As ondas, de Virginia Woolf - interlúdio V

Tomaz Tadeu | Virginia Woolf - Publicado na categoria Palavra da Editora em 13/01/2021


Até o lançamento de As Ondas, previsto para o primeiro semestre de 2021, publicaremos, semanalmente, os nove trechos que Virginia chamava, em seu diário, de “interlúdios”, nos quais uma voz narrativa descreve o movimento do sol desde a madrugada até o anoitecer e uma série de eventos associados a cada um de seus estados. A tradução é de Tomaz Tadeu.


interlúdio V

O sol se levantara em toda sua altura. Não era mais apenas entrevisto e adivinhado por indícios e vislumbres, como se uma garota, reclinada em seu colchão de água verde do mar, tivesse a fronte enfeitada com joias de globos de água que disparassem lanças de uma luz tingida de opala que caíam e lampejavam no ar incerto como os flancos de um golfinho saltando ou o clarão de uma lâmina caindo. Agora o sol ardia impiedosa, inegavelmente. Batia na areia firme, e as rochas se transformavam em fornalhas de carvão em brasa; buscava cada poça e surpreendia o vairão escondido nalguma fenda, e revelava a roda enferrujada da carreta, o osso branco, ou a bota sem cordões, preta como carvão, enfiada na areia. Dava a todas as coisas a medida exata de cor; às dunas, sua incalculável cintilação, às ervas selvagens, seu verde reluzente; ou caía sobre a árida vastidão do deserto, aqui, forçado pelo chicote do vento a enveredar pelos sulcos, ali, impelido em direção a desolados montes de pedras, acolá, sarapintado das raquíticas árvores verde-escuro da selva. Iluminava a lisa e dourada mesquita, os frágeis castelos de carta rosa-e-branco do vilarejo meridional, e as mulheres de cabelo branco e peitos caídos, ajoelhadas no leito do rio, batendo nas pedras as roupas amassadas. Os vapores que avançavam lenta e ruidosamente sobre as águas do mar eram surpreendidos pelo olhar fixo e horizontal do sol, que atravessava os toldos amarelos e caía sobre os passageiros que dormitavam ou passeavam pelo convés, cobrindo os olhos com as mãos em busca da terra, enquanto, dia após dia, comprimido em seus vibrantes lados oleosos, o navio os transportava monotonamente sobre as águas.

O sol batia nos apinhados pináculos das colinas meridionais e refulgia nos profundos, pedregosos leitos do rio, onde a água escasseava sob a elevada ponte pênsil de modo que as lavadeiras ajoelhadas em cima das pedras quentes mal conseguiam molhar suas roupas brancas; e as magras mulas pisavam inseguras por entre as trepidantes pedras cinza, com seus cestos de vime pendurados por sobre o lombo magro. Ao meio-dia o calor do sol deixava as colinas cinzentas como se elas tivessem sido raspadas e chamuscadas numa explosão, enquanto, mais para o norte, em regiões mais nubladas e chuvosas, as colinas, convertidas em placas como se tivessem sido aplainadas pelas costas de uma pá, tinham, no interior uma luz, como se um zelador, em suas entranhas, fosse de aposento em aposento, carregando uma lâmpada verde. Atravessando os átomos de ar azul-cinzento o sol batia nos campos ingleses e iluminava os pântanos e as poças, uma gaivota azul em cima dum mourão, o lento velejar das sombras por sobre os bosques de copas achatadas e o trigo novo e os ondulantes campos de feno. Batia no muro do pomar, e cada fenda e cada grão do tijolo ficava revestido de prata, de púrpura, de rubro como se fosse macio ao toque, como se tocado devesse se derreter em grãos escaldantes de pó. As groselhas pendiam do muro em ondas e cascatas de um vermelho reluzente; as ameixeiras inflavam suas folhas e todas as folhas da grama se fundiam numa única e fluida labareda verde. A sombra das árvores se reduzia a uma poça escura junto à raiz. A luz descendo em torrentes dissolvia a folhagem dispersa num só montículo verde.

Os pássaros cantavam canções apaixonadas endereçadas a um só ouvido e então paravam. Chilreando e pipilando, levavam pedacinhos de palha e graveto para os nós escuros dos ramos mais altos das árvores. Dourados e purpurados, empoleiravam-se no jardim, onde cachos de laburno e lilás balançavam coloridos de ouro e púrpura, pois agora, ao meio-dia, o jardim era todo florescência e profusão e até os túneis por sob as plantas se tornavam verde e púrpura e trigueiro à medida que o sol passava através da pétala vermelha, ou da larga pétala amarela, ou era obstruído por algum talo verde densamente peludo.

O sol batia direto na casa, fazendo com que as paredes brancas entre as janelas escuras se tornassem ofuscantes. As vidraças, densamente cobertas de ramos verdes enredados, abrigavam círculos de uma escuridão impenetrável. Aguçadas arestas de luz se assentavam no peitoril da janela e revelavam, dentro do aposento, pratos de bordas azuis, xícaras com asas curvadas, o bojo de uma tigela grande, o padrão entrecruzado do tapete, e os formidáveis cantos e contornos dos armários e das estantes de livros. Por detrás desse conglomerado pendia uma zona de sombra na qual podia haver mais uma forma a ser desembaraçada da sombra ou abismos ainda mais densos de escuridão.

As ondas quebravam e rapidamente estendiam suas águas sobre a praia. Uma após a outra, avolumavam-se e caíam; a espuma se jogava de volta com a energia da queda. As ondas estavam impregnadas de um azul profundo exceto por um padrão de luz em forma de diamante no dorso que se encrespava tal como se encrespam os músculos do lombo dos cavalos grandes ao se moverem. As ondas caíam; recolhiam-se e caíam novamente, como o estrondo de uma grande besta pateando o chão.


Leia os interlúdios já publicados:




Tags:  tomaz tadeu,  virginia woolf,  as ondas,  Autêntica Editora; Sigmund Freud; Psicanálise


Comentários