Dez vezes Maduro

Leonardo Coutinho - Publicado na categoria Nossos Autores em 18/05/2018


Crédito: Divulgação

Um dos sinônimos mais comuns para eleições é a expressão "festa da democracia". Isso se deve ao fato de que a manifestação da vontade popular seria o gesto maior de vigência democrática. Mas o voto não é único e nem o maior indicativo de que uma democracia está em pleno vigor. Pelo contrário. A forma como o processo é conduzido pode ser o indicativo de como a população vive sob regimes autocráticos que se valem das urnas para imprimir o verniz da democracia. O Brasil foi submetido a duas ditaduras em momentos distintos do século XX. A mais recente delas, a militar (1964-1985) durou 21 anos.

Durante esse período, os brasileiros ficaram proibidos de eleger o presidente. Mas a cada dois anos, a população era convocada a ir às urnas para escolher seus representantes legislativos. Em 1982, já na reta final do regime militar, foi realizada a primeira eleição direta para governador. Isso, entretanto, fez com que o período que os militares tomaram o poder no Brasil deixasse de ser ditadura?

No próximo domingo, os venezuelanos irão às urnas novamente. A 21º vez em duas décadas de chavismo. Desde que Hugo Chávez foi eleito em 1998 a população foi convocada ou para validar atos do governo (como mudanças da Constituição), ou para eleições duvidosas sempre marcadas por suspeitas de fraude. Dentro e fora da Venezuela, os apoiadores do chavismo rebatem. E comemoram o fato de que nenhum país da história recente realizou tantas eleições e referendos como os venezuelanos.

A overdose de "democracia" chavista acabou por matar a democracia no país. E aqui não se trata de fazer um jogo com o conceito do filósofo político Norberto Bobbio, ou sequer supor que efetivamente o chavismo sob Chávez ou Nicolás Maduro prezou pela vontade popular em todas as eleições. Pelo menos no início, é possível afirmar que Hugo Chávez acreditou que o voto legitimaria todos os seus atos. Ele havia sido eleito legitimamente e no mesmo dia da posse assinou um decreto convocando um plebiscito para uma nova Constituição, que viria a ser aprovada por 71% dos eleitores.

Mas o modelo de Chávez se exauriu e seu afeto pela vontade popular também. Em 2004, o chavismo puniu com demissão funcionários públicos que votaram contra o governo em um referendo sobre a continuidade ou não do presidente no poder. O sigilo do voto havia sido violado e o governo não fazia questão de esconder. Camelôs de Caracas e das principais cidades do país vendiam pelas ruas a base de dados.

Com medo da perseguição, no ano seguinte, nada mais nada menos que 75% dos eleitores não compareceram às eleições legislativas. A única forma que os cidadãos encontraram para garantir que não seriam perseguidos por suas preferencias eleitorais era não votar. Na Venezuela, o voto não é obrigatório.

O chavismo então se reinventou. Criou um modelo de fraude indetectável nas recontagens de votos. Os venezuelanos modernizaram o conceito de voto de cabresto bastante conhecido no Brasil.

Com acesso direto e em tempo real ao registro de votantes, o governo tem o poder de acionar milhares de militantes pagos instalados nos colégios eleitorais estratégicos. Quando passa o horário do almoço, funcionários públicos e beneficiários de programas sociais recebem a visita de um desse motorizados, como são chamados esses agentes do governo, por se deslocarem em motos pela cidade. A abordagem é precisa. Quem ainda não votou é coagido a votar. Apesar de não existirem evidências recentes de que o governo segue violando o sigilo de voto, ninguém se atreve a pagar para ver. Uma forma de fraude indetectável, já que as recontagens de voto sempre confirmarão o resultado.
Na eleição do domingo 20 de maio de 2018, Nicolás Maduro deverá ser confirmado para o seu segundo mandato à frente do país. A maioria dos políticos de oposição se recusou a participar do processo que consideram viciado. O único opositor a topar a enfrentar Maduro foi o ex-chavista Henri Falcón. O candidato tem sido acusado de exercer um papel funcional para o regime, legitimando a participação em uma disputa de cartas marcadas. Falcón se defende dizendo que a população quer mudança e ele não pode deixar os cidadãos sem um candidato.

A reeleição de Maduro poderá vir acompanhada pela recomposição dos preços do petróleo, que têm dado sinais de alta e pode manter essa tendência segundo projeções de especialistas. Com a recomposição da receita petroleira, o presidente ganhará mais que sobrevida em um país onde a inflação acumulada em doze meses chegou a 8.878,1%, em abril deste ano; de onde mais de 4 milhões de pessoas já fugiram; e a fome provocada pelo desabastecimento já levou a população a perder em média onze quilos no ano passado.

A eleição deste domingo não terá nada de festivo na colapsada Venezuela. As fotos publicadas na cédula eleitoral refletem com precisão o teatro que foi armado. A foto de Maduro se repete dez vezes, no espaço correspondente aos partidos da coligação. No papel de opositor, Falcón, com quatro partidos; e outros três candidatos "independentes". Presos no labirinto do chavismo, os venezuelanos podem boicotar as eleições, como em 2005, quando três em cada quatro eleitores não compareceram para votar. Mas para Maduro, pouco importa. A festa que ele tem programada não tem nada a ver com democracia.

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Leonardo Coutinho é jornalista e autor do livro Hugo Chávez – O espectro .

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