Vida precária: Judith Butler e a irrecusável experiência da vulnerabilidade

Publicado na categoria Palavra da Editora em 09/10/2019


O que pode ser feito do luto, em vez de ele se tornar um choro desesperado pela guerra e violência? Esse é um dos questionamentos feitos pela filósofa Judith Butler em seu livro Vida precária, lançado no Brasil em outubro pela Autêntica. O livro, publicado nos Estados Unidos em 2004, apresenta cinco ensaios escritos após o ataque de 11 de Setembro de 2001, nos quais discute, principalmente, a elaboração de políticas de violência após a experiência coletiva da perda, do luto ou do dano a uma “soberania” nacional.

Do anti-intelectualismo estadunidense e da desumanização dos prisioneiros de Guantánamo à violência praticada pelo Estado de Israel contra a Palestina, Butler traça as bases de sua filosofia política em uma afirmação da ética da não violência: a dimensão mais irrecusável da vida em sociedade é a nossa própria interdependência e vulnerabilidade diante dos outros e daqueles com quem coabitamos o mundo.

O que é, afinal, uma vida precária? Para responder a essa pergunta, devemos retornar a um conceito essencial à filosofia política butleriana: a despossessão. Em uma retomada da ética do filósofo judeu Emmanuel Lévinas, Butler discute a experiência de exposição ao outro: estar diante do outro é um movimento de sermos “despossuídos” de nós mesmos, isto é, uma revelação de que nós só podemos ser e fazer no mundo em relação de coexistência e interdependência: ele pode me injuriar e eu posso injuriar ao outro; podemos assim nos destruir mutuamente. No entanto, somente juntos, reconhecendo a inevitabilidade de compartilharmos uma vida em coabitação, nos são possíveis as experiências prazerosas e construtivas da vida.

A vida dessa forma não pode ser pensada como algo independente, prévio, mas sim algo que acontece mediante a dolorosa e prazerosa exposição e coabitação ética uns com os outros – como Lévinas coloca, “Não matarás!”; é a partir da interrupção da violência que podemos abrir espaço para a ética. Quais as consequências políticas do reconhecimento da vulnerabilidade comum a todos nós? Butler, aqui, avança sobre as limitações teológicas e políticas da ética levinasiana ao reconhecer que nossa condição vulnerável é politicamente regulada.

Somos todos precários – mas uns estão em condições mais precárias que outros e dizer o contrário seria da maior irresponsabilidade. Seriamos inevitavelmente todos humanos, certo? Mas por que nosso luto e comoção são direcionados para alguns? Seria o caso de o “rosto” humano, uma expressão ética visceral irrepresentável segundo Lévinas, um rosto que se traduz numa normatividade violenta, que atribui o “rosto” e o estatuto da humanidade, de fato, só para alguns, recusando-os em outros? Quem conta como humano? Quem conta como uma vida vivível?

A crítica construída em Vida precária – e a partir do pensamento da precariedade – é a de que, diante da experiência que nos relembra a exposição inevitável que possuímos, ou a não-soberania nacional, no caso do Estados Unidos após o 11 de Setembro, escolhemos o não-pensamento e a reprodução acrítica da violência. Em vez de repensarmos nossas políticas nacionais para interrompermos e repensarmos o estado das coisas, no intuito de interrompermos as formas de violência, optamos, ao contrário, por reproduzir agressivamente a violência contra aqueles que chamamos de “outros” – os “bárbaros”, os nossos “inimigos”, os nossos “prisioneiros”. Uma experiência de poder que explora aqueles em condição mais precária e que tenta reconstituir uma soberania e um poder “perdidos”.

Vida precária também é o livro em que Butler desenvolve um questionamento que já era cerne da sua teoria feminista sobre a normatividade de gênero: quem conta como humano? Qual rosto possui a humanidade e o que está regulando a forma como apreendemos o que é o rosto – a favor de quem? Em desfavor de quem?

Devemos ser afetados pelo luto: é através da expressão do luto que afirmamos o valor das vidas perdidas e, principalmente, das vidas cuja perda poderia ser evitada. Vida precária nos lembra que a experiência do luto deve se traduzir em ação política, ética e crítica: devemos repensar as políticas públicas, o papel do Estado, a maneira politicamente regulada como reconhecemos a vida, a humanidade, a perda e a violência. Dessa forma, Vida precária é um convite ao enfrentamento do que nos é inevitável: diante da possibilidade e da realidade da violência, o que vamos fazer? Reconstituir o “objeto perdido” da segurança com mais violência? Quem estamos violentando em nossa tentativa de nos tornarmos “seguros” novamente? E, de uma forma ainda mais necessária: quem somos “nós” e quem chamamos de “eles”? A quem estou atribuindo humanidade e vida, a quem estou distribuindo o direito de proteção à vida? Butler nos lembra de que somente a partir do questionamento crítico e da abertura ética ao Outro poderemos construir um novo território político contra a violência.

Vida precária tem lançamento previsto para 30 de outubro e já está em pré-venda. Garanta o seu.

Tags:  judith butler,  vida precária


Comentários