100 anos de Primeira Guerra Mundial: Leia o prólogo de Soldados do Jazz

Thomas Saintourens - Publicado na categoria Resenhas & Trechos em 13/11/2018


“Somos uma nação – um povo – que se lembra de seus heróis…”
O presidente dos Estados Unidos da América pesa cada palavra, calcula cada respiração.

“Temos a responsabilidade de só enviar nossos homens à guerra quando isso é necessário. Esforçamo-nos para cuidar deles e de suas famílias quando voltam. Nunca esquecemos seu sacrifício… E acreditamos que nunca é tarde demais para dizer ‘obrigado’. É por isso que estamos aqui nesta manhã.”

Nesse dia 2 de junho de 2015, o Salão Leste da Casa Branca, ornado de cortinas douradas e de bandeiras estreladas, está cheio de veteranos uniformizados e de famílias em suas melhores roupas. A atmosfera é solene. Um pouco tensa, também.

O presidente Obama se prepara para honrar a memória de dois soldados da Primeira Guerra Mundial. Dois homens – um judeu, outro afro-americano – cujas façanhas não foram recompensadas até então com a mais alta condecoração militar americana: a Medalha de Honra. O sargento William Shemin e o soldado Henry Johnson vão receber nesse dia, quase um século depois de seus atos de bravura, o reconhecimento póstumo da nação.

Visivelmente menos descontraído do que de costume, Barack Obama narra a vida de Henry Johnson, herói da batalha da Floresta de Argonne. Conta também as provações cotidianas de um jovem negro americano no início do século XX, descendente de escravos que se tornou soldado, soldado que se tornou herói, herói que foi esquecido por todos, alguns meses depois de seu retorno triunfal a Nova York.

Sentada no meio do auditório, uma mulher vestida de preto e branco estremece a cada vez que é mencionado o nome do combatente. Tara Johnson sempre acreditou ser neta do soldado homenageado naquele dia. Um antepassado que deixou como legado a batalha de uma vida. Mas Tara não poderá receber a medalha hoje. Uma análise genética divulgada alguns dias antes indicou que Henry Johnson não teve filhos. O transtorno causado pela notícia é amenizado pela presença de todos os homens e mulheres que lutaram pela memória do soldado Johnson. Netos de oficiais brancos, deputados democratas e republicanos, militantes da causa afro-americana: todos formam uma multidão diante do presidente.

“Os Estados Unidos não podem mudar o que aconteceu a Henry Johnson”, prossegue Obama. “Não podemos mudar o que aconteceu a inúmeros soldados como ele, que não foram celebrados porque seu país os julgava pela cor da pele, e não por seus atos. Mas podemos fazer nosso melhor para reparar isso.”

Henry Johnson não vestia o uniforme americano em 1918 nas trincheiras de Argonne. Combatia ao lado do exército francês, com os poilus,* num regimento composto unicamente de soldados americanos rejeitados pelo exército de seu país.

“Henry Johnson foi um dos primeiros americanos a receber a mais alta distinção militar francesa. Mas sua própria nação não lhe deu nada – nem mesmo o Coração Púrpura,* e isso porque ele foi ferido 21 vezes. Nada por sua bravura”, destaca ainda Barack Obama, antes de entregar a medalha, em sua moldura de vidro, ao sargento-mor Louis Wilson, representante da guarda nacional de Nova York, herdeira da unidade de combate do soldado Johnson.

Henry Johnson é apenas um dos heróis de um regimento esquecido. Um regimento que se ergueu no Harlem, à época da Primeira Guerra, para representar o orgulho do povo negro oprimido, para travar a batalha dos direitos civis integrando-se ao exército americano, apesar das humilhações e do racismo institucionalizado.

Esses soldados, esses poilus do Harlem, combateram em duas frentes: na primeira linha das trincheiras, junto aos soldados franceses; e contra a segregação da sociedade americana, reproduzida, como numa caricatura, dentro do exército americano. Talvez tenha sido antes de tudo para lutar contra esse inimigo interno, tão poderoso quanto os soldados do Kaiser alemão e capaz de se regenerar infinitamente, que eles se entregaram de corpo e alma a uma das guerras mais devastadoras de todos os tempos.

*Literalmente, “peludos”: assim eram chamados os soldados franceses que lutaram na Primeira Guerra Mundial. Há controvérsias quanto à origem da expressão, mas a mais aceita está relacionada à ideia de coragem (avoir du poil, “ter pelo”, é uma expressão que significa ser corajoso) e não à de não ter tempo para fazer a barba e cortar o cabelo. Daí o intraduzível título original deste livro: Les poilus du Harlem, ou seja, ao mesmo tempo “os corajosos” e “os soldados franceses” do Harlem. [N.T.]

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Prólogo retirado do livro Soldados do Jazz, lançamento da Editora Vestígio.

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