Dicionários dos Intraduzíveis: Entrevista com Barbara Cassin

Claudio Oliveira e Barbara Cassin - Publicado na categoria Entrevistas em 20/03/2019


foto: AFP / Stéphane de Satukin

Entrevista de Claudio Oliveira com Barbara Cassin sobre o Dicionário dos intraduzíveis
Tradução de Fernando Scheibe

BLOG: O Dicionário dos Intraduzíveis (Belo Horizonte: Autêntica, 2018) [Vocabulaire européen dees philosophies: dictionnaire des intraduisibles. Sous la direction de Barbara Cassin. Paris: Seuil, 2004] vem num momento da sua obra em que você já tinha trabalhado com os textos gregos fundamentais, com a sofística e Parmênides em Si Parménide (Lille: Presses Universitaires de Lille, 1980) [Se Parmênides. Belo Horizonte: Autêntica, 2015], com Aristóteles em La décision du sens [A decisão do sentido] (Paris: Vrin, 1989), que você publicou junto com Michel Narcy, etc. Digamos que sua concepção da sofística grega já estava “pronta”, realizada, nesse momento. Você levou vários anos para construí-la. Mas eis que, com o Dicionário, é como se surgisse uma consequência desse trabalho anterior que não estava prevista. O Dicionário saiu em 2004, mas levou muito tempo, 15 anos, para ficar pronto. Quando e como a ideia do Dicionário lhe apareceu pela primeira vez?

Barbara Cassin: Como sempre, houve causas circunstanciais, e as causas circunstanciais talvez sejam as mais verdadeiras, as mais profundas, porque você aproveita a circunstância, a ocasião.
A causa circunstancial foi o que eu estava fazendo na editora Seuil. Eu dirigia uma coleção, e havia ali para mim uma referência que era Thierry Marchaisse, que agora fundou sua própria editora. Ele me disse: “Gostaria muito que a gente fizesse um dicionário de filosofia. Recebi uma proposta para fazer um dicionário de filosofia, mas não está boa. Será que você poderia pensar em algo a esse respeito?” Essa ideia de fazer um dicionário de filosofia, no fundo, essa ideia me interessava, de verdade, sob a condição de a pensar, de a sonhar de outro modo. Mais ou menos na mesma época, eu estava conversando com Alain Badiou sobre a vontade que tínhamos de fazer também um manual de filosofia, ou seja, de ir aos fundamentos. Mas muito rapidamente esse dicionário passou a me interessar unicamente dentro da diferença das línguas. É todo meu passado de helenista que faz com que, quando leio Aristóteles em francês, eu não entendo nada. Não, não é que eu não entendo nada, é que simplesmente perco todo o interesse. E, apesar de tudo, não quero lê-lo como Heidegger o lê, isto é, aprofundando a semântica sem se preocupar com a sintaxe e vasculhando até encontrar a “origem”. Do mesmo modo com Parmênides. Mas eu também estava imbuída do desejo de uma relação diferente com os gregos, de ser grega de outro jeito, outramente, de ser outramente pré-socrática, e via muito bem que isso passa pela tradução. Do mesmo modo que, para compreender Heidegger, o que acontece com a tradução francesa que faz com que ele se torne quase passável? Quero dizer que assim [na tradução] a gente não o vê mais como nazista, da mesma maneira. Todos esses “tremidos” na tradução eram imantados por uma mesma preocupação: outramente pré-socrático e historiador não heideggeriano da filosofia quer dizer o quê? Esse é o pano de fundo, que é o mesmo.
Afora isso, como essa preocupação veio a tomar a forma do Dicionário dos intraduzíveis? Pra começar, estávamos em plena bagunça europeia, a Europa da cultura estava se configurando e, falando sério, o globish* era aos meus olhos uma ameaça terrível: que todos passassem a falar uma não-língua europeia. Eu estava no CNRS [Centro Nacional da Pesquisa Científica] e recebi ordens, a fim de que o CNRS fosse bem classificado, de redigir meus artigos em globish – quer dizer, em inglês, mas como não falo inglês muito bem, era globish… O grande terror franco-europeu: ia ser preciso que nos saíssemos bem nas classificações de Xangai – como vamos fazer? Please, todos os cientistas, todos os pesquisadores, escrevam em inglês! Temos que ser citados, gerar números! Esse era o contexto imediato.
Diante do que, só me restava refletir sobre a compreensão da diferença das línguas, porque, afinal, a Europa tem como divisa “Unidos na diversidade”, e meu amigo Xavier North, então na DGLFLF (Delegação geral para a língua francesa e para as línguas da França), estava trabalhando nisso. Ele tinha proposto como divisa paralela a da Comédie Française: “Simul et Singulis”, todos juntos, mas cada um com seu gênio. Essa problemática é a meu ver – para dizê-lo filosoficamente – anti-habermasiana. Para mim, Habermas é o globish da filosofia. É preciso que se chegue a um consenso, então isso será feito muito bem, muito gentilmente, e aqueles que não falam de maneira inteligível não farão parte do consenso. O artigo que eu tinha escrito, “Parle si tu es un homme” [“Fala se tu és um homem” em Ensaios Sofísticos. São Paulo: Siciliano, 1990], é decisivo: mostro como Habermas e Apel reintroduzem o gesto aristotélico de exclusão, que, no final das contas, é, à sua maneira, muito mais sutil. Bem mais tarde, encontrei Habermas no México e lhe mostrei esse artigo. Primeiro a gente tomou banhos de mar juntos muito amigavelmente, depois, quando lhe mostrei o artigo, ele me disse: “não entendo francês”. O que, aliás, é verdade. Mas tinha uma versão em inglês também. Percebi então que ele não estava disposto a dar ouvidos à minha crítica. Impossível discutir para obter algo da ordem de um consenso não universalizável, de um consenso consequente – como o relativismo consequente.
Daí a forma de um Vocabulário europeu das filosofias – europeu estando aí para indicar a atenção política: nem globish nem nacionalismo ontológico, portanto nem “tudo na vala comum do inglês” nem Heidegger. E, desde o princípio, isso funciona com a sofística. Quando da primeira reunião aqui, eu não sabia muito bem como agir, então reuni amigos e, entre esses amigos, estava Jean-Luc Marion. Éramos cerca de quinze pessoas tentando encontrar o conceito adequado para esse dicionário, e Jean-Luc Marion me disse: “Escuta, eu não posso participar, mas posso lhe dizer que o que você está tentando fazer é um dicionário sofístico.” Ele me abriu os olhos. Duas pessoas me abriram os olhos naquele dia: Jean-Luc Marion e Tullio Gregory, que me disse: “Afinal, Barbara, as entradas do dicionário serão conceitos ou palavras?” Imediatamente compreendi que, de fato, seriam palavras. Era essa a singularidade desse dicionário filosófico: os lemas não eram conceitos, eram palavras. Então desenvolvi esta ideia: palavras em línguas, redes de palavras, redes sintáticas também que não coincidem exatamente. Foi assim que fabriquei a ideia desses sintomas das diferenças das línguas que são os “intraduzíveis”.

BLOG: Concordo que é certamente um dicionário sofístico. Há, a meu ver, essa referência clara à sofística. Mas quando você fala de sintoma, há também a referência psicanalítica. Há ainda essa aposta geopolítica, e, para completar, quando você decide colocar o título de “vocabulário”, há a referência à linguística, a Benveniste, e ao seu Vocabulário das Instituições Indoeuropeias. É como se você quisesse fazer um dicionário de filosofia, mas partindo de discursos que não são propriamente filosóficos: sofística, psicanálise, política e linguística.

B.C.: A ideia forte aí dentro é a de que a gente filosofa em línguas e não em conceitos. Quando querem nos fazer acreditar que filosofamos em conceitos, estão apagando a diferença das línguas, mas, como sempre, o universal é o universal de alguém. Se queremos refletir para não sermos todos filósofos analíticos, temos que reintroduzir, e manter firme, a diferença das línguas, e a geografia ao mesmo tempo que a história.

BLOG: Você se lembra exatamente do que estava fazendo naquele momento em que teve a ideia de fazer o Dicionário, o que estava fazendo no seu trabalho, na sua pesquisa, o que estava publicando ou escrevendo?

B.C.: Não. Eu poderia tentar lembrar, mas quando foi isso mesmo? Porque comecei a pensar esse dicionário quinze anos antes de ele ser publicado.

BLOG: Pouco depois de publicar_ A decisão do sentido_, eu acho.

B.C. : Então L’effet sophistique (Paris: Gallimard, 1995) [O efeito sofístico. São Paulo: Ed. 34, 2005] já tinha saído.

BLOG: Não, porque O efeito sofístico é de 1995. O que já tinha sido publicado é uma primeira versão de O efeito sofístico, que saiu no Brasil em 1990, Ensaios sofísticos.

B.C.: Sério? Que loucura!

BLOG: Sim, porque, de qualquer modo, acho que esse trabalho de que eu estava falando – o primeiro tempo do seu trabalho – já estava feito. O fundamento já estava ali, já estava pronto para sustentar um projeto da envergadura do Dicionário, já dava uma consistência ao projeto.

B.C.: Sim. Isso deu uma direção muito firme, e que era – era isso que era complicado nesse projeto – era que meus amigos – eu só queria me cercar de amigos e de pessoas com quem eu pudesse conversar e dizer “não, não é isso”. Era muito importante poder dizer “não, não é isso”, “o artigo que você está fazendo, não é isso”. Mas os únicos com quem eu podia conversar, porque sabiam o suficiente disso, eram os heideggerianos, porque estavam acostumados com a história da filosofia e com a importância da língua. E esses dois fatores eram necessários para a coisa funcionar. Muitos deles eram germanistas, alguns anglicistas – não muitos –, tive que constituir meu próprio meio procurando diferentes especialistas das diferentes épocas, das diferentes línguas e diferentes topics – dos diferentes temas. Constituí uma guarda aproximada com que eu podia conversar: Jean-François Courtine e Alain de Libera, que foram formados por e com Heidegger. A seguir, Etienne Balibar, que foi formado de outro jeito mas que também é um grande historiador da filosofia. Quanto a Charles Baladier, era algo muito mais circunstancial, era um amigo connaisseur, que sabia o que era um dicionário, porque foi ele que dirigiu a Encyclopaedia Universalis, e que eu conheço desde os 19 anos, porque, pra ganhar a vida, eu fazia um artigo por dia para a Encyclopaedia Universalis. Todas as manhãs eu me trancava, fazia um artigo e ganhava o suficiente pra comer. Fazia artigos sobre coisas que não conhecia, então me informava etc., mas tinha uma higiene, não queria que isso me tomasse mais de 3 horas por dia. Baladier me escreveu da primeira vez que entreguei artigos dizendo: “Você foi a primeira a entregar, e não tenho nenhuma alteração a fazer.” E assim nos tornamos amigos, e tudo isso era muito interessante. Ele também sabia muita coisa. Depois, tinha Marc de Launay, Jacqueline Lichtenstein, porque ela conhecia realmente muito bem o vocabulário da estética e é uma boa filósofa. Philippe Regnault, com quem eu trabalhava havia muito tempo, que é especialista em direito e anglicista. E houve gente que foi chegando para nos ajudar pouco a pouco. O núcleo duro era um núcleo de amigos que tinha se formado mais ou menos como eu, mais ou menos na mesma época, ou seja, sob o domínio de Heidegger, e que estavam aptos, por um lado, a perceber a história da filosofia e, por outro, a perceber a espessura das línguas, e também a dar um passo para o lado ou para trás. Mas eu tinha que jogar duro para eles darem esses passos. Pode-se dizer que a quase todos os primeiros artigos que recebi eu disse “não, assim não”, e mandei de volta, e isso nos fez avançar. Eu disse: “não, isso é heideggeriano, simplesmente não. Não é assim.” Então a gente acabou fazendo artigos-modelo, partimos de dois artigos-modelo. Com Françoise Balibar, fiz um artigo sobre “o momento”, porque temos a noção de momentum em física, Der/das Moment com Philippe Büttgen em alemão, e kairos em grego. Essas coisas nos permitiram fazer artigos-modelo mostrando o que nos interessava: a descoberta do impacto da diferença das línguas sobre a filosofia.

BLOG: Uma coisa que é interessante sobre o Dicionário é que, mesmo que ele seja uma resposta, uma crítica à concepção heideggeriana de linguagem, ele tem sua origem nesse círculo heideggeriano francês, embora exista uma diferença bastante clara entre Heidegger falando da palavra – por exemplo, se falou, a propósito de Heidegger, de palavras da origem – e você falando do significante. Essa diferença, entre a palavra e o significante, tem a ver também com a resistência de Heidegger à linguística. Esse grupo de heideggerianos com quem você trabalhou, você os achava ainda muito presos ainda à palavra, mais à palavra do que ao significante?

B.C.: Sim. Mas minha maneira de falar do significante veio talvez em 15 anos, 15 anos de elaboração, é um bocado. No final das contas, não fiz análise, mas fiz esse Dicionário. É mais ou menos a duração de uma análise. As coisas emergiram, os conceitos operatórios que me permitiram pensar o Dicionário emergiram pouco a pouco. E há dois deles que me aproximam absolutamente da psicanálise, o de performance e o de significante. É claro que isso emergiu pouco a pouco.

BLOG: Você fala de significante desde Se Parmênides.

B.C.: Sim, mas inicialmente não pensei que iria recuperar a noção de significante para esse Dicionário, porque eu estava ligada na diferença das maneiras de dizer o sentido – que não é a mesma coisa que o significante.

BLOG: Você acha que foi a Escola de Lille que levou você a pensar em termos de significante, permitindo uma certa distância em relação a Heidegger?

B.C.: Sim, a distância em relação a Heidegger, foi ali que fui buscá-la. Heidegger não tinha direito de cidadania ali, e a interpretação heideggeriana era considerada uma interpretação aberrante em Lille. Aliás, se você olhar para Heráclito, para o Heráclito deles, você vê que Heidegger nunca é nomeado, se não me engano. Ora, para mim não dava mais para fazer como se ele não existisse, porque era realmente uma entidade pesada, e acho ótimo que se use Willamovitz Moellendorf e Conche, ou quem quer que seja, mas o fato é que é menos interessante do que Heidegger, menos consistente. Eu precisava de um antídoto para Heidegger, e foi lá que o encontrei. Foi lá inclusive que fui buscá-lo, porque, para começar, não se deve nunca esquecer que eu era orientanda de Pierre Aubenque. Aubenque era heideggeriano, mas não totalmente, porque ele se dava conta – grande intelectual, ele era muito inteligente –, ele se dava conta de que Heidegger era uma interpretação forte. Lembro que quando falei do Problema do ser em Aristóteles com Heidegger ele me deu essa resposta muito maldosa: “o problema do quê, em Aristóteles?”
É verdade, evidentemente não é o ser no mesmo sentido em que Heidegger o toma. Trata-se evidentemente de um escólio, uma interpretação, que tem a ver com o escólio ôntico, e não com uma interpretação ontológica de Aristóteles por Aubenque. Ao mesmo tempo, acho que O problema do ser em Aristóteles é um livro muito bom.

BLOG: Você já tinha encontrado Aubenque antes de encontrar Heidegger no Seminário em Le Thor? Essa história que você está contando, foi em Le Thor?

B.C.: Sim.

BLOG: Mas naquele momento você ainda não estava trabalhando com Aubenque, certo?

B.C.: Não, acho que não.

BLOG: Porque naquele momento você estava sob a orientação de Ferdinand Alquié.

B.C.: Sim, é isso, eu tinha acabado de concluir meu D.E.A. (Diploma de estudos aprofundados) sobre Leibniz e Arnaud, sobre o Discurso de metafísica. Estava com Leibniz na cabeça, e já tinha feito vários concursos, às vezes caía Leibniz, às vezes Aristóteles, e eu já tinha escrito um trabalho para um concurso que versava sobre o livro lambda da Metafísica, que nos tinha sido dado numa tradução de Jules Tricot, e eu o retraduzi para o grego, retraduzi a tradução, refiz uma tradução a partir do grego porque conhecia praticamente de cor esse livro e concluí dizendo que, de Aristóteles a Leibniz, passa-se de Deus primeiro motor a deus promotor. E tirei 2. Fui ver aquilo que se chamava a “confissão”: os corretores recebiam os estudantes que não estavam contentes, que queriam saber mais sobre seus trabalhos. Eu tinha dois corretores, e um deles era Jean-François Marquet, que era um bom heideggeriano, e ele me disse: “eu lhe dei uma boa nota, uma nota que não teria eliminado você, mas o outro lhe deu 0.” Ele me disse várias coisas: 1. Você tem gênio mas não tem talento, e é preciso talento para passar no concurso. 2. A última frase não é sua, é de Jean Beaufret. Eu respondi: “Nada disso, ela é minha.” Depois de um tempo parei de prestar concursos, depois de umas dez vezes.

BLOG: Nessa época você também estava frequentando o curso de Beaufret?

B.C.: Frequentei o curso de Beaufret com Courtine etc. Estava estudando letras clássicas no Liceu Fénelon e, quando podia, ia assistir ao curso de Beaufret.

BLOG: Estava portanto num certo meio heideggeriano.

B.C.: Sim, os bons filósofos na minha época eram heideggerianos, não havia dúvida alguma. Eram os que sabiam ler os textos, e que tinham interesse em ler os textos. Derrida estava ali naquele momento. Tudo isso se dá a partir de Heidegger. Até Deleuze. O que Deleuze fez é absolutamente anti-heideggeriano, mas como “um contratorpedeiro é antes e acima de tudo um torpedeiro”. Essa é uma frase de Beaufret.

BLOG: Havia já relações entre alguns professores, alguns filósofos desse grupo e Lacan. Havia, por exemplo, uma correspondência entre Alquié e Lacan.

B.C.: Sim. Alquié era genial porque tinha casado com uma strip-teaser de cabelos cor de rosa, que era meio borderline. Lembro que quando Madame Alquié abria a porta, eu ficava embasbacada porque ela tinha cabelos cor de rosa.

BLOG: Voltando ao Dicionário, dez anos depois de tê-lo publicado, você organizou um livro intitulado Philosopher en langues [Filosofar em línguas] (Paris: Éditions Rue D’Ulm: 2014), dando conta dos trabalhos de tradução do Dicionário para outras línguas. Ou seja, logo após tê-lo lançado, rapidamente surgiu a ideia de traduzir o Dicionário dos intraduzíveis.

B.C.: A ideia de traduzir o Dicionário sempre foi uma possibilidade na minha cabeça. Mas aconteceu – enfim, comecei a tentar ver quem poderia fazer isso. Porque traduzir o Dicionário queria dizer adaptá-lo e se reapropriar dele com outra intenção. Já que a intenção da Europa é apenas uma intenção entre outras. Nem globish nem nacionalismo ontológico era minha intenção. Mas sempre pensei que, dependendo do país e da língua em que o Dicionário seria refeito, outra intenção poderia se sobrepor. O primeiro – e sempre me lembrarei disso – o primeiro a decidir traduzir o Dicionário foi Constantin Sigov. Ele é ucraniano e foi ele que encontrei, graças a Wismann, para trabalhar nas entradas eslavas do Dicionário. Montamos uma pequena equipe, estive várias vezes na Ucrânia, e eles fizeram as entradas eslavas – muito boas, excelentes no Dicionário – e Constantin Sigov, não sei muito bem quando, mas foi num mês de novembro, em que justamente eu estava apresentando o Dicionário e pedi que ele fosse convidado. Nesse dia ele decidiu que o traduziria para o ucraniano, ele disse que tinham acabado de decidir que iam traduzir para o ucraniano e não para o russo. Era importante para eles, para que a língua ucraniana exista como tal, e possa tomar uma distância – uma distância inteligente – em relação à língua russa. Hoje, a tradução ucraniana está pronta – e eles estão traduzindo também para o russo. Estão pondo para funcionar uma política extraordinária de compreensão mútua das línguas, de relação pacífica entre as línguas – e não conflituosa – de relação intelectual entre comunidades e línguas filosóficas. Se tem alguém que posso saudar é ele, que faz realmente um esforço geopolítico magnífico. Como ao mesmo tempo ele dirige uma editora em Kiev, vai publicar os dois dicionários, evidentemente em parceria com uma editora russa para o dicionário em russo. Foi assim que aconteceu, e então compreendi que o Dicionário podia ser utilizado para fins que não eram os meus, que se trata, pois, de um gesto em torno da diferença das línguas, ou a propósito da diferença das línguas, e não de uma obra fechada. É isso o que eu realmente explico em Éloge de la traduction [Elogio da tradução] (Paris: Fayard, 2016). Mas foi ficando claro para mim pouco a pouco, com as maneiras como foram acontecendo as traduções do Dicionário, vale dizer, as diferentes apropriações que ele foi sofrendo.
A maneira americana foi a primeira a dar frutos, com Emily Apter. Foi a primeira tradução publicada. Ali a coisa se deu, se ouso dizer, à americana: eles recortaram o texto do dicionário por letras. Eles disseram: “de A a C é fulano que vai traduzir”, e pegaram tradutores profissionais, muito competentes, e tradutores de filosofia, bons filósofos. A coisa foi recortada assim, e fui muitas vezes para os Estados Unidos nessa época, e a maneira como foi supervisionada a tradução era muito interessante. Tinha um grupo de três: Emily Apter, Jacques Lezra e Michael Wood, e fizemos um seminário juntos na Córsega que durou um bom tempo. Etienne Balibar também se juntou a nós, eu trabalhei com eles para aprender. Porque a cada vez que se avança, compreendo algo do Dicionário que ainda não tinha tematizado. Compreendi ali que era preciso decidir se uma entrada continuaria em francês ou se transformaria em inglês. Eu tinha que entender se o francês servia de metalíngua ou apenas como uma língua entre outras. Se o francês era a metalíngua, seria preciso traduzi-lo na nova metalíngua que ia ser o inglês, mas se o francês era uma língua entre outras, trabalhada em sua singularidade, seria preciso deixar a entrada em francês. Isso implica coisas muito diferentes, e trabalhamos a partir dessa premissa tentando saber o que ia continuar em francês. Por exemplo, a entrada “aimer” [amar], será que deve ser deixada em francês porque o francês pode recobrir philein, agapan, amare, love, like, liebe, ou será que deve ser posta sob love ou sob like ou sob love versus like? Como vamos fazer? Só de se fazer essa pergunta, isso já diz muito sobre cada entrada, sobre a maneira de tratar as coisas. A cada vez isso nos fez refletir de novo, e é isso o que acontece: não é simplesmente que a gente acrescenta ou suprime entradas. Basta pensar, por exemplo, que no Dicionário em inglês tem entradas medievais que desapareceram, porque Emily Apter – que é uma literata e não uma filósofa – achou que não iam interessar a ninguém. Talvez ela tenha razão, ela conhece melhor do que eu o público americano. E aí são acrescentadas coisas esperadas mas que estão faltando – não na minha opinião, é claro – para um público americano. Por exemplo, foi pensado que uma entrada Gender sem a intervenção de Judith Butler não era uma entrada; então pediram para Judith Butler refazer essa entrada. Mas, para mim, na época, não era importante que houvesse uma entrada Gender escrita por Butler. Há uma entrada “gênero” e uma entrada “sexo” diferentes, portanto não era importante.

BLOG: Você sabe quantos Dicionários traduzidos já foram publicados até agora?

B.C.: Sim, até agora tem o inglês, que já está publicado. Tem um volume em árabe. Foi Ali Benmakhlouf que o dirigiu, e ele escolheu o vocabulário político, o vocabulário do direito e da lei por pensar que são os mais interessantes para o mundo árabe. Talvez haja uma continuação, mas, por enquanto, não está na ordem do dia. Depois tem o Dicionário inteiro em ucraniano, que foi feito pedacinho por pedacinho e agora está terminado. Há dois volumes russos; tem o volume romeno que está concluído mas ainda não saiu, que está em revisão há vários anos; tem a tradução brasileira, do qual já saiu um primeiro volume; tem a tradução mexicana, que passou por uma tragédia mas agora está no bom caminho, acredito, e que deve sair. Tem um volume italiano, que está feito e que é o mesmo que o volume brasileiro, mas que não tem editor italiano, só querem fazer uma edição digital, e a Seuil não quer saber disso. Tem que ter também uma publicação em papel. Há várias possibilidades surgindo ainda: a começar pelo hebreu. Já tem duas ou três entradas traduzidas, e estamos fazendo um grupo, mas ao mesmo tempo entra bastante em concorrência com Les Intraduisibles des trois monothéismes [Os intraduzíveis dos três monoteísmos] no qual estou trabalhando agora, e não há força para fazer tudo, acho que é preciso escolher. Acho que é mais interessante fazer os Intraduzíveis dos três monoteísmos com os hebraizantes. Também tem um projeto de Dicionário na Grécia, lá a ideia forte seria a relação entre o grego antigo e o grego moderno, e eu adoraria que se conseguisse fazer isso. Tem um Dicionário chinês-japonês que começa a ser pensado, estão começando a encontrar as pessoas, e existe uma demanda editorial, fui contatada por duas editoras, mas ainda não consegui encontrar as pessoas com quem levar isso a bom termo. E tem a ideia de que se poderia fazer pelo menos um pedaço em várias línguas simultâneas da Índia, que seria interessante que as línguas da Índia entrem em contato por meio disso. Portanto, a cada vez há um motivo diferente para fazê-lo, e entradas novas: para o Brasil, temos “Intradução”, por exemplo. O que uma língua se torna quando ela se torna colonial? O que ela faz? Como ela come, como ela antropofagiza as outras? Esse é um momento muito forte, portanto. Para o hebreu, se fosse feito, seria: qual é a relação entre um hebreu bíblico e um hebreu que devém uma língua da filosofia mas que não é uma? Para a tradução mexicana, a ideia de Carina Basualdo era se perguntar justamente o que era o decolonial. Não sei se essa ideia vai ser mantida pela editora Siglo 21, acho que não. A ideia que preside o vocabulário romeno é o que acontece com o romeno quando não somos mais eslavos, ou seja, quando a religião caiu, e o vocabulário eslavo – que é o vocabulário religioso – é desmonetizado em relação ao vocabulário latino. Como isso se articula? É muito interessante, porque a cada vez são problemáticas que estão em relação com o mundo definido pela língua e pela atualidade da língua.

BLOG: O Dicionário começou de certa forma como a construção de uma ferramenta para a filosofia, mas ganhou um sentido geopolítico muito importante. Ele supera em muito o estatuto de uma simples ferramenta ao ganhar essa dimensão geopolítica. Ao mesmo tempo, foi a sofística que conduziu você ao Dicionário, e o Dicionário à problemática da tradução. Digamos que, quando o Dicionário começou a ser traduzido, a tradução se tornou uma questão muito importante para você. É o que fez você publicar o Elogio da tradução. De repente o tema da tradução também se tornou para você um tema sofístico?

B.C.: Sim, com a noção de performance. No fundo, a gente encontra na tradução os dois termos que me fizeram trabalhar a psicanálise: performance e significante. A partir do momento em que se imagina que uma língua performa um mundo, trata-se de uma maneira de falar no fundo muito antiga, porque remete ao que o romantismo alemão chamava de “visão do mundo”, com este exemplo de performance-material: quando se lança uma rede de pesca num determinado lugar, a certa hora, com determinado tipo de malha, que peixe se pega? Que mundo se fabrica? Que mundo se traz e como se fabrica esse mundo? Foi assim que apareceu agora a tradução, e se pode dizer que a noção de performance é o que liga as noções de tradução, de sofística e de psicanálise. É assim que as três se encontram conjugadas. Há nós que são os intraduzíveis. São pontos de parada, aqueles onde se vê que a performance faz algo. São sintomas da diferença das línguas, porque não os traduzimos, porque não paramos de não traduzi-los. O interesse é que quando a gente para no que bloqueia – e é exatamente como na psicanálise – alguma coisa se passa, algo se abre um pouco. É essa a relação com a performance. Já o significante é ainda outra história.

BLOG: Se você pensa na fórmula da sexuação de Lacan, o lado mulher é o lado do impossível e do contingente. De certo modo, numa análise, é preciso chegar ao impossível, mas é preciso sair dele pelo contingente. É assim que vejo a relação entre o vocabulário e a tradução. O vocabulário é o intraduzível – o impossível de traduzir – o lado mulher-impossível, mas ao mesmo tempo o lado mulher-contingência é o que permite uma saída, vale dizer, o que não cessa de não se traduzir em algum momento cessa de não se traduzir, porque se encontra algum meio, contingente, para traduzir o intraduzível, o impossível. O que acho interessante é que nesses dois trabalhos que você fez, todos os dois estão no lado mulher da lógica da sexuação de Lacan. Trata-se, a meu ver, de um trabalho de mulher filósofa e era preciso uma mulher para fazê-lo. Quando você diz, por exemplo, que o vocabulário é um pouco a sua análise, acho isso muito bem dito. É assim que entendo o seu Elogio da tradução. Você está coordenando a tradução do intraduzível.

B.C.: Sim, você tem razão. Na verdade, estou aterrissando no mundo. Porque quando você é filósofa e filóloga – ainda mais – onde você está? Em que mundo você está? Num mundo de textos. E eu mais do que os outros, porque o grego é verdadeiramente um mundo de textos. Para nós todos, helenistas, é um mundo de textos. Adoro essa língua nesses textos. Hoje estou pousando na terra. É por isso que tenho projetos como o Dicionário dos intraduzíveis, porque é um projeto que me faz pôr os pés no chão. Agora estou aqui, e por isso estou inventando coisas que são verdadeiramente terrestres. E uma delas são as Maisons de la sagesse [Casas da sabedoria, projeto criado por Barbara Cassin, cujo objetivo é criar na França espaços de troca em torno da tradução e da transmissão das culturas.]. O que acontece com a tradução hoje? O que se pode fazer dela? Podemos fazer dela acolhida, inserção, e podemos fazer dela reflexão com os Intraduzíveis dos três monoteísmos. As Maisons de la sagesse são uma candente obrigação contemporânea: o que se faz hoje para que a Terra seja menos inabitável? O que eu posso fazer é isso. E o fiz dando um duro danado porque não é exatamente meu tipo de beleza um TEDx, uma conferência de seis minutos, e não só uma a mais, em Marselha, sobre as Maisons de la sagesse, tentando explicar por que é preciso fazer isso hoje. O evento se chamava Les nouveaux explorateurs [Os novos exploradores], e eu disse que tudo o que eu sabia explorar eram as palavras, e quando se exploram as palavras é isso o que se pode fazer. É verdade que o Dicionário dos intraduzíveis me fez aterrissar, e os projetos que tenho agora são projetos muito concretos, afora o fato de ter dois livros no meu computador que não consigo fazer porque não sei como fechá-los. Mas eles existem. Tem um livro sobre “Homère en philosophe” [Homero como filósofo] e um livro sobre “Quand dire c’est vraiment faire” [Quando dizer é realmente fazer, publicado em Paris, no ano passado, pela editora Fayard]. Mas meu problema agora é que os elementos de um vão parar no outro e os do outro vão parar no um. Não sei como sair dessa.

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