Entenda os Neandertais: Uma entrevista com François Savatier

François Savatier - Publicado na categoria Entrevistas em 19/07/2018


Tradução de Fernando Scheibe.

Entrevistamos François Savatier, um dos autores do livro Neandertal, nosso irmão.
Confira o resultado abaixo.

BLOG: Neandertal, nosso irmão pretende derrubar alguns conceitos obsoletos que temos acerca de nosso ancestral. Qual é o conceito mais clichê a ser repensado após a leitura do livro?

FRANÇOIS SAVATIER: A ideia de que existe algum tipo de hierarquia entre as outras espécies humanas e a nossa.

1/ Os Sapiens que deixaram a África entre 25.000 e 50.000 anos atrás eram pessoas diferentes dos europeus atuais. Por quê? Porque todos os Sapiens eurasianos e americanos de hoje em dia se adaptaram a novos ambientes, especialmente aos mais frios. Como fizeram isso? Entre outras coisas, absorvendo as outras formas humanas que já tinham se adaptado e recebendo contribuições de seus genes. Por isso somos eles e eles vivem em nós. Neandertal é o melhor exemplo disso: cerca de 30% do seu genoma sobreviveu no nosso; toda pessoa com ascendência eurasiana tem entre 1 e 3% de genes neandertais.

2/ Porque a evolução produziu os mesmos progressos e, comparativamente, as mesmas tecnologias em todas as outras formas ao mesmo tempo. Cerca de 100.000 anos atrás, no Oriente Médio, Neandertais e Sapiens viviam nos mesmos lugares e, aparentemente, tinham as mesmas tecnologias.

B: Quais são as principais diferenças fisiológicas entre Neandertais e Sapiens?

FS: Os genes neandertais foram selecionados pelo frio. Por isso seus corpos eram muito parecidos com os corpos dos inuítes de hoje em dia: atarracados, com pernas e braços curtos – o que ajuda a preservar o calor dentro do corpo; além disso, suas mãos eram diferentes: mais longas, com um longo polegar e, provavelmente, de modo geral, com uma incrível capacidade de preensão; suas cabeças tinham um formato parecido com o de uma bola de futebol americano (as nossas têm uma forma mais elevada) e seus rostos eram bem diferentes: nariz grande (parecido com o dos aborígenes da Austrália), olhos enormes, queixo pequeno e recuado, grandes maçãs do rosto, dentes enormes, etc.

BLOG: Na opinião de vocês, o que faz de Neandertal, nosso irmão um livro completamente diferente de tudo o que já foi publicado sobre o mesmo assunto?

FS: O fato de ser baseado na teoria da evolução: para nós, os Neandertais são animais humanos que viviam em equilíbrio com seu ambiente. Esse ponto de vista, que é atualmente o da ciência, nos permite interpretar os raros, mas ainda assim numerosos, dados que temos sobre eles. Não os vemos como seres inferiores que nossos ancestrais sapiens teriam eliminado, como faz por exemplo Yuval Noah Harari em seu famoso livro Sapiens. Essa é uma maneira de pensar a priori e a posteriori. Está errada e baseada na crença em algum tipo de predestinação, que no caso de Harari reproduz a predestinação afirmada na Bíblia e em outros discursos religiosos.

Outro ponto é que não excluímos as ideias de outras pessoas. Pelo contrário, nós as descrevemos antes de oferecer a nossa interpretação, que para nós é a mais simples. Isso é verdade especialmente no que diz respeito às várias teorias sobre o desaparecimento dos Neandertais do registro fóssil.

B: Por que livros como Neandertal, nosso irmão e Sapiens, de Yuval Harari, são cada vez mais procurados pelos leitores?

FS: Em minha opinião, Yuval Harari é um bom escritor, porque ele explica, constrói sentido. Seu livro é uma leitura interessante (não concordo com tudo nele. Aliás, suspeito de que há por trás dele algum tipo de ideologia; dá para sentir, embora não seja tão aparente). Quando você o lê, tem a impressão de entender melhor. Você precisa ter muito conhecimento para resistir à tentação de concordar. Nossa escrita é similar, mas não afirmamos as mesmas coisas.

Além disso, acho que as pessoas de todo o planeta estão sentindo que não estamos no controle, que somos mais um fenômeno natural do que uma civilização autoconsciente capaz de restringir e melhorar seu comportamento. Muito pelo contrário, já destruímos metade de todas as outras formas de vida, ocupamos espaço demais no planeta e pelo menos um terço de nós está vivendo mal, em áreas miseráveis, sem trabalho decente, sem água limpa, levando muitas vezes existências indignas. Somos um lixo. Acho mesmo que somos um lixo, mas as pessoas estão sentindo isso e estamos à beira de uma mudança de comportamento natural. As pessoas do mundo inteiro sabem como as outras vivem, e isso está mudando profundamente o que é possível no futuro. O resultado é que as tensões aumentam no seio da humanidade e as pessoas querem saber como tudo isso aconteceu, o que exige em primeiro lugar uma compreensão intelectual do passado.

B: O livro revela que Neandertais e Sapiens coexistiram por muito tempo e se encontraram na Europa. O que deu certo e o que não deu nessa coexistência?

FS: Acho que de modo geral as coisas deram certo. Caçadores-coletores perdidos na natureza selvagem tinham grande interesse em encontrar outras pessoas e trocar genes e ideias. Primeiro, e por muito tempo, esse encontro só foi possível no Oriente Médio, porque os Sapiens não estavam biológica e tecnologicamente adaptados ao Norte. De 100.000 anos para cá eles se adaptaram e foram subindo. Nesse intervalo, as trocas com Neandertais tinham sido intensas e, provavelmente, várias culturas intermediárias se formaram, o que significa também vários grupos humanos intermediários.

Vocês na América podem entender isso muito bem: 500 anos depois da vinda dos europeus, várias culturas e sangues intermediários se formaram. Os brasileiros são o resultado disso. E, por mais que nas Américas muita gente ainda considere tolamente o descendente de europeu superior (a coisa é diferente: o resultado de uma conquista violenta), é na verdade porque as pessoas se misturaram – frequentemente em más condições e como resultado de violência – que surgiram pessoas climática e culturalmente adaptadas. Isso é biologicamente verdadeiro: cerca de 80% dos ameríndios desapareceram por causa dos vírus e bactérias europeus e africanos. Os ameríndios de hoje muitas vezes carregam genes europeus que lhes são úteis e que nem imaginam ter. Esse fenômeno é muito claro também na América do Norte onde os assim chamados sangues-mistos e mestiços são milhões… A verdade é que biológica e culturalmente a mestiçagem explica uma grande parte da penetração dos europeus nas Américas. No caso da conquista da América, foi um processo violento e rápido, porque os europeus vieram se apossar da terra, de suas riquezas e de seus povos.

Foi muito diferente 100.000 anos atrás, quando as pessoas andavam descalças e viviam da caça. A natureza era em grande parte vazia e, se a violência deve ter desempenhado um papel, não se tratava de uma necessidade; além do que, os Sapiens que chegavam não estavam atrás de ouro ou escravos. Eles estavam se expandindo lentamente (de maneira muito rápida, considerando-se a escala geológica do tempo) e provavelmente viam (é a minha opinião) a oportunidade de se misturar como uma sorte, e não como um problema. Uma menininha neandertal cujos genes foram encontrados numa caverna siberiana era a filha do seu avô com sua tia ou algo do tipo, o que aponta um sério problema com que os paleolíticos tinham que lidar: procurar novos genes! Aliás, pode-se notar que a curiosidade sexual e a necessidade de se misturar continua até certo ponto muito forte nas espécies humanas atuais. Talvez seja um traço de nossos ancestrais sapiens?

B: Ainda não sabemos muita coisa sobre nosso irmão Neandertal. Que mistérios você gostaria que fossem explicados por futuras descobertas de fósseis neandertais?

FS: Depois do Homo sapiens, o Homo neanderthalensis é a espécie humana mais bem conhecida. Por muito tempo se pensou que os Neandertais eram mentalmente inferiores; que, de algum modo, as diferenças entre nossos cérebros e os deles explicavam a sina que tiveram. Porém, não há nenhum indício de que eles não se saíam bem: tinham áreas de linguagem no cérebro e um volume cerebral equivalente, senão maior, que o nosso… Mesmo assim as pessoas procuram provas da inferioridade deles e vestígios da emergência do pensamento apenas entre nossos ancestrais sapiens.

Por muito tempo, a melhor prova que tínhamos da habilidade de pensar eram desenhos e ornamentos corporais sapiens do sul da África e do Marrocos. Esses assim chamados indícios de pensamento simbólico tinham entre 70.000 e 80.000 anos. Recentemente foi comprovada a existência de ornamentos corporais neandertais com mais de 115.000 anos, ou seja, indícios mais antigos que não tinham sido considerados seriamente. Será que então devemos dizer: Nesse caso, foram os Neandertais que desenvolveram o pensamento e nós aprendemos com eles?

Não, pois acreditamos que nossos ancestrais pensavam porque pensamos. Mesmo assim, cientistas passaram um século discutindo se os Neandertais podiam falar. Não conseguiram provar isso, mas também não provaram que nossos ancestrais falavam, ao menos não de maneira mais segura. Então, você percebe, essa é a maneira como vemos os Neandertais e, de modo geral, muitas pessoas – como os índios… – que não são como nós: eles têm que ser inferiores. Pois bem, espero que as futuras descobertas sobre Neandertais ajudem a acabar com esse tipo de preconceitos que nos vêm automaticamente, porque isso é o que é ser humano: você tem vários mecanismos internalizados que o ajudam a tomar distância dos outros porque precisa permanecer em sua própria tribo se quiser sobreviver. Mas basta pensar um segundo para se dar conta de que isso deixou de ser verdade. Hoje em dia você pode ir para a China e sobreviver numa boa. Portanto, é hora de repensar muita coisa, e os Neandertais e sua sina nos ajudam nisso.

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