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Resenha da tradução do Ética, de Spinoza, por Walter Kohan e Maurício Rocha

03/09/2007 — Walter Kohan e Maurício Rocha

Um evento e tanto

Tomaz Tadeu apresenta sua tradução da Ética de Spinoza (1632-1677). T. Tadeu renova constantemente a biblioteca da área da Educação, com estudos sobre currículo com base em M. Foucault e, mais recentemente, em G. Deleuze. Mas desta vez, ele foi além… Esta é a terceira tradução da Ética em português, setenta anos após a primeira, por Lívio Xavier, e quase seis décadas após a versão editada em Portugal por Joaquim de Carvalho e colaboradores, a mesma republicada na coleção Os pensadores, desde 1973. Para os vários grupos de leitores de Spinoza espalhados pelo Brasil, dentro e fora das universidades, o feito já é um evento e tanto. A presente tradução oferece, no final da edição, notas de esclarecimento sobre os termos utilizados e as soluções de problemas do texto latino, uma tabela, em latim/português e português/latim dos afetos contidos na Ética, referências bibliográficas sobre e locais na Internet com material sobre Spinoza. O cuidado é importante, pois o problema maior das traduções de obras filosóficas é sempre o da fidelidade ao léxico e ao pensamento do autor. Outra qualidade é a incorporação de lições das últimas quatro décadas de estudos e traduções sobre o pensador holandês, propondo correções adotadas pelos principais tradutores internacionais, de problemas recorrentes nas versões disponíveis em português — desfazendo a reiterada confusão entre afecção e afeto (affectio/affectus); entre potência e poder (potentia/potestas); e substituindo a versão de mens por alma pelo correto mente, entre outros vocábulos.

A edição ainda contém o original em latim estabelecido por Carl Gebhardt em 1925, na edição da Opera Posthuma (1677). O texto de Gebhardt é a referência das principais traduções contemporâneas: as francesas de Charles Appuhn (publicada em 1904 e atualizada em 1934, após o trabalho de Gebhardt), Guérinot (de 1930, a preferida de Deleuze), Caillois (para a prestigiada coleção Pléiade, de 1954), Pautrat (1988, que também contém o texto latino) e Misrahi (1990); a inglesa de Curley (1988); e a espanhola de Atilano Dominguez (2000). E seguirá como referência, até a conclusão do projeto de reedição integral das obras do Spinoza, em curso na Europa e coordenado por Pierre-François Moreau (ENS/Lyon), com restabelecimento de textos, novas traduções e aparato crítico (já foram publicados o Tratado Teológico-Politico, em 1999, e o Tratado Político, em 2005, em Paris pela PUF). A presença do original e da tradução permite variantes e outras soluções aos cultos em latim, e a reavaliação contínua das soluções propostas pelo tradutor, e nos coloca no passo das edições internacionais — o que só favorecerá a ampliação da inteligência da obra deste que Deleuze considerou “o Príncipe dos filósofos”.

Mas, para um publico maior, iniciante ou não, a tradução oferece a sonoridade do “português-brasileiro contemporâneo”, no dizer do tradutor. Segundo Lucas, biógrafo de Spinoza, ele tinha “um ar português”. O próprio Carl Gebhardt cogitou que o filósofo pensava em português — e a hipótese, nada fantasista, é um antídoto aos excessos da filologia, que por vezes substitui a compreensão efetiva dos problemas, dos conceitos, do sistema e da originalidade de Spinoza (e das filosofias em geral). E também nos cura das mistificações sobre as relações entre língua e pensamento.

Nascido em uma família de judeus ibéricos residentes na Amsterdã, Spinoza teve no português e no espanhol os idiomas falados em casa e na rua. Nas escolas da comunidade judaica estudou hebraico. É certo que sabia holandês, como é certo que ignorou o inglês, o alemão e o grego. O aprendizado do latim foi tardio, um pouco anterior à sua exclusão da comunidade, em 1656 (o texto violento do anátema acompanha a presente edição, assim como o inventário de bens deixado pelo filósofo). Já se disse ele “não era Cícero”, que o latim da Ética “parece escolar”, e que seu vocabulário sofre de “penúria”. De fato, Spinoza tomou emprestado formas e conteúdos do latim, língua científica do seu tempo. Mas também se nutriu da cultura barroca espanhola e dos clássicos latinos (Terêncio, Ovídio), cujas fórmulas aparecem aqui e ali na Ética, vocalizadas com o léxico metafísico da era clássica — dispondo todos esses elementos sob a ordem geométrica da exposição. Desse modo ele imprimiu novos sentidos e orientações ao pensamento, criando uma língua filosófica: a filosofia da imanência absoluta, ou o spinozano (como propôs F. Zourabichvili). É esta língua que o leitor brasileiro encontrará, ao ler e reler a Ética.

A fluência da tradução ajuda a desfazer a imagem do Spinoza austero e ascético, cujo aparato conceitual seria inacessível ao leigo. Pois a Ética é um hápax que desconcerta e desafia o leitor. Já se disse que a obra sequer necessitaria de introdução, ou mesmo comentário, por ser um “livro de matemática” — onde o conteúdo não precede as condições formais de sua expressão, e só ganha sentido na medida em que tais condições operam. O próprio filósofo disse, certa vez, que bastaria a compreensão das definições iniciais da Parte I para deduzir todo o resto… Ignorada pelos comentadores até os anos 60, a ordine geometrica não é um capricho, um artifício didático, uma idiossincrasia do filósofo, ou um dispositivo formal que assegura de modo infalível o acesso a uma verdade. Quis a fortuna que o rótulo de dogmatismo fosse imputado justamente a essa experiência contínua de validade de um percurso demonstrativo, no qual o leitor é incitado ao exercício de liberar a potência de sua inteligência das falsas percepções e das conclusões sem premissas. Cabe ao leitor experimentar por si mesmo a validade dos enunciados que lê — pelo contínuo movimento de gênese de verdades que são necessárias por só encontrarem sua consistência na medida em que são encadeadas, e demonstradas. Com isso, Spinoza constrange o leitor a descobrir que o pensamento não é um ato voluntário. Pois não é possível seguir o movimento argumentativo do exterior: o leitor tem de implicar-se, deixar-se levar pelo automatismo do sistema conceitual.

Reside aí seu estilo, pois a Ética é o Livro do Conceito: ela apresenta seu próprio engendramento, tomando as idéias no ponto em que estão se formando (definições, axiomas, postulados) — e levando o leitor a experimentar a validade do percurso demonstrativo, ao retomar as etapas de sua progressão. A ordine geometrica é uma forma de expressão inseparável do seu conteúdo, e o desdobramento de suas figuras discursivas exprime a própria estrutura do real em seu processo de constituição: a Substância constituída de infinitos atributos, Deus ou Natureza, causa imanente de tudo o que existe: os modos ou afecções com seus afetos ou variações, com seu esforço em perseverar, seu desejo, sua imaginação e sua racionalidade impregnada de paixões (tristes, alegres). O movimento do conceito interessa não só por si, mas também pela dimensão prática, que está no cerne desta filosofia: é uma Ética e foi escrita para “levar pela mão seu leitor à felicidade” – e até mesmo um camponês pode ler Spinoza, como no livro O faz tudo (The fixer) de Bernard Malamud.

Um evento e tanto. Um livro e uma língua que testemunham uma outra vida: estrangeira, nômade, resistente. Um evento e tanto. Pela força política do pensamento e da vida de Spinoza. Em toda a história do pensamento moderno, apenas Marx e Nietzsche repudiaram, de maneira tão aberta e provocativa como Spinoza, todo o sistema de crenças da sociedade que os rodeava. Protagonista das luzes radicais, sua obra proscrita freqüentou os debates filosóficos, religiosos e políticos desde o século XVIII — e fecundou o pensamento contemporâneo (Deleuze, Negri, Sloterdijk, Bourdieu), que não cessou de meditar, mais ou menos, sobre Spinoza.

A Ética não é apenas um clássico e a importância de uma publicação como a oferecida pela Autêntica transborda o universo daqueles que se interessam pela história do pensamento. Ela é uma porta para uma nova cultura, onde a ética diz respeito a uma complexa lógica de afetos e não respeito a uma lógica do dever com a qual tentou-se aparentá-la insistentemente. Desde esse anagrama dos afetos, a Ética de Spinoza permite pensar o que aumenta ou diminui a potencia da vida, os encontros que potencializam ao máximo a capacidade de ser afetado de um ser humano. Ela permite reconsiderar as forças que fazem que alguém se torne o que se é, as relações nas quais vale a pena apostar nos projetos de vida individual e coletivos. Um evento e tanto. Agora e em qualquer outro momento. Aqui e em qualquer outro espaço.

Maurício Rocha – Walter Kohan.

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