Entrevista de Marcelo Gomes Justo com Paul Singer

Publicado na categoria Entrevistas em 17/04/2018


Paul Singer faleceu ontem (16/04). Autor do livro Urbanização e desenvolvimento, uma seleção de textos do autor, feita pelo sociólogo Marcelo Gomes Justo, tendo como foco as análises que o autor empreendeu sobre a questão urbana. Abaixo, leia a entrevista que está ao final da obra com o autor e o organizador de seu livro. A entrevista foi realizada na casa do Prof. Singer em São Paulo, no dia 24 de maio de 2014, com duração total de 1h45.

Marcelo Justo: A partir da seleção de textos feita para esta coletânea, como e o que você observa nesse recorte da sua produção intelectual? O que há de continuidades e mudanças nas análises? É uma produção de quase quatro décadas sobre urbanização e desenvolvimento, principalmente na Região Metropolitana de São Paulo.

Paul Singer: Queria chamar a atenção, primeiro, de que ela não foi planejada. À medida que eu fui publicando, vieram novos desafios e convites a escrever sobre isto ou aquilo. Essa produção de 40 anos foi, em boa parte, resultado de polêmicas e discussões. No Centro Brasileiro de Análise de Planejamento (Cebrap) havia uma interação estreita e muito boa entre nós, um grupo de uns vinte intelectuais. Criamos o hábito de que nenhum de nós terminaria algum trabalho sem submetê-lo aos outros. Não era uma obrigação. Cada um poderia publicar o que quisesse, evidentemente. Mas era tão bom receber as críticas e as apreciações dos companheiros que ninguém deixou de fazer. Eu discuti muito textos do Otávio Ianni, do Fernando Henrique Cardoso, da Elza Berquó, do [José Arthur] Giannotti. Era talvez a mais importante atividade na vida intelectual do Cebrap. Aí surgiu essa minha produção, em grande parte provocada. Porque o assunto cidade é muito discutido no Brasil, até hoje é; as manifestações são bem urbanas, essas de 2013, e isso é parte dessa problemática urbana. Quando eu cheguei ao Brasil, em 1940, ele era um país predominantemente agrícola, mas tornou-se um país quase totalmente urbano 50 anos depois.

MJ: Justamente no momento em que você está fazendo sua pesquisa da tese de doutoramento é o momento em que o Brasil está passando por essa virada. Estatisticamente de 1960 para 1970, é que a população do país deixou de ser predominante rural para a urbana.

PS: Isso mesmo. É um contínuo. A ruralidade no Brasil era absoluta no período colonial. O que fazia sentido no Brasil era plantar o que se podia exportar (café, cacau) ou se podia extrair borracha. A vida era inteiramente rural. Havia cidades. Isso faz parte da minha teoria, as cidades têm funções. Cidades sedes de governo, sedes da vida política, cidades religiosas, que recebem muitos romeiros e peregrinos. As cidades têm uma divisão do trabalho entre elas, que surge espontaneamente, da interação de grande número de pessoas. A cidade industrial é mais recente. Essa cidade industrial é São Paulo. São Paulo era um lugar de estudantes, mais ou menos na época do D. João VI, quando ele criou a faculdade de Direito aqui. Essa produção sobre a cidade existiu porque estávamos num processo bastante evidente de urbanização, que trazia uma porção de novidades, uma nova sociedade estava nascendo com uma nova política, nova problemática e assim por diante. Não foi nada planejado. A única coisa planejada foi a tese, que trata de cinco cidades [publicada com o título de Desenvolvimento econômico e evolução urbana, de 1966]. Aí o planejamento não foi meu, foi do meu mestre Florestan Fernandes. Ele tinha um plano e queria um economista. Sua metodologia era interessante, ele queria separar os fatores sociológicos dos econômicos, com toda a certeza de que os dois se combinam e são os principais condicionantes do processo de urbanização. Mas, metodologicamente, para os estudiosos, os fatores sociais, políticos, culturais são uma coisa e os condicionamentos econômicos, outra. Ele me contratou e pediu: faça uma análise econômica do processo de urbanização brasileira. O tema acabou se impondo a mim, não estava no plano. Ele escolheu cinco cidades diferentes, não pela importância. Blumenau é uma cidade relativamente pequena, mas é um caso interessante, porque é uma cidade criada por uma corrente imigratória europeia; é uma cidade europeia até hoje. Tem uma mancha em Santa Catarina em que a colonização europeia, principalmente alemã, é muito forte. Cada uma dessas cidades que o Florestan escolheu, a meu ver com muita sensibilidade, com muita inteligência, são casos diferentes, mas contemporâneos. Os processos que eu analisei acontecem simultaneamente em diferentes partes do Brasil, mas têm condicionantes bem específicos. No caso, Porto Alegre tem uma história que tem a ver com as lutas entre as metrópoles coloniais, entre Portugal e Espanha. Houve uma disputa muito forte de quem iria ficar com o rio Prata.

MJ: O interessante dessa pesquisa, entre várias coisas, é que se trata de um trabalho de economia, mas encontra-se história, sociologia, geografia etc., ou seja, é muito rica. A intenção era mostrar a aplicação da lei de desenvolvimento desigual e combinado?

PS: O único objetivo era tentar separar os fatores econômicos dos não econômicos. Ele [Florestan] achava que o desenvolvimento era produzido tanto por mudanças sociais e culturais quanto econômicas. Ele estava interessado nos fatores não econômicos. Ele me contratou para que cuidasse dos econômicos que estavam lá. Então foi ele [Florestan] que me propôs a fazer a tese. Eram cinco cidades e eu fui trabalhando uma atrás da outra. Eu tinha muita coisa a fazer, eu tinha emprego etc., não vivia disso. Mas eu conseguia encaixar e viajei a essas cidades. Foi a primeira vez que fiz pesquisa de campo, por assim dizer; foi uma alegria pra mim. A cada cidade visitada, fazia e entregava o texto a ele, que depois dava sua opinião. Praticamente, ele sempre gostou dos textos. Não me lembro de ter me pedido mais alguma coisa. O último foi São Paulo, acho, porque ela é o centro da urbanização brasileira. Quando analisei São Paulo, era ela em relação às outras cidades.

MJ: E dos outros textos desse recorte? Você observa continuidades, mudanças no modo de analisar a urbanização?

PS: Não me lembro, teria que olhar para todos os trabalhos agora em detalhes. Uma das coisas que me influenciaram, se não me engano, foi na época do Cebrap. Em 1969 criamos o Cebrap e começamos a interagir entre nós. Um grupo já tinha participado do seminário sobre O Capital (realizado no final dos anos 1950 e início dos 1960), mas outros vieram depois. Isso foi um alargamento do meu horizonte, e acredito que dos outros também. O Chico [de Oliveira] teve uma influência sobre mim, discutimos muito sobre o Nordeste também. Era ele quem trazia uma visão de quem cresceu lá, e nós, não. A desigualdade regional passou a ser um “baita” tema, um dos que mais me motivou. Inclusive a pergunta: por que especificamente São Paulo, a cidade dos estudantes e da garoa, e não o Rio de Janeiro, que havia se industrializado antes, era a capital federal, tinha mais recursos, era maior que São Paulo etc.?

MJ: Nesse caso, você já atribuía, na sua tese de doutorado, o fato de São Paulo tornar-se o centro da acumulação ao livre mercado.

PS: Tem várias coisas aí que são muito importantes, talvez a principal fosse o café. É bom lembrar que o café torna-se o grande produto de exportação brasileira, sendo responsável por 90% dela. O Brasil era sinônimo de café, o maior produtor do mundo. O café tornou-se uma commodity, ou seja, uma mercadoria internacional extremamente importante por causa da industrialização e da urbanização. Não se tomava café, tomava-se chá. Na classe média, na classe alta, a bebida social, que não fosse alcóolica, era o chá. Então o café surge a partir da África e substitui o chá, principalmente nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, toma-se café em grande volume, faz parte da vida. Quer dizer, a industrialização, a revolução industrial e a urbanização em conjunto criam um grande mercado mundial para o café. Agora, qual é a importância do café para São Paulo? Ele era o principal produtor de café dentro do Brasil. O grande porto de exportação era Santos, e toda a parte financeira localizava-se lá. É que São Paulo passa a ser o principal polo de imigração estrangeira, não só europeia mas também japonesa. Nenhum outro lugar, mesmo o Sul, Porto Alegre, Santa Catarina, não tiveram tanta presença estrangeira como São Paulo. São Paulo é uma cidade italiana, muito fortemente italiana, tanto quanto Nova Iorque. Mas é ao mesmo tempo judia, árabe, alemã, austríaca, enfim, tinha gente do mundo inteiro aqui. Atribuo isso à predominância econômica que São Paulo acabou alcançando depois da Primeira Guerra Mundial até o fim da Segunda, durante a primeira metade do século XX. Essa é a minha análise.

MJ: Você coloca como contribuição sua nesse debate o fato de a desigualdade urbana estar ligada ao modo como se dá o desenvolvimento; o inchaço das cidades não é decorrente do desenvolvimento mas da falta de desenvolvimento.

PS: Sim, é isso mesmo. Há uma visão conservadora, crítica do desenvolvimento. A elite paulistana que era toda de cafeicultores, gente do interior, diferente; a cidade era pequena e, de repente, explode, fica a maior metrópole do mundo; é a segunda maior depois Cidade do México. Por assim dizer deixa a elite agrícola, latifundiária, em segundo plano. Tanto assim que os políticos paulistas apoiavam a agricultura. São Paulo torna-se dominantemente industrial. A presença da indústria foi, sem dúvida nenhuma, marcante em São Paulo. Até hoje é. Mas houve uma enorme crise dos anos 1980 que realmente desindustrializou São Paulo. Mas antes disso, São Paulo era o maior centro industrial da América Latina.

MJ: Acompanhar de perto São Paulo é medir o capitalismo brasileiro pelo pulso? Assim foi possível compreender o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e conceber o seu oposto, a economia solidária?

PS: É correto isso que você falou. Mas é preciso tomar um pouco de cuidado com os termos. A minha geração é toda discípula de Caio Prado Jr. Uma das bandeiras dele era mostrar que a colonização já era capitalista. Embora ele fosse um marxista ortodoxo, nessa questão estava fugindo de Marx. Para Marx, escravidão não tinha nada a ver com capitalismo, são duas coisas distintas. Ele era da elite, a família Prado era de latifundiários, políticos. Deve ter influenciado. Eu conheci o Caio Prado não tão bem a ponto de saber dizer o que o levou a essa visão. Mas para ele, o capitalismo não eram as relações de produção, como deveria ser para um marxista; para ele, o capitalismo era o mercado, era o lado financeiro, a acumulação; isso que era capitalismo. Portanto, já havia capitalismo no próprio descobrimento do Brasil. O que não estava errado, quer dizer, estava nascendo um mercado mundial, que levou às grandes navegações; sem o mercado mundial ele não existiria. Havia países mais avançados que a Europa, sobretudo a China, um enorme império, avançado em tudo em relação à Europa, desde a bússola. Ele era um bom historiador, um homem extremamente culto. Uma das coisas que irritavam o Caio Prado era a ideia muito forte dentro do Partido Comunista, e nos meios marxistas também, de que houve um feudalismo americano. Quer dizer, a colonização foi feudal em alguma medida. Eu sempre achei que isso era verdade. Quer dizer, feudalismo é uma coisa, escravidão é outra, é distinto. Mas, mesmo durante a escravidão, houve um trabalho importante do homem livre como um apoio fundamental para o escravocrata. Ele não podia ficar só com os negros, que ele acabava trucidando. Então, ele tinha, ao lado dos escravos, pequenos agricultores na propriedade cuja presença, em última instância, era garantir sua segurança. A meu ver isso era servidão, não servos da gleba, não era feudalismo europeu, mas era muito próximo; votavam nos candidatos do dono da fazenda, o voto era praticamente aberto; enfim, todas as mazelas do feudalismo se pode encontrar na sociedade rural brasileira. Há a escravidão de um lado e, do outro, há um feudalismo bastante acentuado, convivendo de alguma forma sem conflito. Portanto, as lutas contra o feudalismo, contra o latifúndio e pela reforma agrária faziam muito sentido. O Partido Comunista esperava que a burguesia industrial se aliasse a ele; estavam prontinhos para essa aliança, que não acontecia. Eu li Caio Prado antes de ler Marx. Era normal isso, eu lia em português. Depois a gente fez o seminário, fui ler O Capital, aprendi outras coisas. Pude relativizar. Essas discussões, a importância do agro etc., foram trazidas para mim pelo Caio Prado. Ele era ator dessa brincadeira, não era só um observador. Ele nunca foi latifundiário pessoalmente, ele era historiador, geógrafo, professor e um grande autor. Esse foi um importantíssimo pano de fundo para todos nós.

MJ: No seu Memorial para o concurso de professor titular da FEA/ USP, você apontou que concebia a questão agrária e outras reformas estruturais como necessárias para o devido desenvolvimento do país, isso antes do golpe de 1964. Como você entende a questão agrária hoje, uma vez que nem os militares nem os governos civis posteriormente realizaram a plena reforma agrária? E quais os contrapontos entre a questão agrária e a urbana?

PS: Vamos por pedaços. Os militares que deram o golpe não eram reacionários, pelo contrário, mas deram um golpe. No momento em que tomaram o poder, estava uma lei em processo de criação, o Estatuto da Terra, que abria espaço para a reforma agrária. Os militares apoiavam João Goulart; tinham algo em comum. O João Goulart queria fazer a reforma agrária; era a paixão dele, achava que com a reforma agrária redimiria o Brasil. O país ainda era fortemente agrário, dependia basicamente da agricultura. Nós não exportávamos nada de produtos industriais. Os militares mudam de lado durante o golpe. Nós achávamos que sabíamos que o golpe fracassaria porque o exército era fiel ao povo, que havia elegido o João Goulart. O nosso exército, a oficialidade do exército era progressista, desde os tenentes, desde 1930. Uma grande parte da esquerda brasileira era de militares, os tenentes. Uma grande parte desses tenentes nos anos 1930, nos anos 1960 eram generais. Um fato concreto é que o levante anti-João Goulart se fez, e os outros militares teriam de entrar numa guerra civil extremamente sangrenta. Hesitaram e depois voltaram e aderiram ao golpe. Há depoimentos dos próprios militares. Essas coisas as pessoas geralmente não lembram porque é muito contraditório, muito inesperado. Houve um enorme expurgo nas forças armadas. O governo militar brasileiro foi totalmente diferente dos outros governos militares que foram instaurados praticamente na mesma década, o argentino, o uruguaio e o chileno, que eram de direita, foram neoliberais. O Pinochet é conhecido como o primeiro mandante num país que aplicou as políticas neoliberais até o fim. Até hoje o Chile ainda está sofrendo a onda neoliberal, que veio de Chicago para Santiago. Os professores de Chicago sabiam que os seus melhores discípulos estavam no Chile. Os uruguaios não eram muito diferentes e os argentinos também. Já os brasileiros eram totalmente distintos. O milagre econômico que o Delfim Neto pôde fazer por haver contado com o apoio dos militares é o oposto do neoliberalismo. Ele fez uma política acentuadamente desenvolvimentista e estatista. Simultaneamente, enquanto o Pinochet estava fazendo as misérias lá, os argentinos também, e os uruguaios idem. Inclusive, o Uruguai teve uma emigração enorme nessa época por causa do desemprego. E o Brasil crescendo feito um louco, feito a China. Isso mostra um ponto importante: os militares brasileiros eram politicamente muito diferentes dos outros.

MJ: Desde então, como você vê a questão agrária e a questão urbana hoje?

PS: A questão agrária é um importantíssimo motor das transformações sociais progressistas no Brasil. Lembro-me muito disso porque convivi, não diretamente, não fui militante delas, mas convivi fortemente no Partido Socialista com as Ligas Camponesas. O Julião era deputado do Partido Socialista. Quando, na primeira vez na minha vida, fui fazer uma conferência em Recife (em 1961 ou 1962), me levaram para a sede do partido, onde também eram as Ligas Camponesas. Era um movimento de esquerda, que começou no Nordeste e depois se espalhou pelo Brasil inteiro. A questão agrária continua hoje tão importante quanto naquela época. Ela não foi resolvida, embora com o Lula tenha havido um enorme avanço. Havia uma grande discussão entre nós de que a modernização, a industrialização da agricultora, os tratores, os produtos químicos, eram vistos como progresso, aumentava a produtividade do trabalho etc. Só que eram profundamente capitalistas e concentradores. O pequeno agricultor sofria porque não tinha dinheiro para competir com o grande. A questão agrária foi vital em todo esse período, no século XX inteiro, atravessando-o de cabo a rabo, desde a coluna Prestes até o fim do regime militar. Porque o país era economicamente agrário, mas do ponto de vista geográfico já era mais urbano, estava ficando porque a indústria estava se desenvolvendo só na cidade, não no campo. A injustiça dentro do campo, a desigualdade era chocante. O Brasil era basicamente um país agrícola, então, a grande transformação que teria que haver era na agricultura. Não por acaso eu estreei como professor da minha faculdade [FEA/USP] falando de agricultura, citando Caio Prado e outros. Hoje a agricultura é menos importante do que a indústria e a economia urbana. Mas tem um peso extraordinariamente grande; o Brasil, pela minha informação, é o maior exportador de alimentos no mundo, devido às condições ecológicas, ao clima, muita água, vegetação etc. e competência também. O nosso agronegócio, nesse sentido, teve muito êxito.

MJ: Nesse sentido aparece como “resolvida” a questão agrária por causa desse sucesso do agronegócio?

PS: Resolvida não. A bandeira da reforma agrária ainda continua levantada. A esquerda brasileira não pode abrir mão da reforma agrária, deve se manter contra a injustiça, por uma distribuição menos desigual da terra. Pelo que estou informado por estar no Governo (Secretário Nacional de Economia Solidária), as políticas que o Lula desenvolveu e que a Dilma continuou criaram um campesinato brasileiro relativamente próspero. Não há mais aquele caipira que estava morando na choupana, de uma forma extremamente primitiva e pobre e sem acesso a coisa nenhuma. Os militares – dá a impressão de que estou defendendo os militares – criaram uma aposentadoria generosa aos idosos do campo, sem contribuição. Ou seja, essas pessoas recebiam um salário mínimo quando ficavam velhas sem terem contribuído antes. O déficit da chamada Previdência Social, em grande parte, vem daí. Isso veio do Castelo Branco. O Pinochet não faria nunca. Eu me lembro no Cebrap, estávamos estudando muito a política agrícola, a questão da diferença regional etc. A gente descobriu que a aposentadoria agrícola mudou totalmente a sociedade no Nordeste e no Norte do Brasil. Os velhos passaram a ser muito importantes. O principal dinheiro da família pobre vinha da Previdência, que só vinha enquanto o velho estava vivo; se ele morresse, acabava. Pelo que a gente verificou, isso mudou a situação para melhor no Nordeste. Algo semelhante ao Bolsa Família, com dimensões não muito diferentes. Foram os militares que fizeram. Depois, o Governo Lula transformou aquilo num programa mais ambicioso, mais sistemático de combate à pobreza. Não se tratava de combate à pobreza, era uma aposentadoria, semelhante à urbana. Como eles não eram assalariados, não havia como querer que eles pagassem, então, bastava o trabalhador ter alguma testemunha para dizer que ele foi agricultor tantos anos para receber a aposentadoria e a família toda viveria com isso.
Eu continuo achando hoje, em 2014, que a questão agrária nem de longe está resolvida no Brasil. Ela muda, não é a mesma questão agrária da minha juventude. Porque agora há um campesinato que responde por 70% dos alimentos consumidos no Brasil. Há uma divisão, o agronegócio é exportação, a agricultura familiar é mercado interno; economia solidária, agricultura familiar. De modo que a questão agrária continua mudando, esse é o ponto interessante. A questão agrária não está resolvida; é uma luta. Agora a agricultura está expulsando gente; a mecanização está se tornando factível economicamente aqui, já era factível tecnicamente há muito tempo. Avião e máquinas são usados para tudo quanto é lado. Parece-me que toda colheita de cana em São Paulo e Minas Gerais, que ocupava centenas de milhares de trabalhadores vindos do Nordeste e das regiões mais pobres, agora é feita por máquina. Estamos assistindo a uma industrialização da agricultura, uma das transformações extremamente importantes. Mas, ao mesmo tempo é uma modernização inclusive das relações sociais. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) é um gigante sindical, e existem outros, como a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf ). Há um movimento agrícola de pequenos agricultores, assalariados agrícolas também, muito precário, só para colheita, mas existe. O papel da Igreja mais uma vez é essencial. Aliás, morreu há pouco tempo D. Tomás Balduíno, cheguei a conhecê-lo, era uma figura admirável. Dom Tomás Balduíno foi um dos mais importantes lutadores junto aos camponeses da região Centro-Oeste e um dos fundadores da Comissão Pastoral da Terra. Faleceu em 02 de maio de 2014. (N. do Org.)

MJ: Ainda ligado a isso, tenho uma pergunta provocadora. Nessa sequência de trabalhos seus, a urbanização aparece como um processo inexorável. É isso ou você compreende atualmente outros modos de vida e de produção não urbanos como caminho para um outro desenvolvimento não capitalista? Estou pensando, com essa pergunta, não no sentido do romantismo de uma volta ao campo, mas no sentido, pelo que você relata, do quanto cresce a economia solidária justamente nas regiões que não são a cidade, com o campesinato, os quilombolas e os indígenas. Pensar em outras formas de desenvolvimento no Brasil cujo vetor não estaria só no processo de urbanização. O que você tem a dizer?

PS: O assunto é interessantíssimo. O que está acontecendo a meu ver é que a agricultura familiar vai desbancar a agricultura capitalista no Brasil. Eu acho isso, não só porque eu quero, mas o argumento não é a vontade. Acontece simplesmente que a agricultura industrial está destruindo o planeta. Isto não é uma novidade brasileira, é no mundo inteiro. Mas nós estamos fomentando a agricultura ecológica. Ela está acontecendo, está crescendo na reforma agrária, na economia solidária, no MST, que foi pioneiro nisso, na Via Campesina. De repente surgiu como uma bandeira anticapitalista. E hoje, finalmente, o governo brasileiro – na época do Lula se fez pouco a respeito disso – há um movimento para ensinar os agricultores a fazer agroecologia. Não tinha apoio. Éramos o maior consumidor de venenos agrícolas do mundo. Recentemente, vejo a agroecologia em reuniões, congressos lá em Brasília, com apoio sobretudo da Secretaria Geral da Presidência. O Brasil está avançando, não sou pessimista em relação ao Brasil. E está avançando inclusive na questão agrária. Estamos finalmente avançando no sonho de Julião. Ter uma sociedade menos desigual, menos violenta, menos odienta que a que tínhamos antes. A luta no campo, que eu sempre achei que era entre capital e trabalho, é algo diferente e muito complexo. De um lado o que você diz sobre reforma agrária e sobre economia solidária no campo é verdade. Existe isso, e o socialismo no campo não é um sonho mais, já é uma realidade por causa do MST que tem 70 cooperativas. Existem centenas de milhares de famílias assentadas que estão começando a sair da miséria. Foram assentadas e muitas delas abandonaram o assentamento depois, por não terem dado certo economicamente no início. Mas agora estão encontrando e se apoiando nos movimentos de economia solidária das cidades, inclusive para escoar a produção. A grande saída dessa nova agricultura socialista é, na verdade, o que nós chamamos na economia solidária de consumo responsável e consciente. Estamos cultivando cooperativas de consumo que compram diretamente das cooperativas de camponeses. É uma ideologia de esquerda. Sinceramente não tenho ideia da dimensão disso. Eu acho que está crescendo, sobretudo com o MST. Sou grande admirador do MST e amigo de alguns de seus dirigentes. Ele criou uma perna urbana; é tão interessante! Do campo para a cidade, para lutar pelos sem-teto. A única coisa que estou reafirmando o tempo todo é que as coisas não ficam como são. Portanto, a coletânea que você está organizando é história. Deverá ser útil para as pessoas saberem o que veio antes, senão o presente fica indecifrável. Saber como as coisas mudaram torna-se mais transparente, você se encontra melhor. Nesse sentido essa edição pode ser útil e espero que seja.

MJ: Muito obrigado. Você é sempre muito generoso.

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