência, de uma mesma orientação lacaniana que bebe do trabalho de J. A. Miller, no sentido de circunscrever a arquitetura do ensino de Lacan.

Este livro se endereça, assim, juntamente com seu par inseparável, o de semiologia da Psicopatologia lacaniana, a estudantes que queiram saber mais que decorar. Não será nunca um manual, mas um guia nas paragens da desrazão, quando ela aparta um sujeito do coletivo a ponto de fazê-lo perder-se de si mesmo. Que possa ser lido pelos estudantes é meu voto, mas igualmente pelos psicanalistas a fim de renovar sua prática, pelos psiquiatras e neurologistas de nosso tempo, enfim, por todos os praticantes que queiram intervir em uma relação de fala mais do que em um corpo objetivado, que amem o saber mas que respeitem o impreciso e o insabido, que possam ao mesmo tempo tratar o indivíduo e dar lugar ao sujeito da desrazão que nos habita em plena razão.


Marcus André Vieira é psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise. Psiquiatra, doutor em Psicanálise (Université Paris 8) e professor adjunto de Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Autor, entre outros, de Mães (Subversos, 2015) e A paixão (Zahar, 2012).


Psicopatologia lacaniana. Volume 2: Nosologia já está disponível no site do Grupo Autêntica e nas principais livrarias. Acesse a página do livro e saiba mais!

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