As ondas, de Virginia Woolf - interlúdio VIII

Tomaz Tadeu | Virginia Woolf - Publicado na categoria Palavra da Editora em 03/02/2021


Até o lançamento de As Ondas, previsto para o primeiro semestre de 2021, publicaremos, semanalmente, os nove trechos que Virginia chamava, em seu diário, de “interlúdios”, nos quais uma voz narrativa descreve o movimento do sol desde a madrugada até o anoitecer e uma série de eventos associados a cada um de seus estados. A tradução é de Tomaz Tadeu.


interlúdio VIII

O sol declinava. A rocha dura do dia estava rachada e a luz jorrava por suas estilhas. Vermelho e ouro disparavam através das ondas, em setas rápidas, repetidas, emplumadas de escuridão. Erraticamente, raios de luz faiscavam e serpenteavam, como sinais vindos de ilhas submersas, ou como dardos arremessados por entre bosques de loureiro por garotos impudentes, travessos. Mas as ondas, à medida que se aproximavam da praia, estavam privadas de luz, e caíam, num só e longo baque, como uma parede caindo, uma parede de pedra cinza, impérvia a qualquer frincha de luz.

Uma brisa se levantava; um arrepio passava por entre as folhas; e assim estremecidas elas perdiam sua densidade castanha e se tornavam cinza ou brancas à medida que a árvore deslocava sua massa, tremulava e perdia sua uniformidade de abóbada. O falcão, equilibrado no ramo mais alto, bateu as pálpebras e subiu e planou e voou para bem longe. A tarambola selvagem gritava nos brejos, fugindo, dando voltas, e gritando mais longe, só. A fumaça dos trens e das chaminés se espalhava e se rompia e se tornava parte do felpudo dossel que pendia sobre o mar e os campos.

Agora o trigo fora ceifado. Agora apenas um restolho rígido era tudo o que restava de sua ondulação e de seu balanço. Lentamente uma coruja grande se lançou do olmo e oscilou e se elevou, como que sobre uma linha que tivesse baixado, ao alto do cedro. Sobre as colinas, as vagarosas sombras, ao passarem por cima, ora se alargavam, ora se encolhiam. A poça no topo do matagal jazia imperturbável. Nenhum rosto peludo se mirava ali, nenhum casco chapinhava na superfície, nenhum focinho encalorado fervia na água. Um pássaro, empoleirado num graveto cinzento, bebericava um bico inteiro de água fria. Não havia nenhum som de colheita, e nenhum som de rodas, mas apenas o repentino uivo do vento deixando suas velas se inflarem e varrendo o topo das gramas. Um osso se estendia no chão, escavado pela chuva e alvejado pelo sol até reluzir como um graveto que o mar polira. A árvore, que tinha se inflamado de um castanho avermelhado na primavera e em pleno verão tinha curvado suas flexíveis folhas na direção do vento sul, estava agora preta como ferro, e igualmente nua.

A terra firme estava tão distante que nenhum telhado brilhante ou janela reluzente podia mais ser vislumbrado. O tremendo peso da terra escurecida tinha engolfado obstáculos tão frágeis como esses, empecilhos tão frágeis quanto conchas de caracol como esses. Agora havia apenas a sombra líquida da nuvem, o açoite da chuva, uma única lança dardejante de luz solar, ou o repentino golpe da tempestade de chuva. Árvores solitárias, feito obeliscos, assinalavam as colinas longínquas.

O sol do entardecer, cujo calor se dissipara e cujo foco de intensidade abrasadora se difundira, tornara as poltronas e mesas mais suaves, engastando-as com losangos de castanho e amarelo. Listradas de sombras, seu peso parecia mais imponente, como se sua cor, enviesada, tivesse escorrido para um dos lados. Aqui se apresentavam faca, garfo e cálice, mas alongados, inchados, e convertidos em portentosos. Marginado por um círculo dourado, o espelho mantinha a cena imóvel como se fora sempiterna aos seus olhos.

Entrementes, as sombras se alongavam sobre a praia; a escuridão se aprofundava. A bota preta como carvão se transformou numa poça de um azul profundo. As rochas perdiam sua dureza. A água em volta do barco velho estava escura como se mexilhões tivessem sido imersos nela. A espuma empalidecera e deixara aqui e ali um clarão branco de pérola sobre a areia nebulosa.


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