A língua de Freud e a nossa

Gilson Iannini - Publicado na categoria Palavra da Editora em 23/07/2018


Comparado ao restante do mundo ocidental, o Brasil está entre os países em que Freud é mais lido e em que a prática que ele fundou, a psicanálise, ainda goza de considerável prestígio em diversos campos da vida social. Curiosamente, durante décadas, a difusão de Freud entre nós deu-se através de traduções indiretas, quase exclusivamente através da célebre Edição Standard (Imago Editora). Como todos sabem, a edição de James Strachey é primorosa do ponto de vista editorial, contendo um invejável sistema de remissão interno e preciosas “notas do editor inglês”, mais tarde revisadas e incorporadas até mesmo à edição de estudos alemã. No entanto, do ponto de vista da tradução, a Edição Standard já apresentava diversos problemas e escolhas no mínimo duvidosas, algumas delas mais em virtude do pulso forte de Ernest Jones do que das opções do próprio Strachey. No limite, a Standard visava adaptar Freud para o público de língua inglesa, tornando-o mais objetivo, terminológico e abstrato do que realmente era no original, mais rico e polifônico. Na versão brasileira traduzida a partir da edição inglesa, tais problemas foram exponenciados a um limite extremo. A prosa freudiana – cujas qualidades literárias, mas não apenas isso, renderam-lhe, em 1930, o prêmio Goethe de literatura – havia submergido em uma escrita árida e pretensamente científica. Tal estado de coisas, curiosamente, fomentou um intenso debate acerca da tradução de Freud nos meios universitários e nas instituições psicanalíticas. Talvez não seja exagero dizer que esse debate acabou tendo um paradoxal efeito difusor, na medida em que atiçou a curiosidade de pesquisadores de áreas diversas.

Exercícios de substituição

Quem frequentou cursos sobre Freud, acostumou-se desde as primeiras lições a estranhos exercícios de substituição. Os professores insistiam, às vezes com mais conhecimento de causa, às vezes com menos, que os jovens leitores deveriam substituir, durante a leitura, “instinto” por “pulsão”, “repressão” por “recalque”, “ego” por “eu”, “catexia” por “investimento”, para citar apenas os exemplos mais ilustres. Acostumados então a esse inusitado procedimento de leitura, o debate acerca da tradução ficou, por muito tempo, polarizado em questões meramente terminológicas, deixando à sombra diversos outros aspectos envolvidos na tarefa da tradução, relativos aos aspectos estilístico-literários, por exemplo. Além disso ficou em segundo plano a discussão acerca de aspectos editoriais, tais como os textos-fonte e suas variantes; a organização cronológica ou temática; a inclusão ou exclusão de textos, ensaios, artigos, cartas, etc.

Esses debates ganharam destaque no final da década de 1980, com as contribuições fundamentais de Paulo César de Souza e de Marilene Carone que foram publicadas na imprensa escrita. Carone chegou a qualificar a tradução brasileira de Freud como “selvagem”. Estudos minuciosos acerca dos descaminhos da tradução brasileira apontam que tais trabalhos fomentaram o debate e nutriram por bastante tempo nossos anseios por um Freud traduzido diretamente do alemão. A discussão acerca dos usos freudianos da língua alemã e os desafios de sua tradução ganharam tratamento teórico sofisticado com as publicações, um pouco mais tarde, do Dicionário comentado do alemão de Freud, de Luiz Alberto Hanns (Imago, 1996) e de As palavras de Freud, de Paulo César de Souza (Ática, 1999). Tudo indicava que o sonho de um Freud mais fidedigno estaria perto de se concretizar a partir de 2010, quando a obra de Freud entraria em domínio público.

A Imago Editora, detentora dos direitos até então, adiantou-se e encomendou a Hanns, antes que a obra de Freud entrasse em domínio público, uma nova tradução, diga-se de passagem, extremamente criteriosa, preocupada em estabelecer redes semântico-conceituais capazes de tentar recriar a atmosfera do alemão de Freud. Foram publicados, desde então, apenas três ou quatro volumes. O promissor projeto de Hanns, infelizmente, foi precocemente interrompido.

Assim que a obra de Freud entrou efetivamente em domínio público, surgiram outros esforços de tradução direta do alemão. Uma análise criteriosa das características de cada um desses projetos pode ser encontrada no estudo que Pedro Heliodoro Tavares publicou como resultado de sua pesquisa de pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em Estudos da tradução no Brasil (Versões de Freud, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011).
Todavia não foi difícil perceber a frustração da comunidade psicanalítica brasileira com os novos projetos surgidos desde então, que, de uma forma ou de outra, insistiram em terminologias ultrapassadas ou em formatos editoriais tradicionais e pouco inovadores, preservando a organização cronológica e a ausência de um aparato crítico ou notas que pudessem, de alguma forma, exercer função análoga às valiosas notas contextuais de Strachey.

Foi nesse contexto que a Autêntica Editora resolveu investir numa nova tradução e edição das obras de Freud. Quando li o livro de Pedro Heliodoro Tavares sobre as traduções de Freud, imediatamente convidei-o para uma parceria, que resultou no projeto da coleção Obras Incompletas De Sigmund Freud. Pedro Heliodoro é o responsável pela coordenação da tradução: além de estabelecer um glossário inicial dos principais conceitos, ele revisa minuciosamente todas as traduções. A equipe de tradutores é formada por profissionais experientes e especializados, oriundos de diversas partes do país.

Algumas premissas básicas fundamentaram o projeto: em primeira instância, o amadurecido debate da comunidade psicanalítica brasileira acerca da terminologia dos conceitos fundamentais de Freud não poderia ser ignorado. Isto é, não havia nenhuma justificativa plausível para manter “instinto” como tradução de “Trieb”, já que a comunidade psicanalítica optou, baseada em boas justificativas, por “pulsão”, termo consolidado em todo o país, atravessando escolas, tendências e orientações, isso para salientar apenas um exemplo mais emblemático. Outra premissa fundamental é: o leitor que não conhece o alemão tem o direito de saber quando Freud emprega termos em alemão que têm inequívoco valor conceitual, apesar de determinados contextos argumentativos em português brasileiro implicarem palavras diferentes para o mesmo termo alemão. Nesse caso, o exemplo mais célebre é “Angst”: essa palavra alemã é de uma tal riqueza que, ao traduzi-la para o português, podemos optar, conforme o contexto, por “medo”, “angústia” ou até mesmo “ansiedade”. A coleção da Autêntica Editora optou, nesses casos, por indicar entre colchetes, depois da tradução, o termo alemão adotado por Freud. Qual a ideia aqui? De que algumas palavras não são apenas palavras, mas conceitos, que orientam determinadas práticas. Outro princípio da coleção foi a edição temática (e não cronológica). A organização dos textos é absolutamente original, embora se inspire num ponto ou noutro nas edições temáticas alemãs e francesas, mas não se confunde com elas. Além disso, nos volumes temáticos, incluímos notas e notícias bibliográficas, no intuito de situar o leitor não apenas na contextualização de cada texto de Freud, mas também na história de sua recepção. Dessa forma, o leitor encontra informações não apenas sobre o contexto de redação de cada ensaio ou artigo de Freud, como também acerca de como tal texto ou conceito foi lido por autores posteriores a Freud, como Melanie Klein, Donald Winnicott, Jean Laplanche ou Jacques Lacan, entre outros. Esse material, absolutamente original, é redigido com zelo pelo editor brasileiro e, depois disso, submetido a especialistas escolhidos a dedo, de diferentes escolas e tradições psicanalíticas, que revisam o material. Junto a isso, cada volume conta com um ensaio original escrito especialmente para a coleção, de renomados psicanalistas, como Christian Dunker, Maria Rita Kehl, Edson L.A. de Sousa, Antônio Teixeira, Sérgio Laia ou Ernani Chaves.

Além dos volumes temáticos, alguns textos merecem edições monográficas e até mesmo bilíngues, seja por sua importância, seja por suas características especiais.

Clínica e tradução

Afinal, uma tradução nunca é neutra ou anódina. Numa tradução, há dimensões não apenas linguísticas (terminológicas, semânticas, estilísticas) envolvidas, mas também éticas, políticas, ideológicas, teóricas e, sobretudo, clínicas. O texto de Freud não é um texto literário, embora qualidades literárias não lhe faltem. Ele é antes um texto que embasa uma determinada prática, a qual possui, na atividade clínica, sua principal destinação, seja ela realizada em consultórios particulares, seja na rede pública. Tudo isso sem contar as diversas práticas em que conceitos freudianos são operatórios, como na teoria social, na teoria literária, na estética, na filosofia e em campos conexos, além das práticas políticas emancipatórias, que encontraram na psicanálise uma forte fundamentação teórica. Nesse sentido, escolhas terminológicas não são sem efeitos práticos. Representar o sofrimento humano e os tratamentos possíveis que podemos dar a ele não são tarefas indiferentes à maneira como falamos deles e como os tratamos conceitualmente. Para tomar apenas o exemplo mais eloquente, a escolha aparentemente neutra de “instinto” para traduzir “Trieb” não pode dissimular sua vinculação quase imediata a uma certa ideia de natureza, para dizer o mínimo, muito longe de ser operatória na prática clínica. É claro que, sendo um “conceito fundamental”, seus principais componentes estão definidos no interior da própria metapsicologia. Freud define seu conteúdo com extremo cuidado. Entretanto, mesmo conceitos fundamentais não comportam “definições rígidas”, como afirma o próprio Freud em 1914-1915. Afinal, parte de seu conteúdo é tomado de empréstimo, como que imposto de fora, tomado “daqui e dali” e retirado de “diversas fontes”: da própria língua e de suas diversas camadas de sentido sedimentado.

Independentemente da louvável aspiração que alguém possa ter em alargar o campo semântico do termo “instinto”, buscando explicitamente desvinculá-lo de certa fixidez, nada disso, todavia, pode resguardar o vocábulo das ressonâncias normativas contidas no léxico naturalista que o engloba. Ainda mais no atual contexto político, em que as neurociências e afins se transformaram no fundamento do discurso de supressão da subjetividade, e em que, ao mesmo tempo, assistimos, atônitos, a uma tendência de repatologização das sexualidades. Mesmo se nos ativermos ao terreno interno à psicanálise, é preciso insistir que representar teoricamente um inconsciente instintual, descrever a dinâmica instintual de determinado conflito psíquico, ou analisar um episódio de agressividade instintiva não têm as mesmas consequências de pensar um inconsciente pulsional, ou descrever uma dinâmica pulsional subjacente à gramática de determinado conflito, ou tratar da irrupção de uma pulsão agressiva, por exemplo. Com efeito, uma das características mais marcantes da clínica freudiana é o caráter não normativo de sua concepção de subjetividade, sofrimento e tratamento possível. Foi essa diretriz ética da psicanálise que nutriu os diversos movimentos emancipatórios que nela se inspiraram e se nutrem cotidianamente.

No limite, o tratamento psicanalítico não deixa de ser uma estratégia de tradução, ou pelo menos de conter, em alguns de seus procedimentos mais corriqueiros e em alguns momentos cruciais, alguns elementos afins a estratégias tradutivas. A clínica lida com sofrimentos que nos imobilizam e que nos fixam em determinadas posições, em que imperam o silêncio, ou a incapacidade de falar adequadamente sobre nossos desejos e nossas limitações. A oferta de um novo espaço de uso da palavra, não por acaso batizado por uma paciente de Freud como talking cure, é a oferta ao paciente da possibilidade de traduzir, de ressignificar, de nomear ou mesmo de transcriar seu sofrimento miserável, seu gozo mórbido e suas repetições infinitas em um discurso menos mortífero.

Quando Rilke lamentava que a beleza da natureza em uma tarde de verão estava prestes a desaparecer graças aos rigores do outono e do inverno, Freud opôs-se a ele e mostrou-lhe que o caráter transitório da beleza apenas aumenta seu valor, mostrando ao poeta que a fragilidade e a precariedade de nossas conquistas pessoais e culturais também não devem diminuir a estima que temos por elas. A teoria freudiana do luto ensina que apenas renunciando a tudo que perdeu, a libido pode ser ligada a novos objetos. Algo dessa ordem ocorre no curso de uma análise. O tratamento analítico, longe de prometer a eliminação do inelutável mal-estar e de prometer a felicidade (aliás, mais um nome contemporâneo por onde a normatividade social se insinua em nossos corpos e nossas vidas), abre ao sujeito um certo saber-fazer com seu sintoma. Um trabalho de tradução?
Por tudo isso, talvez não seja exagerado dizer que o Brasil finalmente dispõe de uma tradução que nos permite realizar o tão desejado, e o não menos adiado, “retorno a Freud”.

Amor, sexualidade, feminilidade

O sétimo volume da coleção, intitulado Amor, sexualidade, feminilidade, foi um desafio à parte. Ele contém alguns dos textos mais polêmicos de Freud, os quais falam do complexo de Édipo, da inveja do pênis, da bissexualidade originária, da feminilidade, da sexualidade infantil, da homossexualidade, etc. Esses textos, então, correspondem a polêmicas contemporâneas, quando se discute a torto e a direito, o fim do patriarcado, os diversos feminismos, as teorias de gênero, e assim por diante. Traduzido cuidadosamente por Maria Rita Salzano Moraes, esse volume conta ainda com um rico material extra. Uma longa introdução dos editores procura contextualizar a discussão, fornecendo elementos valiosos para uma leitura não ingênua de Freud. Além disso, depois de cada texto, uma nota do editor brasileiro situa a gênese, a estrutura e a recepção de cada artigo. Esse material foi revisado por homens e mulheres, de diferentes orientações teóricas, que contribuíram com sugestões, cortes, acréscimos, etc. Entre psicanalistas de tendências diversas, uma filósofa especializada em feminismo e um especialista na biografia de Freud, o material sofreu diversas reformulações até chegar à versão final. Além disso, o livro contém ainda um primoroso posfácio de Maria Rita Kehl, sobre “Freud e as mulheres”.

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Gilson Iannini é um dos organizadores da coleção Filô Autêntica e de Obras Incompletas de Sigmund Freud.

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