Coronavírus levou Itália à vida suspensa entre medo e esperança

Domenico de Masi - Publicado na categoria Nossos Autores em 19/03/2020


Domenico De Masi é um dos pensadores mais conhecidos da atualidade e um dos nomes estrangeiros mais vendidos no mercado brasileiro. Criador do conceito de ócio criativo e autor, entre muitos outros livros, de O mundo ainda é jovem, publicado pela Editora Vestígio, o italiano continua nos surpreendendo com reflexões sobre nossas relações com o trabalho e outras questões pungentes da atualidade.⁠

Neste artigo, escrito com exclusividade para o jornal O Globo e publicado no último sábado (14/03), De Masi fala sobre os impactos do Coronavírus (Covid-19) na Itália, um dos países mais afetados pela doença até o momento, e também sobre as transformações da vida em sociedade após o fim da pandemia.

Leia abaixo o artigo na íntegra (reproduzido com autorização do jornal O Globo e do autor).



Coronavírus levou Itália à vida suspensa entre medo e esperança


Na Itália, a pandemia se manifestou em quatro etapas: a primeira é de descrença; a segunda é de grande caos; a terceira é espectral; a quarta é o acomodamento da resignação.

Muitas vezes, ao longo dos anos, notícias de tsunamis, terremotos ou incêndios chegaram até nós de longe, mas esses foram desastres circunscritos aos locais desafortunados onde eles aconteceram, sem se espalhar para o resto do planeta e, portanto, sem nos ameaçar diretamente. Já as notícias desta epidemia, mesmo que o seu distante surto tenha ocorrido em Wuhan, na remota província chinesa de Hubei, foram perturbadoras por serem expansivas.

No entanto, enquanto a televisão nos ofereceu as imagens, continuamos estupidamente seguros de que o vírus nunca chegaria a nós.

A atitude mudou quando ele pousou em nosso continente, com o nome misterioso de Covid-19, aterrissando em uma região e uma cidade em nosso país.

Então o caos começou. O perigo, que se tornou iminente, afetou gradualmente nossas certezas e cancelou nossos pontos de referência. O governo, diante de uma situação inesperada, mas interessado em salvaguardar seu consenso político, tentou minimizar o perigo, mas, diante do crescente número de infectados e mortos, proibiu voos da China e decretou a interrupção de aulas em escolas e universidades.

A partir desse momento, os médicos passaram para o centro das atenções. Começaram a ocupar um espaço crescente no noticiário e nos debates televisivos, influenciaram nas decisões dos políticos, e condicionaram os cidadãos com suas previsões às vezes tranquilizadoras, mais frequentemente preocupadas. As informações se sobrepunham, contraditórias e confusas. As mídias sociais criaram uma densa rede de fake news, na qual notícias graves se entrelaçaram com reações infantis e comentários irônicos.

Enquanto isso, o vírus estava se aproximando cada vez mais da nossa casa; o número de pessoas infectadas e mortas cresceu à nossa volta. Incerteza e caos invadiram todas as organizações. Se antes as decisões do governo eram criticadas por serem muito restritivas, agora eram criticadas por serem muito brandas. E em todo lugar leis muito rigorosas eram invocadas para bloquear toda a vida do país e, com isso, a expansão do vírus.

Neste ponto, a terceira etapa começou. O chefe de governo apareceu simultaneamente em todas as televisões e anunciou o estado de emergência máxima: todos os locais públicos, cinemas, teatros, restaurantes, bares, lojas de todos os tipos fechados, exceto farmácias e mercados que vendem alimentos. Ninguém pode sair de casa e as patrulhas policiais punem severamente quem desobedece a essas ordens.

Como primeira reação, com duração de apenas uma noite, milhares de pessoas fugiram para encontrar parentes em outras cidades ou para se refugiar em casas de campo. Os aeroportos, estações ferroviárias e metrôs também foram fechados. O país inteiro parou; toda rua, toda praça permaneceu vazia e silenciosa.

Assim começou uma vida suspensa entre medo e esperança, totalmente diferente do que nos acostumamos nos anos anteriores, quando todos saíam de casa pela manhã e voltavam à noite.

As relações entre pais e filhos eram passageiras; crianças, jovens e velhos, cada um teve sua própria vida, separados um do outro; metade da cidade, cheia de fábricas e arranha-céus, estava vazia à noite; a outra meia cidade, cheia de dormitórios, estava vazia durante o dia. Agora todos são forçados a viver juntos: até casais em crise, até famílias nas quais o diálogo entre pais e filhos era inexistente.

Mas, em poucos dias, teve início uma quarta fase, tipicamente italiana: todos os que eram capazes começaram o home office – e agora o smart working permite que funcionários e gerentes continuem suas atividades; a televisão e o rádio ofereceram programas criados de improviso para entreter crianças e informar adultos; professores e alunos retomaram via internet suas atividades educativas; museus permitem visitas virtuais; os jovens prestam ajuda aos idosos que moram sozinhos; atores e músicos transmitem à distância declamações de poemas e execuções de peças musicais de suas casas; cantores cantam das janelas para o benefício dos vizinhos.

Graças ao Skype, que se tornou o principal meio de comunicação, os jovens praticamente retomaram virtualmente a vida noturna e os idosos se encontram praticamente na hora do chá.

A grande filósofa Agnes Heller dividiu as necessidades humanas em duas categorias: as quantitativas e alienadas; e as qualitativas e radicais. As primeiras consistem nas necessidades insanas de dinheiro, poder e posse de bens; as segundas consistem em necessidades saudáveis de introspecção, amizade, amor, brincadeira e convívio.

Nesta fase de isolamento forçado, após uma vida transcorrida em nome de necessidades alienadas, todo o país está redescobrindo a prioridade das necessidades radicais e a suavidade de um tempo dedicado a nós mesmos e à nossa família: o tempo do ócio criativo.

Mas, por trás desta habitação quase serena à sedentariedade forçada, se insinua cada vez mais inquietante o medo do amanhã. O país inteiro está parado; as fábricas estão quase todas fechadas; por alguns meses, nosso produto bruto estará próximo de zero e o futuro, com a tempestade encerrada e os mortos sepultados, terá que ser inventado, nunca tendo sido experimentado antes o que significa, para um povo inteiro, consumir sem produzir.

Essa diminuição do consumismo compulsivo que poderíamos ter planejado intencionalmente e gradualmente será imposta a nós por um inimigo invisível e mortal.

No entanto, quando este desastre, como aparentemente deve ocorrer, for superado, quando finalmente festejarmos o momento suspenso em que é finda a angústia e ainda não está claro o porvir, quando tentarmos esquecer assim que possível o período que acabou de passar, inéditos e impotentes, talvez tenhamos aprendido que nem mesmo o medo da morte pode estabelecer igualdade entre os homens, mas que o afeto humano continua sendo nossa única salvação.

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