Dia da Consciência Negra: Quem negro foi e quem negro é?

Valter Roberto Silvério - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 20/11/2018


foto de Úrsula Calderón Mateo

por Valter Roberto Silvério

Desde a publicação da pesquisa The Philadelphia Negro: A Social Study, de W. E. B. Du Bois, estudo posterior a sua tese de doutorado intitulada The Suppression of the African Slave-Trade to the United State of America, 1638- 1870, na qual o autor analisa os impactos da supressão do tráfico de escravos para a América, os estudos acadêmicos sobre a presença forçada dos descendentes de africanos no chamado Novo Mundo se expandiram geometricamente e se tornaram cada vez mais complexos em diferentes áreas do conhecimento, com especial ênfase nas Ciências Humanas e Sociais.

O resgate do conjunto da obra de Du Bois, bem como as considerações críticas sobre a sua ausência no currículo de formação em Ciências Sociais e Humanidades, em termos nacionais e gerais, foi analisado em um livro extremamente relevante de Morris (2015), intitulado The Scholar Denied: W. E. B. Du Bois and the Birth of Modern Sociology, como parte de um conjunto mais amplo de questionamentos em relação aos sentidos da construção do conhecimento no interior da modernidade ocidental. Em uma aproximação superficial, esses questionamentos se dirigem aos seguintes aspectos: 1) a necessidade de uma imaginação sociológica que posicione o colonialismo como constitutivo da modernidade e a condição pós-colonial como um fato central de análise da globalização; 2) o significado da racialização do negro e da África na construção do conhecimento sobre os não europeus como constitutiva do constructo iluminista; 3) as limitações da sociologia clássica imputadas pela sua origem (europeia) e condicionadas pelos desenvolvimentos da hegemonia ocidental sobre o resto do mundo; 4) o limites das perspectivas orientadas pela ideia de múltiplas modernidades enquanto capacidade de aprofundamento crítico do lugar do colonialismo na constituição da modernidade.

Du Bois é um entre vários outros intelectuais ativistas a partir dos quais seria possível traçar uma linha de continuidade nas preocupações sociais e nas lutas políticas travadas por intelectuais e ativistas negros, ao menos desde meados do século XIX. Eles, de modo geral, mesmo em condições extremamente adversas, criaram jornais, periódicos, revistas e associações com diferentes propósitos, dando origem ao que tem sido nomeado na literatura como transnacionalismo negro.

A questão central da qual nos ocuparemos é, precisamente, traçar um percurso para responder a questão que dá título ao capítulo, que é a seguinte: “Quem negro foi e quem negro é?”. Para tanto, o texto transita por uma dada compreensão do que a literatura tem denominado de transnacionalismo negro, ressaltando de forma breve as implicações para a sociologia colocadas pelo uso de termos como Atlântico Negro, sistema atlântico, diáspora africana e/ou negra.

Transnacionalismo negro

Não há uma resposta específica para a pergunta anterior, no entanto, a grande repercussão do livro The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness (Gilroy, 1993, 2001) pode ser um marco importante de retomada de alguns temas e problemas e, ao mesmo tempo, um olhar distinto ou uma nova interpretação para o lugar dos negros e/ou descendentes de africanos na constituição do Novo Mundo. Na análise de Gilroy, o Atlântico Negro representa a história dos movimentos de imigração forçada da população africana para a Europa, o Caribe e as Américas, e fornece uma lente através da qual se pode ver alguns percursos de formação de ideias sobre nacionalidade e identidade. Assim, no Atlântico Negro o foco é no comércio intercontinental e nas viagens, nos processos de conversão e conquista e nas formas resultantes de crioulização e hibridização que ocorre(ra)m.

Embora haja inúmeras críticas ao texto de Gilroy (por exemplo, a ênfase na agência e no lugar de enunciação sem a correspondente ênfase na estrutura), duas ordens de questões permanecem consensuais desde então, a saber: a análise do Atlântico como um sistema de trocas, circulação e produção cultural e de bens, e a centralidade da África na sua constituição. Alguns teóricos asseveram que para uma compreensão do impacto da presença africana no mundo é necessário, também, analisar o Índico e o Pacífico.

Se, por um lado, as análises reconhecem a contribuição dos descendentes de africanos na construção e manutenção do continente americano, inclusive intitulando as Américas como negras (Bastide, 1969), por outro lado, o modo como o conteúdo e a forma daquela construção e manutenção foi significado sofreu variações nas análises das disciplinas das Ciências Sociais e das Humanidades; tanto pelas distinções macro disciplinares, por exemplo, Ciências Sociais e Ciências Humanas (Stephens, 1998), quanto pela localização geográfica da produção disciplinar e, também, com base nas relações das ex-colônias com as metrópoles. Dito de outra forma, a construção de um conhecimento sobre o negro sempre esteve condicionada às relações de poder político.

A literatura recente, que discute o negro como grupo-chave para a compreensão do sistema atlântico, tem como pressuposto que no espaço territorial denominado “continente americano”, mais do que contradições, as políticas metropolitanas e/ou as alianças entre elites políticas metropolitanas e elites políticas crioulas geraram articulações duráveis, deslocando os termos pelos quais concebemos os arranjos normativos nos Estados republicanos que se intitulam, e/ou são considerados, liberais democráticos. Olhando em perspectiva, o problema parece menos da teoria e mais da política de produção do conhecimento, pois os ativistas e intelectuais negros denunciavam, mesmo correndo o risco de eliminação física, a forma de tratamento dispensada aos social e politicamente construídos como negros. Como se pôde observar na agenda temática da primeira Conferência Mundial Pan-Africana realizada em 1900, em Londres, com a participação de africanos, caribenhos e norte-americanos, foram tratados temas como história, cultura, discriminação racial e ausência efetiva de poder para os africanos e seus descendentes no Novo Mundo.

A conferência tornou-se um marco importante, tanto como o primeiro encontro a demarcar um novo tipo de ativismo dos descendentes de africanos quanto pela reflexão teórica e política que a partir dela tem constituído um tipo específico de ação coletiva organizada que deu origem ao que estamos denominando transnacionalismo negro.

Dessa maneira, o ativismo político transnacional negro teve como primeira e fundamental atividade o desenvolvimento de uma leitura geopolítica da racialização em suas distintas modalidades imperiais-nacionais, o que resultou, por um lado, na construção intranacional de estratégias de preservação da vida e de aquisição do direito a ter direitos e, por outro lado, numa narrativa comum que articulou, ao mesmo tempo, a experiência de negação da humanidade e a discriminação racial de que africanos e seus descendentes eram alvos em contextos nacionais distintos. Desse modo, a origem africana era a única identificação comum, seja pela negação, seja pela afirmação.

A reconstrução e significação da África e sua origem foram condicionadas principalmente à extensão da opressão racial e ao sentimento de negação da possibilidade de convivência com a diferença cultural e fenotípica, orientando, portanto, práticas excludentes institucionalizadas (legislação e políticas públicas) e não institucionalizadas (extermínio físico). Além disso, o grau/capacidade de construção de uma estrutura de sentimento comum frente a diferenças de origem étnica entre africanos e seus descendentes (que conviviam em um mesmo território) e de racialização em contextos nacionais distintos, expressos por arranjos ideológicos cultural e politicamente assimilacionistas (política do café com leite, democracia étnica e/ou racial, contínuo de cor) ou expressamente segregacionista (sistema legal Jim Crow nos Estados Unidos, apartheid) também podem ser considerados fatores condicionantes.

Nesse sentido, é interessante observar que todas essas práticas ocorriam no interior de sociedades supostamente orientadas por valores humanistas. De acordo com Lin (1997, p. 134), o humanismo ocidental, que floresceu pela primeira vez no Renascimento, se caracterizou sempre como a luta para posicionar o ser humano no centro do universo e defendê-lo contra qualquer segunda força, seja ela teológica, natural, social ou cultural. Uma das características distintivas dessa luta foi o projeto pós-renascentista de construir um ser humano independente e autossuficiente, um projeto historicamente institucionalizado que percorreu um percurso da reforma através do Iluminismo até a pós-modernidade. Ao construir a subjetividade absoluta, muitos pensadores ocidentais pós-renascença têm se preocupado em afastar as forças que incidem sobre a subjetividade e a autonomia do indivíduo.

É nos meandros desse caminho que se pode compreender como o colonialismo construiu o Outro enclausurado em si mesmo, que deveria ter como projeto tornar-se europeu. É no interior dessa complexidade de experiências que é possível uma resposta à primeira parte da questão que dá título ao capítulo, isto é: “Quem negro foi?”.

Quem negro foi? Teorias racialistas da modernidade

Negro (black, noir, etc.) foi, ao mesmo tempo, uma tentativa de apagamento da diferença étnica entre os não europeus de modo geral, em especial os descendentes de africanos, e de construção de uma identidade coletiva negativa, inferiorizante, portanto, colonizadora e construtora de um Outro mitologicamente sem história e sem cultura. A eficácia da construção narrativa do colonizador em relação ao ser negro como ausência, ou negação de uma humanidade comum, tem inspirado inúmeras reações dos intelectuais e ativistas, em diferentes lugares do mundo, em especial no mundo atlântico, a constituírem ontologias que tentam articular o passado negado e a experiência presente.

A ontologia da experiência de negação orienta-se pela reconstrução de uma origem essencialmente negra, no sentido de se encontrar em um passado imemorial, uma essência puramente africana e/ou “racial” que dê sentido à existência. Já a ontologia do ser assimilado, crioulizado, hibridizado faz parte de um processo de nomeação da experiência que admite interações sociais entre colonizadores (superiores) e colonizados (inferiorizados) que se constituiu em base empírica para o estabelecimento das ideologias nacionais. Quando se considera as distinções constitutivas de cada um desses termos é possível afirmar que as ontologias do ser negro realizadas por intelectuais e ativistas foram mediadas pela forma “raça”, na chave da racialização, sendo também tensionada/questionada no interior das ideologias nacionais do Novo Mundo.

Por exemplo, o termo negro no Brasil pode significar tanto a origem africana comum de pretos e pardos quanto a posição similar que ocupam na estrutura de estratificação social. No primeiro caso, negro é uma construção eminentemente política para a constituição de uma narrativa e agência comum; no segundo caso, uma descrição estatística que desvenda, ou pode desvendar, os impactos da discriminação racial nas oportunidades existentes em uma sociedade organizada hierarquicamente por cor/raça.

No entanto, a condição negra de hoje não é a mesma da virada do século XIX para o XX, momento no qual os intelectuais e ativistas negros tiveram que lidar com o que se pode denominar de “humanismo colonial”. Mulheres e homens vivenciaram em seus respectivos contextos um momento em que enxergavam a possibilidade da integração social do negro recém-saído da escravidão por meio da educação, do acesso à terra e ao trabalho urbano. Entretanto, depararam-se com uma construção científica estruturada e a serviço do colonialismo, centrada na raça que os posicionava no mundo da natureza, o que se pode observar no longo processo levado a cabo pelos interesses do império inglês expressos desde a exigência de supressão do tráfico de escravos até a independência das colônias no Caribe.

As consequências da ação da coroa inglesa, no contexto da época analisada por Adams (1925) no processo de abolição da escravatura no Brasil, deixam evidentes que as justificativas morais eram parte de uma geopolítica econômica e hegemônica mais ampla do Reino Unido, como também demonstrou Du Bois (1896) em sua tese anteriormente mencionada.

A análise da legislação composta por atos, emendas, leis, compromissos, tratados etc., feita por Du Bois entre 1638-1870 para o caso norte-americano, e no caso brasileiro, como demonstra o texto de Adams (1925), para o período que se estendeu de primeiro de janeiro de 1808, data oficial do encerramento do tráfico pela Inglaterra e, coincidentemente, da proibição do tráfico estrangeiro de escravos para os Estados Unidos, não deixa dúvidas do tipo de interesses políticos e econômicos que estavam em jogo tanto em relação à extinção (coroa inglesa) quanto à manutenção do tráfico (império português, governo brasileiro depois de 1822).

No entanto, a dimensão moral do debate desvenda como os termos negro/raça/africano são evocados de forma intercambiável e sempre em referência a uma diferença que os remete a uma situação de inferioridade na escala da humanidade. A definição de raça estabelecida pela Real Academia Espanhola em seu dicionário é exemplar dos seus usos e significados pelo poder colonial. De origem latina radia, de radius, aparece com sete significados no referido dicionário, entre os quais nos interessa o segundo: “Cada um dos grupos em que se subdividem algumas espécies biológicas e cujas características diferenciais se perpetuam por herança”. 5 Essa definição, que durante o século XIX impregnou o pensamento social por meio da antropologia física, passou a ser entendida como parte de um sistema de classificação por meio do qual se pretendeu ordenar e interpretar as diferenças visíveis – fenotípicas e socioculturais – da espécie humana.

O termo raça não foi gestado exclusivamente no âmbito científico, como demonstra o seu primeiro significado no mencionado dicionário – “casta calidad del origen o linaje”. Relacionando o termo ao livro de Gênesis, ele se refere aos três filhos de Noé – Sem, Cam e Jafet –, que na versão bíblica teriam dado origem às três raças: branca, negra e amarela. Nessa concepção, o conceito de raça remete a uma dada comunidade, com um imaginário particular, a qual dá forma a uma série de discursos de origem, os quais permitem pensar e assumir suas raízes comuns e suas diferenças em relação a outras comunidades. Assim, a ideia de raça, para além de seus significados acadêmicocientíficos, tornou-se de uso generalizado com inúmeras conotações que também permitem pensá-la como referida à “qualidade de algumas coisas, em relação a certas características que as definem”. Pode-se deduzir que, do ponto de vista ideológico, certos grupos se pensam, e pensam os outros, a partir da descrição de diferenças observáveis, definindo qualidades e atribuindo valores em detrimento de outros valores e qualidades por considerá-los indesejáveis, contribuindo para o processo de sua estigmatização.

Ao trabalhar com Stuart Hall, aprendemos que a ideologia diz respeito aos referenciais “mentais – linguagens, conceitos, categorias, conjunto de imagens do pensamento e sistemas de representação – que as diferentes classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e tornar inteligível a forma como a sociedade funciona” (Hall, 2003, p. 267). Para o autor, o problema da ideologia é concernente às formas pelas quais ideias diferentes tomam conta das mentes das massas e, por esse intermédio, se tornam uma “força material”. Sendo assim, a teoria da ideologia nos ajuda a compreender como “os conceitos e linguagens do pensamento prático que estabilizam uma forma particular de poder e dominação; ou que reconciliam e acomodam as massas em seu lugar subordinado na formação social” (p. 267) operam em processos de (res)significação de sujeitos colonizados/racializados.

Em relação às ideologias raciais, para além das teorias racialistas, elas podem fornecer o mapa de posições e relações sociais existentes em um contexto histórico preciso (incluindo as relações de dominação), as quais serviram de justificativa para as mais diversas formas de subordinação. No caso brasileiro, é visível a influência exercida pela ideia de que somos uma “democracia racial”, que nos iguala simbolicamente em termos de uma mistura genética e cultural e, também, que nos hierarquiza em termos cromáticos nas relações sociais cotidianas, posicionando os indivíduos não brancos em uma escala de qualidades e valores observáveis nos postos que eles ocupam, por exemplo, no mercado de trabalho.

[…]

Quem negro é? Diáspora africana e política negra

Em um texto publicado na Revista Matriz de novembro de 2010 intitulado “Quem tem medo da palavra negro”, Cuti, um dos grandes escritores negros da diáspora africana no Brasil, questiona o uso dos termos afro-brasileiro e afrodescendente, os quais, segundo o autor, passaram a ser usados, em especial nos meios acadêmicos, com objetivos contrários aos interesses do movimento negro. O argumento central do autor é o seguinte:

Focalizando o Brasil, último país a abolir a escravização (esse dado é importante!), vamos encontrar os próprios negros assumindo a palavra no seu aspecto positivo, para nomear o seu movimento de reivindicação de plena cidadania. Já em 1930, em São Paulo, um movimento que se tornou partido político por curta duração chamou-se Frente Negra Brasileira. E assim outras tantas organizações de antes e posteriores traziam em seus nomes a palavra “negro”. Na década de 40, em Paris, estudantes negros das Antilhas e da África haviam fundado o Movimento da Negritude. Na década de 60, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos da América empregou a palavra “black”, cuja versão, no contexto social brasileiro, é “negro” e não preto como querem alguns. Ou seja, este assumir a palavra “negro” pelos próprios negros não é recente, nem tão pouco local. Tendo a palavra em foco servido para ofender, no momento em que o ofendido a assume, dizendo “Eu sou negro”, o que ocorre é que ele dá a ela um outro significado, ele positiva o que era negativo. Aqui acontece algo estranho para quem ofende. Se a palavra perde o poder de ofender, ele, o ofensor, perde um instrumento importante na prática (discriminação) e na manutenção psíquica (o preconceito) do racismo. Por outro lado, a palavra “negro” não deixa em paz, por trazer em sua semântica a histórica opressão escravista e colonialista, e desafia a convicção em que se baseia a doença psíquica do racismo (Cuti, 2010, p. 5).

Não creio que haja consenso, nos dias que se seguem, em torno da posição assumida por Cuti (2010) no que se refere ao sentido e significado e/ou mesmo à capacidade que a palavra “negro” tem no desvendamento do complexo processo de produção e recriação da cultura racista no Brasil, ou em qualquer outra parte do mundo. Como ele mesmo reconhece, existe no próprio país grupos que utilizam a identificação como “preto”, e eu não creio que a substituição de “negro” por “preto” seja de tradução incorreta, e sim de discordância e/ou diferenciação na forma da agência, o que é plenamente compreensível em termos de mudanças do contexto e nas visões geracionais distintas de como enfrentar o problema da discriminação racial e do racismo. No entanto, a posição do autor é ilustrativa das divergências entre os intelectuais africanos e da diáspora na interpretação dos textos de Fanon, em especial Pele negra, máscaras brancas.

Sem dúvida, a palavra “negro” representa para muitos um momento fundamental da política negra no interior dos estados nacionais formados na segunda onda, refletindo tanto os obstáculos à integração dos descendentes de africanos quanto permitindo a leitura das estratégias de luta desenvolvidas pelos movimentos sociais e indivíduos racializados desde a segunda metade do século XIX.

Todavia, o que a ampla literatura sobre o tema sugere é que tem ocorrido um deslocamento de um paradigma da ausência para um paradigma da agência, proporcionado especialmente pelos estudos subalternos indianos, os estudos culturais, os estudos pós-coloniais e os estudos decoloniais. Estes têm permitido diferentes tipos de descentramento do nosso olhar, a saber: a) o lugar dos subalternos – de passivos a ativos desenvolvedores de estratégias que vão da pura e simples manutenção da vida à organização de revoltas e rebeliões; b) o lugar da festa e da dança como formas de resistência; c) a construção de sociabilidades alternativas desconsideradas pela opinião pública. Para tanto, o conceito de diáspora tem sido acionado por diferentes autores (Gilroy, 2001, 1993; Hall, 1990) para pensar os deslocamentos tanto geográficos quanto culturais dos africanos e seus descendentes.

A ideia da diáspora africana tem permitido uma ampla revisão nos pressupostos que orientaram a produção do conhecimento no interior da modernidade de modo geral e, em especial, em relação aos africanos e seus descendentes espalhados pelo mundo. Como?

1. Por releituras dos movimentos abolicionistas e do lugar dos negros no interior das nações;
2. Pela luta política específica da população e pela proposição de alternativas organizacionais para conquista do direito negado de tratamento igualitário tanto por meio de instrumentos jurídicos quanto por cerceamentos não legais inscritos nas práticas cotidianas;
3. Pela ressignificação da origem africana por meio da reconstrução/ recriação (imaginária) de uma comunidade afetiva simbolizada no pertencimento ancestral à África.

Concluindo: agora nós podemos dizer quem queremos ser?

A frase que dá o título ao presente texto foi pronunciada em uma entrevista de Emanoel Araujo dada ao El País, em fevereiro de 2016, considerado um dos principais jornais espanhóis. A frase expressa as mudanças que estão em curso na reconstrução da história dos descendentes de africanos no Brasil. Araujo fundou o Museu Afro Brasil, em 2004, e atualmente é seu curador. Segundo ele, o museu tem a missão de “resgatar a história e a memória daqueles que foram esquecidos ou são pouco lembrados pela história oficial”. A justificativa do idealizador é central, bem como o prefixo afro, para se entender a dimensão transnacional da luta dos descendentes de africanos dispersos pelo mundo e, ao mesmo tempo, nos obriga a revisitar a polêmica em torno da herança, cultura e diáspora africana na contemporaneidade, em especial no tocante a experiência dos socialmente construídos como negros.

A começar pelo título da reportagem/entrevista, “Viagem às raízes do Brasil negro”, o convite pode ser entendido no sentido de que tais “raízes” não são suficientemente conhecidas, são pouco lembradas ou até mesmo invisíveis. Por outro lado, a existência de um “Brasil negro” não entraria em profundo contraste, ou mesmo contradição, com a ideia “Brasil mestiço, moreno”?

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Os trecho acima foi retirado do livro Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico, lançamento da Autêntica Editora.

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