FIQ 2022: confira o papo com Chloé Cruchaudet

Equipe - Publicado na categoria Entrevistas em 12/08/2022


O FIQ BH retornou às atividades presenciais em 2022 e reuniu grandes nomes da nona arte no Minascentro, na capital mineira. A quadrinista francesa Chloé Cruchaudet foi um nome muito aguardado pelos leitores da editora Nemo e esteve presente em três dos cinco dias de programação oficial do evento.

Ela é autora de Degenerado, que faturou o título de Melhor Álbum no Festival de Angoulême de 2014 – considerado o maior evento de quadrinhos do mundo – e o Grande Prêmio da Associação de Críticos e Jornalistas de Quadrinhos francesa em 2013. O livro foi publicado pela Nemo em 2020 e, desde então, se tornou um dos principais títulos do catálogo.

Em uma entrevista exclusiva, Chloé falou um pouco mais sobre a história, os interesses por trás deste quadrinho e dividiu suas maiores inspirações. Confira:

Como foi o processo de adaptação da história de La Garçonne et l’assassin para os quadrinhos?

La Garçonne et l’assassin é um ensaio de histórico, não se trata de um romance, então para mim foi ótimo porque nesse ensaio havia muitos detalhes sobre os fatos históricos e o que mais me despertou interesse nessa história foi juntar as peças desse quebra-cabeça. Como já tinha algumas peças desse quebra-cabeça, o meu objetivo era reconstituí-lo por completo com as outras peças que me faltavam. O advogado que tratou esse caso deixou um dossiê jurídico nos arquivos de Paris e eu fui consultar esse arquivo, ele me ajudou muito porque tive acesso aos escritos de Paul e Louise. A escrita de Paul guardava uma característica trêmula, nervosa, que de certa forma tinha a ver com a personalidade dele, com o momento em que ele escreveu essas cartas. Nesse dossiê, que era enorme, havia uma pasta com várias fotos e na capa de uma pasta estava escrito “fotos eróticas de Paul”, e eu estava ansiosa e impaciente para consultar essas fotos, mas, quando abri a pasta, ela estava vazia. Eu acredito que essas fotos foram roubadas.

Eu tinha indícios de que o Paul esteve num bosque, que é o Bosque de Boulogne, em Paris, para viver aventuras sexuais. Essas fotos, provavelmente, guardavam esses registros que não tive acesso. Essa é uma das partes que eu tive que reconstituir. O mais interessante desse processo de reconstituição foi trazer para os leitores aquilo que é verossímil, mas não necessariamente é a verdade. Tive acesso a fatos reais, mas que decidi não colocar em meu livro, tendo em conta que eles não eram verossímeis. Um exemplo disso é que nós sabemos que Paul foi campeão de paraquedismo na França, enquanto mulher. Como esse fato não é verossímil, como não sabemos explicar como que ele conseguiu pagar esse curso, como ele conseguiu integrar o curso nas condições em que ele estava, eu decidi não incluir essa curiosidade da vida de Paul em meu livro.

O trabalho de um autor é como o trabalho de escultor que se coloca diante de um bloco de mármore e vai esculpindo essa história de modo que os leitores possam acompanhar.

Por que você se interessou por essa história? O que te chamou atenção nela?

Eu queria muito escrever sobre a questão do gênero, sobre o masculino e o feminino, em especial sobre aquilo que é nato e sobre aquilo que é adquirido (ao longo da vida), mas eu poderia ter escolhido outra história. Uma história do século XVII, de uma mulher que queria se travestir para acompanhar uma travessia de um barco pirata — na época, as mulheres eram proibidas de fazer isso, mas elam tinham esse desejo. Na minha busca por fatos históricos acabei abandonando essa história e me debrucei sobre a de Paul, que se passa na Primeira Guerra Mundial. Eu me sinto, de certa forma, como o juiz no início de Degenerado, que tenta categorizar e colocar os gêneros em moldes específicos. Graças a esse livro eu me instituí diante de uma multiplicidade de possibilidades.

Quais sentimentos você busca explorar nas suas criações?

Não me dirijo a um sentimento, mas a uma paleta variada de sentimentos. Eu espero que meus leitores sintam frio, sintam calor, que se alegrem, sintam desgosto, fiquem tristes. Eu priorizo que haja um percurso ao longo da obra que leve os leitores a refletirem sobre os temas que eu estou tratando.

Qual o exercício que você fez para construir a relação entre os personagens desse livro?

No primeiro momento, eu faço uma análise psicológica das personagens, penso sobre o que os motiva, o que os fazem se levantar da cama todos os dias. Uma vez que eu compreendo esse perfil psicológico dos personagens, tento me colocar na pele deles. Essa é a parte que eu adoro, acredito que todos nós vivenciamos isso em algum momento da infância, é como os brinquedos infantis da Barbie, quando colocávamos esses brinquedos em diálogo uns com os outros. Essa é a parte que mais me motiva e que me dá o desejo de escrever essas histórias.

Nessa fase do trabalho eu me sinto bem relaxada, bem tranquila, mesmo que eu não tenha os brinquedos para brincar. Em um primeiro momento, acho que as pessoas pensam que eu sou uma preguiçosa, que fico em casa sem fazer nada, mas nesse momento eu não tenho muitas imagens, eu tenho vozes que eu vou escutando. Eu tenho um caderno de notas que eu anoto tudo, tomo um tempo de reflexão e só depois que eu vou pensar em uma estrutura para a obra.

Quais livros, animações ou filmes você indicaria para quem leu Degenerado?

Há uma grande fonte de inspiração para mim nos livros. Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline, me inspirou muito no processo de escrita, principalmente no que se refere a língua. Eu tentei escrever Degenerado usando uma linguagem cotidiana, uma linguagem compreensiva para as pessoas e me baseando muito nas gírias. Esse livro foi uma grande fonte de inspiração para mim. Nesse livro, Céline fala de coisas bobas, como, por exemplo, o cocô, mas com uma linguagem muito lírica. É isso que me inspirou muito na obra dele.

Outra inspiração é o autor Jacques Tardi, ele escreveu muitos livros sobre a Primeira Guerra Mundial e me inspirou muito no processo de escrita.

Também tem um filme que me inspirou muito e eu acho que é possível encontrar traços dessa animação no meu livro. É o longa Ernest & Celestine, inspirado no livro de Gabrielle Vincent. É uma animação cujo traço está presente em Degenerado. Isso se deve ao fato de que, antes de trabalhar com quadrinhos, eu trabalhei muito tempo com animações.

Qual é o seu gênero literário favorito? O que você está lendo agora o qual faz que foi seu último livro lido?

Eu estou escrevendo um livro sobre a empregada doméstica de Marcel Proust, então, evidentemente, o último livro que eu li foi a obra integral de Proust, A busca do tempo perdido, que é um título generalista, mas que compreende 11 volumes.

Você tem algum recado ou dica para os fãs brasileiros que têm vontade de seguir pelo caminho das graphic novels?

Em qualquer trabalho no âmbito criativo muitas portas vão se fechar, então é preciso colocar diante de si um escudo para essas portas que se fecham e, se necessário, colocar o pé na porta e continuar, continuar, continuar… E também é necessário evitar fazer o tipo “bom aluno”, que sai da escola e quer mostrar de imediato tudo aquilo que aprendeu e não mostra realmente aquilo que deseja fazer. É preciso chegar a um grau de maturidade em que o artista imprime no trabalho aquilo que o motiva e que realmente lhe faz feliz. Isso também é prova de ineditismo, de fazer o que se gosta, e é preciso encontrar alegria ao seguir esse processo criativo.

Tags:  Degenerado,  nemo


Comentários