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"A Criança perdida", por José Castello

18/08/2012 — José Castello, O Globo

DIZIA BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS QUE A LITERATURA NÃO SERVE PARA EXPLICAR, MAS PARA APAZIGUAR.

O mundo contemporâneo alimenta muitas ilusões a respeito da figura do escritor. Cada vez com mais frequência, escritores são convocados para palestras, seminários, conferências. Dão entrevistas e escrevem artigos sobre temas contemporâneos. Há sempre muita gente interessada em ouvi-los, como se fossem sábios. Portadores de verdades secretas e de revelações.

Falecido em janeiro de 2012 aos 67 anos, o escritor Bartolomeu Campos de Queirós nunca se cansou de dizer, ao contrário, que os escritores não escrevem com o que sabem, mas com o que desconhecem. “Se a literatura é uma extensão do autor, a mim ela surge pela falta”, diz em um dos ensaios de Sobre ler, escrever e outros diálogos (editora Autêntica). “Meu desejo é talvez de contar para os mais jovens aquilo que gostaria que fosse narrado a mim”.

O escritor é, antes de tudo, alguém que escuta a si mesmo — e que se assusta com o que ouve! Insiste Bartolomeu: “À medida que escrevo e me surpreendo com aquilo que eu não sabia que sabia, eu me torno mais amigo meu”. É muito comum escritores receberem pedidos de aconselhamento. Muitos, constrangidos, não se esquivam de responder. Bartolomeu não: ele preferia fazer como os sábios gregos, ou os monges budistas: limitava-se a responder às perguntas com novas perguntas.

“Só me interesso pelo que me falta”, insistia em dizer, e com isso explicava um pouco como os escritores suportam tantos anos de solidão antes de chegarem a um livro. O livro, no fundo, é só o desfecho dessa luta. É uma cicatriz que, em vez de ficar inscrita no corpo, se inscreve no papel. Para lutar, alimentam-se da insatisfação. “O que sei não me basta ou satisfaz”, escreve Bartolomeu. “Criar, para mim, é a alternativa derradeira para abrandar o peso do não sabido”.

Em literatura não há, portanto, o que saber e, muito menos, o que transmitir. Há, apenas, o que despertar. Em minhas oficinas literárias, tento agir como alguém que, diante de um sujeito desacordado, lhe lança um copo de água na face. Nesse aspecto, me encontro com Bartolomeu, quando ele diz: “Não que eu tenha uma proposta para ser cumprida”. Só autores preguiçosos seguem roteiros, planilhas e projetos. Vivemos em uma era que tanto os admira! Mas não: escritores como Bartolomeu os desprezam. Fazem, antes, uma limpeza de terreno. Livram-se do que julgam saber. O escritor, como o velho Sócrates citado por Platão, só sabe que nada sabe.

Bartolomeu escreveu, mais que tudo, para crianças. Via a literatura como um “encontro entre dois mundos”. Escrever era retomar contato com a criança perdida. “Diante da infância, eu tenho que ser humilde o suficiente para reconhecer esses dois mundos”. Humildade, e não arrogância. Desconhecimento, e não conhecimento. Descoberta (susto), e não exibição (ostentação). Elementos que não combinam com a imagem pública do escritor contemporâneo, que se confunde com a de um sábio, mas também de um astro pop.

Amava a falta, e a perseguia, porque a considerava “o que há de mais reservado em nós”. Tão reservado, que não temos. Tão secreto, que não nos permite acesso. Essa falta, explicava, é representada pela fantasia. Para chegar à falta, devemos não só manejar a fantasia, mas ir além
dela. “Não importa o que o autor diz, mas o que o autor ultrapassa”. Escrever é ir além de si. Dizia Bartolomeu que escrever é oferecer o obscuro ao leitor. Só do obscuro o leitor pode realmente se apossar. Só dele — e não daquilo que brilha — pode fazer algo de seu.

Dizia Bartolomeu que a literatura não serve para explicar, mas para apaziguar. Teria o papel, portanto, de consolar o leitor. “Nosso real é, muitas vezes, mais fantástico que a fantasia”. Lidar com o real e suas armadilhas, fortalecer-se para enfrentá-lo, colocar a invenção no lugar do temor — esses seriam os objetivos da escrita. Não é fácil. Machuca, e por isso cada escritor deixa em seus textos um punhado de feridas. A verdade do escritor é a dúvida, e a dúvida dói. Mas ela garante a liberdade.

“Todo escritor configura um texto, mas é a abertura em sua construção que vai conduzir o leitor a reconhecê-lo como literatura, ou não”. Afirmava Bartolomeu que não existe literatura sem qualidade. Fora a qualidade, “existem textos que não são literários”, e só. Mas como aferir essa qualidade? Só há um caminho: avaliar a qualidade das perguntas que o texto propõe ao leitor. “Escrevo para perguntar ao leitor o que mais ele tem a dizer sobre minhas dúvidas”. Desmorona-se, assim, a imagem do escritor onipotente, que pontifica sobre tudo e a quem nenhum assunto escapa.

Só assim, Bartolomeu podia dizer: “Sintome feliz ao final de um trabalho, percebo que eu ‘não sabia que sabia’ o que escrevi”. De novo a falta como matéria-prima — assim como o mármore para um escultor, ou os atores para um diretor de cinema. Daí outra marca da literatura: ela permite que o leitor voe. Que ele saia de si. Literatura é o contrário do aprendizado. O escritor não é um mestre, mas um aluno que luta para escutar a si mesmo. Consegue ouvir alguma coisa, e do que ouve, escreve.Não é muito, e por isso a literatura não oferece grandes respostas. Mas é o bastante para nos abalar.

Via Bartolomeu a escrita como uma rasteira que o escritor aplica em seu leitor. Você acha que sabe isso e aquilo, acha que pensa aquilo e aquilo outro. Mas, ao ler uma ficção, ou um poema, seu mundo despenca. E, no entanto — como dizia Henriqueta Lisboa, citada por Bartolomeu —, não há poesia com destinatário. A literatura não é uma carta que se envia a alguém. Talvez seja, no máximo, uma carta enigmática, como as que divertiam as crianças nos antigos almanaques.

Cada leitor lê um texto a partir de sua experiência, ou melhor, de sua falta. É no lugar do que lhe falta que a literatura esboça uma resposta. Promete, mas não dá. Por isso, dizia Bartolomeu, “não acredito em receitas teóricas de como escrever”. Toda leitura, pensava ainda, é um encontro (um diálogo) entre duas fantasias. O escritor fantasia para escrever, o leitor fantasia para ler e, nesse encontro de duas fantasias, um livro se faz.

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