As ondas, de Virginia Woolf - interlúdio VII

Tomaz Tadeu | Virginia Woolf - Publicado na categoria Palavra da Editora em 27/01/2021


Até o lançamento de As Ondas, previsto para o primeiro semestre de 2021, publicaremos, semanalmente, os nove trechos que Virginia chamava, em seu diário, de “interlúdios”, nos quais uma voz narrativa descreve o movimento do sol desde a madrugada até o anoitecer e uma série de eventos associados a cada um de seus estados. A tradução é de Tomaz Tadeu.


interlúdio VII

O sol agora declinara mais no céu. As ilhas de nuvem tinham adquirido densidade e passavam pela frente do sol de modo que as rochas de repente ficavam negras, e o tremulante cardo-marinho perdia seu azul e virava prata, e as sombras se enfunavam como roupas cinza sobre o mar. As ondas não visitavam mais as poças distantes nem chegavam à linha preta pontilhada que se estendia, irregularmente traçada, sobre a praia. A areia era de um branco perolado, lisa e reluzente.

Os pássaros mergulhavam e circulavam alto no ar. Alguns se precipitavam nos sulcos do vento e mudavam de direção fatiando-os transversalmente como se fossem um único corpo fracionado em mil tiras. Os pássaros caíam como uma rede, aterrizando na copa das árvores. Aqui um pássaro, tomando sozinho seu rumo, bateu asas em direção ao charco e pousou solitário num mourão branco, abrindo e fechando as asas.

No jardim algumas pétalas tinham caído. Elas se estendiam em forma de concha sobre a terra. A folha morta não se sustentava mais em sua haste, mas tinha sido soprada, ora rolando, ora parando, na direção de algum caule. A mesma onda de luz passava pelo meio de todas as flores com repentina pompa e circunstância como uma barbatana que fendesse o espelho verde de um lago. De vez em quando alguma rajada rasa e magistral de vento levantava e assentava as inumeráveis folhas e então, à medida que o vento enfraquecia, cada folha recobrava sua identidade. As flores, inflamando seus brilhantes discos sob o sol, se desviavam de sua luz quando o vento as sacudia, e então algumas corolas pesadas demais para se reerguerem se curvavam levemente.

O sol da tarde aquecia os campos, despejava azul nas sombras e avermelhava o trigo. Um lustre intenso se assentava como laca sobre os campos. Uma carroça, um cavalo, um bando de gralhas – qualquer coisa que se movesse ficava envolta em ouro. Se uma vaca movesse uma perna ela provocava ondulações de ouro rubro, e seus chifres pareciam raiados de luz. Tufos loiros de trigo espalhavam-se por sobre as sebes, raspados das carroças felpudas que vinham das campinas, arriadas e parecendo primevas. As nuvens, com seu cume redondo, nunca se encolhiam ao rolarem pelo céu, conservando cada átomo de sua rotundidade. Agora, enquanto passavam, capturaram um vilarejo inteiro no arremesso de sua rede e, tendo passado, deixaram-no novamente livre. Muito longe no horizonte, por entre os milhões de grãos de poeira cinza-azulado, ardia uma vidraça, ou se erguia a linha solitária de um campanário ou de uma árvore.

As cortinas vermelhas e as persianas brancas se enfunavam e se desenfunavam, batendo contra o canto da janela, e a luz que entrava desigualmente, conforme a batida e a amplitude da ondulação, carregava algum matiz marrom, e algum abandono, enquanto penetrava em lufadas pelas cortinas ondulantes. Aqui acastanhava um armário, ali avermelhava uma cadeira, acolá fazia a janela oscilar ao lado do jarro verde.

Tudo, por um instante, tremeluzia e se dobrava, como se uma grande mariposa planando pelo quarto tivesse sombreado a imensa solidez das mesas e cadeiras com asas vacilantes.


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